"Portugal é um país de velhos, mas as pessoas de idade são mal tratadas"
Simone de Oliveira dispensa qualquer tipo de apresentação. O nome sonante faz jus à figura imponente, cheia de força. A propósito da entrevista ao Vozes ao Minuto, a nossa visita à casa da cantora revela-se uma partilha de histórias. Frontal, Simone desabafa: "Eu resolvia muita coisa à estalada".
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Cultura Simone de Oliveira
Corre uma tarde fria quando Simone de Oliveira nos recebe em sua casa. De imediato, a sua energia contagiante invade a sala acolhedora onde se conversa sobre a vida.
Da vitória de Donald Trump nas eleições presidenciais norte-americanas, à forma como os idosos são tratados em Portugal, passando pelo pouco valor que a nova geração dá ao que tem, foram vários os temas abordados nesta entrevista ao Vozes ao Minuto.
Simone é uma mulher viva, uma mulher livre. No auge dos seus 78 anos abre-nos o seu livro de histórias... e que histórias. A vida da cantora tem sido repleta de desafios, mas também de grandes conquistas. Confessa-se uma enorme fã de séries criminais, embora as mesmas não substituam os bordados que tanto gosta de fazer. Também não deixa de parte o prazer de fumar um cigarro, até porque já não tem idade para abdicar de prazeres.
Como viu a tomada de posse de Donald Trump?
Tive um desgosto enorme. Ainda tive esperança de que Hillary Clinton ganhasse. Eu não o suporto. É uma ‘coisa de pele’. Eu detesto répteis, para mim é a mesma coisa. Não consigo [gostar dele]. Não sei o que é que o norte-americano pensou, fez as suas escolhas. Agora todo o mundo terá de arcar com elas.
Não suporto o Trump. É uma 'coisa de pele'. Eu detesto répteis, para mim é a mesma coisaUma das críticas mais feitas a Trump é a de que não respeita as mulheres. Alguma vez passou por este preconceito?
Nunca deixei que isso acontecesse, mas houve algumas coisas quando comecei a cantar. Era uma época em que uma mulher ser cantora, bailarina, ou artista de circo era uma coisa que não existia na nossa sociedade falsamente católica, falsamente puritana. Faziam tudo, mas era por ‘trás da cortina’. Costumo dizer que eu nasci livre. Nasci livre por dentro. Portanto, tudo o que foram convenções fui ultrapassando. Tudo o que as pessoas diziam ‘não se faz’, eu fazia.
Foi por isso que quis ser cantora?
Eu não persegui sonho nenhum [de ser cantora]. Nunca quis ser coisa nenhuma. Aconteceu porque teve de acontecer. Foi o que aconteceu a mim. Era para casar e ter filhos. Casei e fugi de casa. O médico aconselhou que seria bom.
A Simone foi vítima de violência doméstica no seu primeiro casamento. Exigiu uma grande coragem fugir de casa?
Naquela altura, em 1957, era difícil. Mas pensei, 'se estar casada é isto então vou-me embora'. E eu tinha 19 anos. Comecei a namorar muito cedo aos 16 com a família ao lado. Não há comparação. Talvez se eu tivesse olhado bem para dentro de mim tinha percebido. Mas depois era o pai, era a mãe. Noivar à maneira antiga. Cada vez que tinha uma dúvida vinha o peso da tradição, da religião, havia uma barreira, depois parti a barreira de uma vez.
Como é que os seus pais reagiram?
Tive uns pais que foram capazes de ir percebendo este meu jeito de viver e de pensar. Embora o meu pai fosse rígido, não sei o que é que teria acontecido se não os tivesse. Havia um padre muito amigo, que dizia à minha mãe, 'A Simone devia ter nascido daqui a 100 anos, vai estar sempre ao contrário' e é verdade. Eu sempre vi as coisas erradas.
Costumo dizer que eu nasci livre. Nasci livre por dentroA nível social, o caminho que se fez até aqui foi positivo?
Claro que foi positivo. Depende das pessoas. Tenho filhos e netos extraordinários. Nunca tive uma dor de cabeça. Mas hoje acho que há excesso de liberdade. Filha minha não ia para o Bairro Alto aos 13 anos. Ou então eu ia com ela, isso é outra história. Mas agora já não vejo tanto isso e ainda bem.
Então, atualmente, já não há esse nível de educação?
