"A moda nacional ainda não está no sítio certo. Há conquistas a adquirir"
Esteve cerca de dez anos afastado, mas há mais de uma década que marca presença neste evento de moda nacional. No dia em que arranca a 50.ª edição da ModaLisboa, o designer Filipe Faísca conversou com o Notícias ao Minuto.
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Lifestyle Filipe Faísca
Filipe Faísca recebeu-nos na sua loja, na Calçada do Combro, no coração da capital. Há um aviso na porta onde se lê que, por motivos de preparação da nova coleção, deve bater à porta ao lado, onde se situa o atelier.
Era lá que o designer se encontrava quando o Notícias ao Minuto chegou. As funcionárias atendiam uma cliente, imprimiam documentos e organizavam o que percebemos serem os últimos detalhes burocráticos do evento que se avizinhava. Durante a entrevista, por duas vezes Filipe Faísca teve de assinar e rubricar documentos, mas a calma que manteve durante o tempo que nos recebeu garantia que tudo estava a correr como previsto. Foi o que nos disse sem esconder o agrado quando perguntámos como corriam os últimos pormenores da coleção a apresentar.
A calma é, de resto, um dos aspetos que o carateriza a par do humor que faz por marcar em todas as suas peças. Também o respeito pelos materiais e própria moda definem o trabalho do criador que estudou Técnica de Têxteis, em Lisboa, e que por vontade de se manter num posicionamento médio-alto, através da utilização de uma matéria prima mais nobre, optou por não apresentar na ModaLisboa durante cerca de uma década, período em que se focou em angariar clientes, criar marca através do seu atelier, e ganhar dinheiro através do seu trabalho com fardas e figurinos - área, aliás, em que ainda hoje trabalha.
Foi em 2006 que regressou às passerelles onde desfila a moda nacional e onde mantém presença há várias edições, mas o tempo parece ser de pouca relevância para Filipe Faísca, que relembra como se fosse hoje o seu primeiro desfile e admira-se com um “já?!” quando lhe dizemos que passaram 27 anos desde a sua primeira participação, no ano zero, em que apresentou uma coleção para homem sob o tema ‘África’ - foi lá que nasceu e morou até aos 13 anos, idade com que veio para Portugal.
Em Portugal, morou sempre em Lisboa?
Vivi em Vila Real de Santo António quando cheguei de África, dos dez aos 13 anos. Depois fui para Beja, onde estive até aos 20 e só depois vim para Lisboa, para estudar, aí numa direção já mais próxima do universo da moda, neste caso, em técnica dos têxteis. Foi aí que mergulhei nesta coisa dos materiais, mas já fazia roupa. Em Beja, trabalhava muito, fazia roupa para mim. Fazia patinagem artística, e era eu quem fazia os meus próprios fatos.
Então, não demorou muito tempo até abrir o seu atelier em Lisboa.
Eu trabalhava em casa e tive uma oportunidade, quando terminei o IADE, de ter uma loja no Bairro Alto. Esta loja não existiu durante muito pouco tempo, um ano e meio ou dois, no máximo.
E foi depois disso que foi trabalhar com Ana Salazar?
Exato, estive com a Ana Salazar através de um estágio de oito meses. E fi-lo em simultâneo: estava na minha loja ao mesmo tempo em que trabalhava em part-time para a Ana Salazar.
Nesta altura já produzia, por isso já tinha a sua marca. De que apoio sentiu mais falta nos seus trabalhos?
Hoje em dia do que mais me arrependo foi de não ter trabalhado mais na indústria, sobretudo em indústrias do Norte onde se aprendem todos os processos industriais que dão muito mais a noção da indústria e, sobretudo, ensinam os processos criativos que se usam lá e que não se podem usar nos pequenos ateliers. Há processos altamente criativos que só é possível fazer na indústria. Por exemplo, cortes a laser.
Estava limitado nesse sentido...
Sim, mas de facto, na indústria faz-se tudo em muita quantidade, o que justifica que se pesquise e arranje todas as artimanhas para conseguir produzir mil, dois mil ou o que seja que o cliente pedir.
Sentiu mais falta desse apoio nas suas coleções ou nas fardas e outras peças que cria?
Não, nas minhas coleções também. Adorava ter estes recursos. Claro que aqui estou sempre muito atento aos processos criativos e tento inovar e experimentar sempre muito, sobretudo nos desfiles. Depois, o que faço nos desfiles não se repete muito na venda direta na loja, aqui já é mais comercial.
Na minha marca tem de haver sempre sentido de humor, isso é fundamental. Depois, tem de haver conforto e elegânciaComo distingue as coleções que apresenta nos desfiles e mesmo as peças que vêm aqui para a loja das fardas e figurinos para teatro ou ballet? Como mantém a marca Filipe Faísca em trabalhos tão distintos?
