"Fujo da culpa, da solidão. E corro vertiginosamente atrás do tempo"
Há largos anos a dedicar-se de corpo e alma à representação, Maria do Céu Guerra é, sem dúvida, uma das atrizes portuguesas mais conceituadas e acarinhadas. Carreira que fez questão de recordar em conversa com o Notícias ao Minuto.
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Cultura Maria do Céu Guerra
"Estou tão cansada que acho que não vou conseguir responder nada de jeito". Como assim? Questionei quando ouvi tais palavras da boca de Maria do Céu Guerra. Com a carreira que construiu no mundo das artes, nem precisava de falar muito. Os anos dedicados à representação respondem por si.
Sentámo-nos no sofá, no alto do teatro A Barraca, no final de um dia de trabalho, e o resultado foi o esperado.
O som de toda a movimentação que se ouvia do lado de fora do Largo de Santos 2, em Lisboa, não interrompeu a calma e toda a sabedoria de uma artista que aos 76 anos acaba de ser considerada a Melhor Atriz da Europa.
Da infância aos prémios que continua a acumular depois de tantos anos em palco, passando pelo 25 de Abril e as mudanças que daí advieram, sobra uma certeza: o amor pela representação nunca vai desaparecer.
Foi há mais de 40 anos que criou a sua companhia de teatro. Hoje é mais ou menos difícil manter A Barraca viva?
Foi sempre difícil, mas no princípio era mais fácil. No princípio, o país estava mais ou menos em estado de graça, foi a seguir logo ao 25 de Abril, estávamos todos maravilhados com o que estava a acontecer. Os subsídios não eram grandes, mas correspondiam mais ou menos. Não existiam lóbis ainda, intrigas… Agora o ambiente é menos são.
Há 20 anos não haviam grupinhos de interesses e agora há. Porquê? Porque com a obrigação do Estado de apoiar a atividade cultural isso transformou-se numa coisa apetecível para os grupos de interesses
Consegue-se, hoje em dia, encher um teatro só com jovens?
Nós enchemos todos os dias, de dezembro a maio - tirando as férias - só com jovens, duas vezes por dia, que são as escolas para quem nós trabalhamos, durante seis meses, com espetáculos que fazemos especialmente para escolas. É um trabalho que fazemos há muitos anos e de que gostamos muito. Ver uma sala com 150 jovens e 10 professores, normalmente, é para nós uma grande honra. Jovens a vir à bilheteira comprar bilhete não, e também não fazemos espetáculos para jovens virem assim em massa. Fazemos para um público que pode ser mais velho ou mais novo.
As novas gerações vão ao teatro ou este é um hábito cada vez mais raro?
Não está a reduzir, está a aumentar, mas não aumenta tanto quanto nós gostaríamos. Não aumenta tanto quanto seria de esperar com o trabalho que a democratização do ensino produz e espera resultados. Antigamente as escolas não iam ao teatro em grupo e agora vão. É ótimo, é uma coisa extraordinária, uma coisa nova. Mas isso não se reproduz depois na vida dos alunos que acabam a escola secundária num grande acréscimo de público para o teatro. Há acréscimo de público, mas não é aquele que eu pensava que ia haver.
Felizmente, com a democratização do ensino, meninos que não têm um livro em casa passaram a ser ensinados, mas não foram educados. Esses meninos precisam de educação e a escola tem esse o dever e não o assume Mas acha que há alguma coisa que se podia fazer para tentar incentivar mais o povo a consumir mais cultura?
Se eu soubesse o que é que havia a fazer, fazia [risos]. Há uma coisa que acho que se deve fazer que é percorrer o país de Norte a Sul e mostrar todas as peças que se produzem no país e que têm possibilidades de ser levadas. Falar sobre o teatro, ter programas de teatro na televisão, os atores de teatro falarem sobre teatro nos meios de comunicação, o teatro ser uma coisa que acontece na comunicação social. É uma coisa que não acontece quase. Quando acontece um prémio a um espetáculo, ou a um ator, as coisas mudam um bocadinho, durante duas semanas, mas isso não é mudar uma sociedade. Aquilo que eu acho é que era muito interessante que nós pudéssemos ter um bom apoio a produção de digressões, de mostrar o que se faz. O que se faz para Lisboa, o que faz para o Porto ou o que se faz para Coimbra é o mesmo que se faz para o país todo. Não há portugueses de primeira e portugueses de segunda, e os impostos são todos iguais.
