"A 3.ª estrela começou a perder relevância. Preocupa-me é servir bem"
Em entrevista ao Lifestyle ao Minuto, o chef português falou sobre o novo projeto que está prestes a abrir no Guincho, o Maré, da já não esperada terceira estrela Michelin e ainda da vila que inaugurou no Alentejo.
© Grupo José Avillez
Lifestyle José Avillez
É no antigo restaurante Raio Verde, no Guincho, que vai nascer este mês de maio o novo projeto do chef José Avillez. Chama-se Maré, terá um menu dedicado aos sabores do mar e uma vista que poucos se podem orgulhar de ter.
"Nesta linha, não há mais nada que possa ser reconstruído e, por isso, ou era este ou era comprar um dos outros. É uma coisa única. Em cima das rochas, com o mar, com este vento de Guincho que chega aqui, acho que é um sítio especial", revela em entrevista ao Lifestyle ao Minuto.
Além de desvendar alguns pormenores do novo restaurante, falou também da Casa Nossa, um projeto de turismo que inaugurou em março no Alentejo. "É natureza também, no interior, em cima da água, mas da barragem do Alqueva, e estamos muito felizes."
No próximo ano, Portugal terá direito a um próprio guia Michelin para o país, notícia que deixou o chef com "mixed feelings". Já sobre vir a ganhar a terceira estrela é algo que "começou a perder relevância", confessa.
O Maré ficou guardado na gaveta durante algum tempo. Ainda antes do começo da pandemia já se ouvia falar deste restaurante. Foi um processo complicado até à abertura?
Já está, de facto, praticamente pronto há três anos. Houve aqui uns problemas de licenciamentos, coisas burocráticas sem gravidade, que infelizmente demoraram tempo. Meteu-se a Covid à mistura e por isso houve este atraso. Não pensando no passado, pensando no futuro e no presente, estamos agora praticamente prontos para abrir. Iremos fazê-lo a meio do mês de maio, é a previsão. Estamos a formar equipa, a fazer provas de menus e a fechar tudo para arrancar.É um restaurante muito mais voltado para o mar, para o Atlântico
E que conceito é este do Maré, um pouco diferente dos outros espaços do grupo?
Há alguns pratos que se cruzam com um ou outro do Páteo, no Bairro [do Avillez]. É um restaurante muito mais voltado para o mar, para o Atlântico. Digo a brincar que fiz um pacto aqui com os restaurantes desta zona, desta linha, de que sou cliente e gosto muito, de não estar a servir o peixe inteiro grelhado, de não estar a servir os filetes com o arroz de berbigão ou o arroz de tomate.
O objetivo foi trazer algo diferente e que não existia nesta zona?
São coisas muito emblemáticas daqui, desta linha, e por isso quis fazer algo diferente. Não digo que vai ser melhor, não é essa a intenção. É fazer diferente, tão bom, mas diferente. Por exemplo, teremos aqui numa sala um bar, onde é a pastelaria também e a zona das entradas frias, que terá um bar de crus, com uns tártaros, uns marinados e coisas do mar. Depois alguns petiscos e entradas mais típicas com ‘'twist', um escabeche, um ovo com molho do bife, assim coisas que me fazem lembrar de alguma maneira a minha infância.
Eu nasci a cinco minutos de carro daqui e, por isso, isto é muito a minha casa. Aprendi a pescar polvos aqui perto e apanhava percebes. É ir buscar algumas das coisas que até já deixei de comer há mais tempo e que gostava de fazer em casa e passar para aqui. Depois, também, obviamente, o peixe. Robalo, que é dos meus peixes preferidos, corvina também, ter polvo, lula, salmonete, carabineiro, camarão tigre. Conseguir jogar com isto sem ter uma carta demasiado extensa.
Aqui, de facto, em cima das rochas, com o mar, com este vento de Guincho, que chega aqui, acho que é um sítio especial
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As opções de carne serão reduzidas em relação às restantes propostas?