Não, também a vida dos pais é um inferno. Antes havia mais tempo, dava essa sensação. Depois acho que não é só a escola que deve educar, também tem de ser em casa. A escola é fundamental e não aceito de maneira nenhuma que os alunos batam nas professoras e depois que os pais também o façam. Ainda bem que nada desse género se passou na minha frente, porque perco a razão quando me exalto.
As pessoas mais jovens dão menos valor ao que têm hoje em dia?
Não dão valor nenhum. Acham mesmo que os mais velhos têm a obrigação de dar aquilo que eles acham. Perdeu-se o gosto do inesperado, o gosto do sonho. Os namoros de hoje é ‘bora lá e depois vamos para a cama’. Perdeu-se aquela coisa do ‘vai telefonar, não vai telefonar’, ‘será que nos podemos encontrar àquela hora?’… Evidentemente que hoje não há ditadura e que acabar a ditadura foi extraordinário e a liberdade é uma coisa ótima. A libertinagem é outra. Não confundamos. Acho que em liberdade o meu espaço acaba quando começa o seu. E as pessoas não têm noção.
Filha minha não ia para o Bairro Alto aos 13 anos. Ou então eu ia com ela, isso é outra históriaPortugal já não é um país para velhos?
Portugal é um país de velhos. A população é muito idosa. Mas realmente as pessoas de idade são muito mal tratadas neste país. É um facto. Não estou a falar dos da minha profissão, que também são mal tratados e mal amados. Nós não amamos a nossa gente de idade. É normal que sejam deixados nos hospitais pelos filhos e pelos netos? Não tenho capacidade para compreender como é que se deixa um pai ou uma mãe. Isso dá-me fúrias interiores, raivas interiores. Dá-me mesmo aquela coisa de ir ter com as pessoas e de as abanar. Eu resolvia muita coisa à estalada. Eu sei que não resolve nada, mas são assuntos que me ultrapassam.
Acha que o atual governo tem feito mais do que os anteriores?
Sim, tem feito. Eu tenho sempre a esperança de que as pessoas que vão para o governo não vão para fazer mal. À partida não acredito que haja centenas de cadeiras a pensar ‘agora vamos lixar isto tudo’. E depois embrulham-se todos, porque não vão à realidade.
Eu resolvia muita coisa à estalada. Eu sei que não resolve nada, mas são assuntos que me ultrapassamO que acha que seria preciso?
Não sei, não faço a menor ideia. Governar uma casa já é complicado, governar um país deve ser uma dor de cabeça de todo o tamanho. E depois haverá sempre ricos e pobres. Agora, neste país há muitos ricos que roubam muito e depois os que ganham 250 euros são aqueles que não têm aumentos [na pensão]. Depois dizem que eu sou comunista, o que não sou. Não sou nada. Chamo-me Simone e canto cantigas e acho que as pessoas devem ser gente. Dizer bom dia, muito obrigado, com licença… olhar para o lado e tentar ajudar o próximo. Ajudar sem ninguém saber, não para vir nos jornais.
À partida não acredito que haja centenas de cadeiras a pensar ‘agora vamos lixar isto tudo’. E depois embrulham-se todos, porque não vão à realidadeO que é que as pessoas não estão a fazer para melhorar a vida dos mais velhos?
Sensibilidade e amor. Não olham para o outro. Eu acho que é um problema de desamor. As pessoas não se amam, não se gostam de verdade, não consigo perceber. Todos os dias me espanto. Felizmente ainda tenho a capacidade de me espantar. Depois acho que não sou eu que estou bem. Depois culpabilizo-me por outras coisas, de que poderia ter feito melhor, poderia ter ajudado mais.
Chamo-me Simone e canto cantigas e acho que as pessoas devem ser genteFalta-lhe fazer alguma coisa?
Falta-me continuar a viver que é uma coisa que eu adoro. Tenho tido uma vida boa. E eu devo considerar-me uma pessoa feliz. Não sou rica, sou remediada, umas vezes mais para cima, umas vezes mais para baixo. Tive dois problemas oncológicos de que me salvei. Tenho filhos ótimos, tenho netos ótimos, tenho amigos. Esta casa é o meu pombal, mas é minha. Gosto muito de viver, gosto de dar uma boa gargalhada, não gosto nada de estar aborrecida, nem de chorar muito. Talvez de vez em quando eu tenha um bocadinho de solidão. Não é fácil morar sozinha. Tento muito que isso não se sobreponha. Não sou muito de me deixar ir abaixo.
*Pode ler a segunda parte desta entrevista aqui.
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