E consegue-se nos dias de hoje viver apenas do teatro?
Sim.
Quais são as maiores dificuldades que se sentem nesta área? É na criação ou na ajuda da concretização das peças?
O Estado é constitucionalmente obrigado a apoiar a cultura e fá-lo sempre. Às vezes com justiça, outras vezes sem justiça. Ultimamente têm-se tentado corrigir erros que eram tremendos e que foram sequência de governos do Cavaco Silva, do Passos Coelho… Sempre que a Direita está no poder há quebras no apoio à cultura. Quando a Direita perde o poder e há ou Esquerda, ou uma solução como esta que dirige o país, há mudanças. Mas, de qualquer modo, há 20 anos não havia lóbis e agora há. Há 20 anos não haviam grupinhos de interesses e agora há. Porquê? Porque com a obrigação do Estado de apoiar a atividade cultural isso transformou-se numa coisa apetecível para os grupos de interesses.
Há muito teatro muito chato que se faz, que são os tais teatro do aborrecimento, que há muito. Aborrecer o público é a pior coisa que se pode fazer. O teatro tem de ter essas coisas, tem de ter vontade de tornar aquelas pessoas que estão ali mais felizesCom o foco da televisão mais virado para as novelas e séries, e como representar no teatro é completamente diferente de representar na televisão, sente que possa haver jovens a querer ir logo para a televisão mais pela ‘fama’ e não tanto pela arte de representar?
Depende do nível cultural de cada pessoa. E nós temos de ver que houve uma coisa que se chama democratização do ensino. Antigamente só seguiam liceus e cursos superiores as pessoas que já tinha uma certa base cultural, ou tendiam a ter, ou eram exceções, ou eram meninos muito bons alunos. Ao democratizar-se a cultura, ao abrirem-se as universidades, os cursos superiores a toda a gente, devia ter havido um cuidado de que era preciso democratizar não só o ensino, mas a educação e a cultura. A cultura é geral, passa por ir às exposições, ao cinema, ao teatro, fazer parte de atividades culturais, e isso não foi democratizado. Assim como não foi democratizada a educação.
Ou seja, felizmente, com a democratização do ensino, meninos que não têm um livro em casa passaram a ser ensinados, mas não foram educados. Muita gente que vem de famílias que estão as horas inteiras do dia a trabalhar e que os miúdos ficam sozinhos, são miúdos que crescem com muito pouco apoio familiar. Esses meninos precisam de educação e a escola tem esse o dever e não o assume, não está a assumir.
A escola está a assumir o dever de ensinar e declinou completamente o dever de educar. O dever de educar passou para a família, é só da família, e às vezes as famílias não podem. Por vezes elas não têm essa educação que deveriam poder transmitir aos seus filhos. Por outro lado, também há muitas famílias que têm as horas todas ocupadas, que fazem horas extraordinárias, que trabalham longe, e os filhos ficam inteiramente dependentes da escola. Se a escola não assume essa responsabilidade, e é uma responsabilidade, depois o que o ensino acaba por poder fazer não é tanto como o que deveria poder fazer. Democratizar o ensino, sim, democratizar a educação também. A escola tem de ter horas livres para os alunos ficarem lá, eventualmente estudarem lá, fazerem disciplinas que não as obrigatórias, fazerem desporto. Têm de ser um espaço mais aberto porque senão criam-se pessoas que só sabem a matéria que estudam e isso é muito mau.
Sente que a escola devia dar mais apoio no acesso à cultura?
As pessoas só gostam do que conhecem. Se não lhes são dados valores que potenciem interesse por esta ou aquela matéria, ela não vai cair como o pentecostes em cima da cabeça das crianças. Tem de ser em família, na escola ou por um milagre qualquer de vocação, mas isso é especial. A gente não pode esperar que os nossos alunos sejam todos extraordinários e génios. A sociedade moderna não está feita para heróis, está feita para pessoas normais e a escola tem de ter um quadro de responsabilidades maior no crescimento.