Teremos quatro pratos de carne diferentes. E depois também uma zona mais de mariscos. Aí consegue-se comer só cozidos, grelhados ou ao natural. A ideia nos peixes é ter várias guarnições que se podem escolher e juntar ao prato. Acho que se há coisa que acaba por ser um pouco repetitiva na maior parte dos restaurantes são as guarnições, quase sempre as mesmas. Vamos tentar ser um pouco diferentes, mas diria que é um restaurante com o compromisso entre a tradição e a modernidade, mas onde a tradição está muito presente. Toda a vida comi aqui, desde miúdo, nesta linha, mais cozinha tradicional e marinheira. [O Maré] terá um 'twist', criatividade aplicada em alguns ingredientes e maneiras de servir, mas é uma essência mais tradicional.
É o segundo restaurante que abre em Cascais© Grupo José Avillez
Não faria sentido se não fosse assim?
Confesso que nestes três anos ainda não tinha decidido o que ia servir. É uma coisa que no último mês é que se decide. Acontece sempre em todos os projetos. A pessoa começa a ver as coisas construídas, senta-se aqui, vai para a cozinha, vê, experimenta, leva o prato para a mesa. Comi aqui pratos que apesar de serem muito bons, sentava-me a comer e não tinha nada a ver o prato com a vista. Não jogava. Por isso, temos sempre esse cuidado, que acho que faz sentido.
Já havia aqui o espaço, mas um conceito próprio e pensado para ainda não existia nestes três anos. Tem de existir toda essa ligação?
Tem de ser este cruzamento entre o que eu sinto, com a decoração, com a vista, com as memórias que tenho daqui, deste bairro onde vivi, onde morei e nasci. Por isso, espero sempre pelas últimas semanas antes da abertura para definir exatamente. Obviamente que no desenho da cozinha temos alguma ideia do que vamos fazer, se não estávamos tramados.
Maré era um bocadinho a ideia do 'há mais marés do que marinheiros'. As coisas têm de fazer sentido para valer a pena estar a fazer
Conhecia o antigo restaurante que aqui estava, o Raio Verde?
Acho que isto fechou em 1984, mas lembro-me de vir aqui muito pequeno, de passar aqui. Tenho lembranças do restaurante ainda em pé, mas tenho ideia de ter vindo. Pode ser daquelas ideias que se criam, a minha mãe não consegue confirmar.
É mais especial abrir este restaurante aqui, mais perto das suas raízes, do que o Cantinho do Avillez, em Cascais? É mais especial por isso?
Os dois são especiais. Acho que este acaba por ser mais especial no sentido em que esta é uma localização única. Aqui, nesta linha, não há mais nada que possa ser reconstruído e, por isso, ou era este ou era comprar um dos outros. É uma coisa única. O Cantinho [do Avillez], apesar de eu adorar o espaço, foi dos restaurantes a que fui mais pequeno. Acho que abriu em 1978, eu nasci em 79. Lembro-me de lá ir muito pequeno, ainda com o meu pai. Era o Lucullus. Quando fiquei com esse espaço também gostei muito e gosto muito de lá estar. Mas aqui, de facto, em cima das rochas, com o mar, com este vento de Guincho, que chega aqui, acho que é um sítio especial.
E como é que surgiu o nome para o projeto? Surge depois do conceito que foi sendo criado?
Chama-se Maré. Maré era um bocadinho a ideia do 'há mais marés do que marinheiros'. As coisas têm de fazer sentido para valer a pena estar a fazer. Brinco com o 'há mais marés do que marinheiros' já que acabamos por conseguir fazer muito mais pratos do que os cozinheiros. Um cozinheiro consegue fazer muitos mais pratos. É um bocadinho essa brincadeira, das marés e dos marinheiros. É o mar, a maré e o Atlântico.
O restaurante terá capacidade para 180 pessoas© Grupo José Avillez
Este é um projeto que pode atacar as estrelas Michelin?