A gente passa a vida a saber só bocadinhos de histórias. Só no teatro, no cinema, só na arte é que a gente consegue saber mais do que issoRepresentar é um dom que nasce connosco ou consegue-se aprender a ser ator?
Consegue-se aprender. O que nasce com as pessoas é a vontade de, que vem normalmente acompanhada daquilo que se chama jeito. É raro haver vontade quando não há jeito. A vontade nasce quando se é pequeno e faz-se meia dúzia de macacadas diante da família ou dos amigos e eles gostam. Também acontecem coisas diferentes. Por exemplo, os tímidos terem paixão pelo teatro, terem uma vontade enorme de irem para o teatro. Normalmente são caladinhos e, de repente, é-lhes solicitada uma coisa e eles são capazes de fazer algo de que ninguém estava à espera. Não quero dizer que os tímidos não têm o tal jeito. Não têm é o à-vontade de se mostrar, mas têm desejo. Acho que o teatro tem de estar ligado a prazer, à alegria, à festa, à vontade de estar em conjunto, à comunicação.
Tudo o que não tem estas componentes acaba por poder ser teatro, mas é sempre muito chato. E há muito teatro muito chato que se faz, que são os tais teatro do aborrecimento, que há muito. Peter Burke, que é um génio do teatro moderno/contemporâneo diz que o maior inimigo do teatro é o aborrecimento. Aborrecer o público é a pior coisa que se pode fazer. E realmente é feito por aquelas pessoas que gostam do teatro, mas que gostam sem alegria, sem prazer. Com vontade de comunicar, mas só comunicar as coisas mais sombrias, mais difíceis, mais tenebrosas, sem o fulgor que o teatro tem de ter. O teatro tem de ter essas coisas, tem de ter vontade de tornar aquelas pessoas que estão ali mais felizes, falarem do que viram, despertar para coisas de que nunca se tinham lembrado antes. Isso é que é bom!
É uma grande felicidade quando vê que transparece isso para o público? É o maior sentimento que se tem em cima do palco?
É! O maior sentimento é o da comunicação, alguma alteração naquelas pessoas e, de facto, tornar as pessoas mais sensíveis e mais humanas. A possibilidade de verem histórias que nunca lhes passou pela cabeça que pudessem acontecer, as histórias completas. A gente passa a vida a saber só bocadinhos de histórias. Só no teatro, no cinema, só na arte é que a gente consegue saber mais do que isso, e é uma ficção. Mas o teatro tem uma tal força e os atores são tão verdade em cena que as pessoas têm a experiência deslumbrante de conhecer uma história completa.
O que recorda dos momentos em que a sua mãe juntava várias pessoas para fazer peças de teatro?
Era muito giro! Eu gostava muito! Nunca fizemos uma peça completa, mas ensaiávamos muito.
Pode dizer-se que foi aí que começou a nascer o bichinho por esta arte?
Não! Isso não tinha nada a ver com o bichinho do teatro. Tinha a ver com a paixão pela vida cultural. Era ler, fazer, falar, ouvir falar, ir ao cinema…
Até porque só na universidade é que começou a frequentar companhias de teatro. E foi para a faculdade com a ideia de ser escritora… O que é que a fez mudar?
Foi começar a fazer teatro. Começar a gostar muito de fazer teatro. Quando vim para a casa da comédia fazer teatro quase todos os dias, isso ocupava imenso a minha vida e, de repente, a comunicação que eu precisava de ter através da escrita foi completamente cumprida pela comunicação que fazia em cena, com o público, com os colegas, com as pessoas que estavam comigo, com o que aprendia. Deixei de ter necessidade de estar sozinha a escrever e a imaginar coisas.
Mas isto antes da Revolução dos Cravos… E nessa época ser artista não era muito bem visto...
Era! Já havia atores com muito prestígio.
Mas havia dificuldades em ser artista?
Havia menos gente que queria ser artista, havia menos gente que sentia a vocação de ser artista, havia muito poucos artistas. Mas, entretanto, por exemplo, havia talvez centenas de grupos amadores espalhados pelo país todo. Gente a fazer trabalho cultural pelas coletividades, pelas associações.
Acha que isso se perdeu?
Houve a tentação de essa gente se transformar em profissional. Não é essa gente, a gente que naturalmente tinha o seu trabalho e que gostava de fazer trabalho artístico, fosse em teatro ou dança... Essa vida associativa foi substituída por vida profissional. Criou-se a possibilidade daquelas pessoas que gostavam de fazer trabalho artístico o serem profissionalmente. Hoje há imensas escolas de teatro e cinema que não havia.
Tenho muita pena que chegando a uma idade a vida esteja já num estado muito avançado e a gente já não tenha o mesmo tempo para a frente que teve para trás
O que recorda do 25 de Abril? Onde é que estava?
Na véspera estava à espera de saber o que é que ia acontecer porque já se sabia mais ou menos – esperava-se uma grande coisa, mas não se sabia o que é que era. Na noite do 25 de Abril andámos um pequeno grupo de pessoas de um lado para o outro, cheios de nervos, a querer saber o que é que ia acontecer. No dia 25 de Abril andei avenida abaixo, avenida acima, nuns nervos, numa alegria que não cabia em mim quando percebi que realmente tinha avançado a Esquerda e tinha vencido.
Depois andei todo o dia a tentar perceber, tentar saber, ver… Foram momentos extraordinários. Aquela tarde no Largo do Carmo com o Marcelo Caetano lá dentro e o povo todo cá fora… Foram momentos únicos. Depois eu tinha muita vontade que acabasse a censura. Tinha participado em muitos abaixo-assinados para acabar a censura porque era uma coisa insuportável. A censura é uma vergonha. E quando dois dias depois, por um lado libertaram os presos políticos e por outro acabaram com a censura, foram dois momentos altíssimos porque é mais do que um golpe político, é acontecer aquilo que se esperava que acontecesse. Depois só faltava acabar a guerra e depois faltaria fazer a revolução, isso é outra coisa.
E como foi o pós-25 de Abril?
Antes do PREC [Período Revolucionário em Curso] houve a euforia de ter havido um golpe que tinha acabado com a ditadura. As pessoas tocavam a buzina e cumprimentavam-se na rua. Depois foram as campanhas de alfabetização que era uma coisa deslumbrante, as dinamizações culturais a crianças, as cooperativas, a Reforma Agrária... Foram coisas deslumbrantes que aconteceram e depois deixaram de acontecer em 75. Foi um ano de acontecimentos com o país a avançar no sentido de tentar fazer a tal revolução que se queria e também forças contrárias.
Acredito que já teve de recuar muitas vezes ao passado para contar a sua história. O que sente quando se lembra de tudo o que viveu? Sente saudades do que já passou?
Recordo só aos bocadinhos, nem seria capaz de recordar tudo… [risos] Não [sinto saudade]. Tenho é muita pena que chegando a uma idade a vida esteja já num estado muito avançado e a gente já não tenha o mesmo tempo para a frente que teve para trás. Acho que isto não devia ser assim.
Mas vivia tudo da mesma maneira?
Mudava algumas coisas… Não sei se mudava. Eu teria sempre vontade de fazer o que queria fazer e fiz sempre o que queria fazer. Nunca, nem em posições de família, nem em posições económicas… Há uma coisa que talvez eu não tivesse feito assim que foi a criação dos meus filhos. Não que eles não fossem muito felizes, eu é que não fui muito feliz porque a minha vida profissional - que eu nessa altura era nova, cheia de vida e vontade de fazer – fez com que os meus filhos crescessem não completamente comigo. Se eu voltasse a viver, os meus filhos continuariam a ser acompanhados, criados e apoiados pela avó como foram, mas eu não me tinha privado de estar com eles. Ou seja, eu ia viver lá para casa.
O que acontece no palco é verdade e não pode ser mentira porque se não o público vê e a gente sente-se uns trapalhões de feira. Não pode ser mentira De todas as personagens a que deu vida, qual é que teve mais da Maria do Céu?