Não acho que seja. É um restaurante com 180 lugares, não é de todo essa a intenção, como na verdade em muitos deles não o era. No Encanto não era a intenção, mas tinha as características para receber a estrela. Por exemplo, a Tasca do Dubai não tinha de todo e acabámos por ganhar a estrela. Aqui é para ser descontraído, mas focarmos nos pontos quando pensamos em Michelin, na qualidade dos ingredientes, na criatividade, na confeção e no serviço. Aqui será um desafio grande operacional.Deixa de haver esta festa ibérica, que também era divertidaNo ano passado, foi anunciado que Portugal terá o seu próprio guia Michelin. Como é que viu esta notícia? Acha que pode ser importante para o país?
Era uma coisa de que já se falava, já me tinham abordado. Eu tenho 'mixed feelings'. Por um lado, acho que pode fazer com que haja um olhar mais atento para Portugal, se calhar com mais visitas dos inspetores. Por outro, gostava também de estar integrado com Espanha. Estar lá com chefs que eu sempre admirei, e que cresci a ver o trabalho deles, e poder partilhar esse momento. Vamos ver exatamente as razões para que isto acontecesse e como é que vamos beneficiar, ou não, de uma mudança dessas.
A terceira estrela, que é importante na visão da carreira de um chef, começou a perder relevância para mim, numa perspetiva pessoal
Em conjunto com Espanha, um turismo gastronómico poderia funcionar melhor nessa relação ibérica?
Há também a questão de não se dar uma estrela a um restaurante porque tem de se comparar com outros que já têm uma estrela. E se formos comparar com o que é mais comparável, que são só os de Portugal, se calhar vai-se dar mais estrelas. Com os preços a aumentarem, começam a existir diferenças e alguns restaurantes portugueses ficam mais caros do que os espanhóis. Isso pode chocar algumas pessoas. A carga fiscal que temos cá faz diferença. Há uma série de coisas que faz com que os mercados sejam diferentes e, por isso, uma análise que faça uma linha a direito nos dois mercados é mais difícil de fazer. Se for algo dedicado ao mercado português, como estão a fazer agora, se calhar é mais justo. Mas deixa de haver esta festa ibérica, que também era divertida.
E poderá ser desta que teremos a terceira estrela para Portugal?
Não fazemos ideia, nada, nunca. Não sabemos quando vem, quando se vão dar, se vão dar. Não estamos, honestamente, a contar com isso. Estamos a trabalhar nesse sentido, mas sem ser para isso. Para ser muito honesto, já pensei mais na terceira estrela. Hoje em dia, de repente, temos um feito histórico de ganhar uma estrela num restaurante vegetariano [Encanto], um dos únicos na Europa. Depois disso, e de uma estrela no Dubai, uma estrela internacional, num restaurante português [Tasca], já foi uma coisa muito marcante. Por isso, a terceira estrela, que é importante na visão da carreira de um chef, começou a perder relevância para mim, numa perspetiva pessoal. É como tudo. Está longe de ser a coisa mais importante para nós. Focamo-nos noutra coisa. O que me preocupa é servir bem os clientes, propor-me a uma coisa e não defraudar expetativas.
É um conceito diferente do que há em Portugal. É uma vila com serviço de hotel
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Em março abriu um projeto de alojamento no Alentejo, a Casa Nossa. Como é que surgiu esta ideia?
Vou ser honesto, a Casa Nossa começa com um projeto muito mais pequeno, de casa de férias, de família, numa perspetiva mais pessoal. Quando começa a Covid, deparo-me com a situação de que não poderia fazer uma casa do género. Estava tudo fechado e pensei 'isto tem de se pagar', como eu gosto de fazer os projetos e pagá-los, no sentido de rentabilizá-los. Como também não tenho tempo nenhum, comecei a pensar: 'casa de férias e vou lá três fins de semana por ano'. Não faz sentido. Depois, ganhou uma dimensão completamente diferente e tivemos dois anos a construir. É um projeto muito especial para mim. Comprámos o terreno e não havia nada, só uma ruína. Acabei por ser eu a desenhar a casa.
E que conceito é que ali foi criado?
É um conceito diferente do que há em Portugal. É uma vila com serviço de hotel. Vamos fazer alguns 'open house', onde os clientes podem arrendar quartos separados, mas é uma coisa que vamos limitar a duas, três ou quatro vezes por ano. Não tem tanto a ver com o objetivo comercial, mas também como o objetivo que quero que a casa seja vivida. Em família, em grupo de amigos. Até podem ser seis casais, oito casais, mas combinam entre eles e vão.
[A restauração] é um negócio de muitas contas. Se não se fizer muitas contas, muito controlo, e as coisas não forem muito certinhas, não é um negócio milionário. É um negócio de muito trabalho e de alguma loucura
Não é uma lógica de turismo rural em que cada um fica numa casa, não se conhecem e não há ligação nenhuma.
Isto é conhecido como uma vila para arrendar. Tem aqui o extra de ter permanentemente uma equipa de serviço e de cozinha. Por isso, dá para criar experiências únicas, diferentes, como uma sala de espetáculos onde já fizemos concertos, onde empresas já procuraram para fazer apresentações. É natureza também, no interior, em cima da água, mas da barragem do Alqueva, e estamos muito felizes.
Como é que tem sido a reação dos clientes?
As pessoas têm adorado. É um espaço muito especial. Todas as fotografias que existem não espelham como é a propriedade. Tem uma coisa muito interessante. Além dos seus recortes, é de facto a exposição à água e como a água entra. Por outro lado, há também a subida e descida das cotas do Alqueva. A propriedade muda muito, com verão e o inverno, o verde, a primavera, o florido, tudo amarelo e dourado, muda muito. A vista do mar, tirando quando o céu está coberto, é quase sempre a mesma coisa. A vista da terra, muda muito. Lá tem essa paz. Não se vê quase construções, só ao fundo a nova Aldeia da Luz, a outra está submersa ali perto também. E por isso as pessoas têm gostado muito.
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Dependendo como as coisas irão correr, esta pode ser a abertura para um novo ramo de negócio do grupo?
Eventualmente, não sei. [risos]
No ano passado só tinha aberto o Encanto. Este ano já vai em dois projetos. Até ao final do ano, teremos mais alguma coisa que possa revelar?
Temos um projeto em Macau. Já está aberto há quase um ano. Com as restrições, a carta foi feita à distância, a formação também com um chef lá. É um restaurante que tem estado a correr muito bem. Só agora, nos últimos meses, é que metemos o meu nome à porta. Devido à Covid não consegui entrar no território e isto já estava combinado muito antes. Chama-se Mesa e agora é o lançamento oficial.
Tivemos uma pandemia, o começo da guerra na Ucrânia, uma sombra de crise. Tal como noutras alturas, teme que o setor da restauração seja mais uma vez afetado?
Estamos numa situação muito delicada. O mundo em geral, a Europa em particular, Portugal pelo aumento do preço das casas e a falta de habituação, as pessoas com ordenados baixos e com incapacidade de fazer face à despesas. Preocupa-me muito as taxas de juro. Tenho também empréstimos e senti agora alguns a subirem 60% da prestação. A juntar a isto, a inflação dos ingredientes, de todos os produtos que nós compramos. Há produtos que aumentaram 40%. Outros, como a farinha, aumentaram 100%. Temos uma média de 10% de aumento nos produtos. Este deveria ser o ano da estabilidade, depois da Covid. O primeiro trimestre de 2022 ainda foi complicado, com a Ómicron e o começo da guerra. Não é um ano de estabilização porque estamos ainda sem saber o que vai ser daqui a dois ou três meses e a pagar muito mais caro sem conseguir refletir isso no preço. [A restauração] é um negócio de muitas contas. Se não se fizer muitas contas, muito controlo, e as coisas não forem muito certinhas, não é um negócio milionário. É um negócio de muito trabalho e de alguma loucura. É uma prisão, entre aspas, ter um restaurante, ter vários então...
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