Todas têm um bocado [de mim]. As mais divertidas são as que têm menos. Agora na ‘Torre de Babel’ [peça de teatro que vai voltar a estar em cena na A Barraca no próximo ano] estou a fazer uma mulher que é escandalosamente o contrário de mim e divirto-me porque é aquele lado da construção. Pelo menos para mim, é mais visível. Ela tem gestos que não são os meus, tem uma maneira de falar que não é a minha, tem sentimentos que não são os meus, tem intervenções, vontades… tudo naquela mulher é o contrário de mim e isso torna mais divertida a construção. Depois há personagens que às vezes têm coisas nossas que mexem um bocadinho de uma forma dolorosa em nós. Há outros dramáticos que são experiências que nós vivemos no palco e a estudar que também são difíceis.
Mas eu tenho sempre presente que o teatro é uma construção, que a arte é uma construção. Aquilo está-me a acontecer e eu estou a viver uma experiência que às vezes pode ser dolorosa, mas é construído. Agora, é verdade, o que acontece no palco é verdade e não pode ser mentira porque se não o público vê e a gente sente-se uns trapalhões de feira. Não pode ser mentira.
Nós próprios, mesmo sabendo que são construções, estamos a usar para essa construção um conhecimento, uma pedra que somos nós. Nós estamos a usar-nos a nós como material e aí está incluído o sentimento, o sofrimento. O sofrimento não é falso. Às vezes acabamos de fazer uma cena dramática e estamos com umas dores de cabeça muito semelhantes a quando se chora a sério, a quando se tem um desgosto a sério… É uma construção, mas é uma construção dolorosa que exige controlo. O estímulo é falso e a reação é verdadeira. Nos ensaios construímos um universo em que aquele estímulo tem de passar a ser verdadeiro.
É preciso fazer as coisas pela primeira vez. E a antiguidade não é a antiguidade clássica, como na tropa em que a antiguidade é um posto. Não melhora um artista que não seja um artista extraordinárioEntre os muitos trabalhos que fez, seja no teatro, televisão e cinema, está o filme ‘Os Gatos não Têm Vertigens’, de 2014. Qual o feedback que recebeu na altura?
Muito bom, muito bonito. Tive muitos prémios, todos os que se dão à interpretação em cinema, que é muito agradável. E sobretudo o público, o grande prémio é o prémio do público. As pessoas ainda hoje me dão beijinhos e me dizem que gostaram.
E já recebeu muitos prémios ao longo da carreira… Qual foi o que a deixou mais honrada, podemos dizer que foi este último, o de Melhor Atriz da Europa?
Não… Este último foi muito agradável, mas eu gosto dos prémios que me dão, não faço hierarquia.
Disse uma vez numa entrevista que: “A antiguidade não é um posto em arte”. Porquê?
Porque não… Porque o Arthur Rimbaud deixou de escrever quando tinha 18 anos e no entanto tem uma obra fascinante, porque a novidade às vezes é deslumbrante, porque não tenho aquela coisa do é preciso ser absolutamente moderno, mas acho que a modernidade e a transformação, a novidade, em arte, contam. É preciso fazer as coisas pela primeira vez, que elas sejam feitas pela primeira vez. E a antiguidade não é a antiguidade clássica, como na tropa em que a antiguidade é um posto. Não melhora um artista que não seja um artista extraordinário. Dá-lhe mais técnica, dá-lhe mais sabedoria, mas não lhe dá a capacidade que um artista que tem o poder transformador da arte e que nasceu com ele e que trabalhou para o aprimorar, mas que tem consigo já um olhar visionário que a sua qualidade de artista traz com ele, não é a antiguidade que lhe dá.
Não há nenhuma regra obrigatória que nos ensine a não ser criativos e se pensarmos que é, então vamos perder o comboio da nossa arteChegou também a dizer: “A nossa profissão nunca é uma coisa adquirida”. Por esta razão, a sua filha, Rita Lello, procurou os conselhos da mãe?
A nossa profissão não é uma coisa adquirida porque a arte, seja ela qual for, e o teatro muito especialmente, por vezes, atira o artista incauto para uma situação que é: isto faz-se assim. E em arte, em teatro, não há o ‘isto faz-se assim’. As coisas fazem-se como a gente as inventa e nós inventamos na exata dimensão do que investe no que está a fazer, no que tem vontade de alteração de novidade, não há receitas e é por isso que a arte não é uma coisa adquirida.
Um dia podemos ter começado a nossa vida por sermos uma promessa e depois, porque achamos que aquilo que atingimos é adquirido, transformamo-nos em banais, em procurar receitas, procurar sermos iguais uns aos outros. Essa coisa de cada coisa que nos calhe na mão para fazer ter de ser uma novidade para nós: Quem é?; O que é?; Como é que vou fazer?; Nada é adquirido nesse sentido. Não há nenhuma regra obrigatória que nos ensine a não ser criativos e se pensarmos que é, então vamos perder o comboio da nossa arte. Podemos não perder o comboio da nossa profissão. Às vezes tem-se uma boa posição profissional e começa-se a andar para trás na qualidade artística.
O que mais custa no envelhecimento? O corpo envelhece mas a alma não?
O corpo envelhece naturalmente e a alma também. Acho que o envelhecimento é tudo uma chatice.
Devemos tentar avaliar-nos por aquilo que somos capazes de dar aos outros. O homem vale por aquilo que dá aos outros e não por aquilo que lhes tira
Qual a lição que aprendeu ao longo da vida e que se tornou mais valiosa para si?
Duas coisas: Uma coisa é não perder a ingenuidade, a frescura, o ser mais aluno do que professor, não estar sempre com o antigamente, o era uma vez... Viver para a frente, ter curiosidade.
Outra coisa, que também é muito importante para mim, que é perceber que nós somos, ou devemos querer ser e valer pelo que damos aos outros e não pelo que lhes tiramos. Há pessoas que caminham a tirar a segurança às outras, a competir, a querer ser melhores, e isso é um grande erro. Primeiro porque dá uma instabilidade e uma coisa muito cansativa, isto só no aspeto prático. Depois no aspeto moral e ético, é o contrário do que devemos fazer. Quanto mais nós dermos, mais temos. Mais amigos temos, mais nos sentimos integrados no mundo, mais fizemos. Devemos tentar avaliar-nos por aquilo que somos capazes de dar aos outros. Não é ser palerma, se olhares para o lado e vires que alguma coisa que tu quiseste dar, quiseste ajudar, quiseste fazer, está a ser subestimado, desviado, deve ser imediatamente interrompido e não se deve continuar. Agora, o homem vale por aquilo que dá aos outros e não por aquilo que lhes tira.
Tendo já vivido em épocas completamente diferentes, como olha hoje para o papel da mulher na sociedade?
Evoluiu muito, cresceu muito.
A mulher evoluiu extraordinariamente e a maior parte da humanidade masculina não esteve à altura dessa evolução Mas ainda é difícil ser mulher?
Ainda é muito difícil. A prova é que elas são assassinadas e é por um poder masculino fisicamente mais forte, que se serve de forças que a mulher não usa normalmente que é a agressão. A mulher evoluiu extraordinariamente e a maior parte da humanidade masculina não esteve à altura dessa evolução. Estou a falar no mundo ocidental. Porquê? Porque o homem agarrou-se sempre a valores de superioridade sobre a mulher que fez com que a evolução dela o encontrasse parado em vez de o encontrar também ele em evolução.
E ela quando chegou ao mesmo estatuto do homem passou com imensa facilidade porque ela estava habituada a batalhar, a muito trabalho para conseguir. Hoje é mais numerosa nas universidades, tem mais competência do que a maioria dos homens, melhores notas… e muitos homens não aguentam isso, não quero dizer todos. E isso tem-no prejudicado principalmente a ele, ao homem. Agora, isto vai ser complicado porque deixa feridas na relação, até na vida sexual. As mulheres às vezes apetece-lhes fugir do binómio homem-mulher e isso não sei se será bom no futuro.
Fujo da tristeza, da culpa, da solidão. E corro vertiginosamente atrás do tempoDo que é que foge a sete pés e do que corre atrás?
Fujo da tristeza, da culpa, da solidão (embora muitas vezes me apeteça estar sozinha, mas isso não é solidão), e corro atrás das coisas de que gosto. Corro atrás de alegria, de alguma coisa que me cheire a felicidade, de ler coisas que goste, de qualquer proposta que me faça rir, de qualquer proposta que tenha como base amizade, qualquer desafio daqueles que considero meus amigos. E dos meus filhos, do meu neto… E corro vertiginosamente atrás do tempo.
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