Eu não consigo dissociar as coisas. Os fardamentos são uma coisa completamente à parte. Mesmo que eu dê o meu cunho, será o quê? Apenas inovar ao ligar com os símbolos, brincar um pouco. Na minha marca tem de haver sempre sentido de humor, isso é fundamental. Depois, tem de haver conforto e elegância, são duas coisas que para mim são fundamentais a todos os meus trabalhos.
Já passaram quase 30 anos desde que apresentou a sua primeira coleção na ModaLisboa. O que recorda desse momento?
Foi muito excitante. Fiz uma coleção de inverno só para homem. Fiz o ano zero e depois fiz mais outra, depois estive afastado. Era muita nervoseira. Conseguir fazer as coisas naquela altura era muito difícil, ainda por cima sozinho, sem atelier, a mandar a fazer umas coisas aqui e outras ali. Era muito novo, mas lembro-me como se fosse hoje do empenho com que me dediquei, foi muito excitante - o tema era África.
Mas pelo meio esteve dez anos afastado da ModaLisboa. Porque optou por não apresentar coleções durante esse tempo?
Tinha muito a ver com o gosto pelas matérias-primas e o tipo de materiais com os quais estava habituado a trabalhar. Sempre gostei de matérias-primas boas e caras como linho, seda ou lã e não era possível fazer coleções naquela altura com as condições que queria. Sempre estive posicionado numa faixa média-alta. Não era fácil fazer o arranque de uma marca e garantir um posicionamento num mercado médio-alto para um puto da minha idade. Ninguém me conhecia, era preciso um financiamento brutal que eu não tinha e não o ia conseguir do pé para a mão. Por isso foi preciso aquele tempo todo, em que estive afastado e a trabalhar no teatro e a juntar dinheiro para conseguir a pouco e pouco criar o meu atelier, angariar clientes, fazer a marca através do atelier e anos mais tarde conseguir voltar a apresentar, o que aconteceu em 2006.
Acha importante esse destaque que se dá aos criadores portugueses através da ModaLisboa?
Acho muito importante. É uma forma de destaque para os criadores portugueses, uma plataforma de lançamento dos designers nacionais no mercado internacional. Não diria tanto a nível comercial, mas a nível de publicidade e de dar a conhecer. Acho fundamental porque educa e tem de facto vindo a pôr a moda nacional no sítio certo – onde ainda não está.
O que falta à moda nacional para atingir este lugar?
O sítio certo de que falo é um sítio de respeito no mercado de trabalho, porque isso é de facto um trabalho e um serviço que se presta à sociedade, onde ainda há muito trabalho a fazer, muitas conquistas a adquirir, por exemplo, uma ordem dos designers de moda. É fundamental existir para que nos possamos organizar e defender.
Ainda há muito trabalho a fazer na moda em Portugal, muitas conquistas a adquirir
Não sente que há este apoio em Portugal?
Não. Há a ordem dos advogados, dos arquitetos e de tantos outros, mas devia haver uma ordem dos designers de moda, ou alguma associação do género, devido à sua especificidade e pelo facto de a indústria de moda ser algo gigante que gere milhões. Mas as pessoas, na sua generalidade, ainda não compreenderam o que é que a moda implica e como é que ela funciona. Noutros países em que a moda é tradição, o motor está oleado e funciona, comunica entre si. Se reparar, temos a indústria de moda, a moda na educação, na fotografia, nos manequins, têxteis, de calçado, acessórios, malas... dá para ter uma ideia da quantidade de polos que pertencem a uma indústria só. Agora, expliquem-me como é que é possível que o polo da educação não comunique com o da indústria têxtil: não é possível. A indústria têxtil é fundamental para o conhecimento e é óbvio que devia haver protocolos. Se somos um país bom na indústria têxtil - que somos, de facto, depois do ajuste necessário por que passámos - foi porque nos aperfeiçoámos e estamos a conseguir chegar mais longe, assim como estamos a conseguir no calçado. É fundamental os designers conseguirem este patamar, lá fora é assim que funciona.
O que é que os designers podem fazer para atingir este patamar?
Não são os designers, mas os docentes, as escolas, o poder político. É preciso haver uma intenção, uma vontade política. A educação está no estado em que está, e assim não o vamos conseguir. Não se faz um curso de design de moda em três anos, eu recebo aqui estagiários todos os anos, sei o estado em que eles vêm.
E o público da ModaLisboa tem noção desta falta de apoio?
Não.
Público da ModaLisboa é a 'vanity'. Claro que nas primeiras filas está um público interessado e que percebe, mas a maior parte vai só para se divertir
Quem é esse público, da moda nacional?
É a 'vanity'. Claro que nas primeiras filas está um público interessado e que percebe, mas a maior parte vai só para se divertir. Tenho as minhas clientes, os meus convites são feitos para elas, consigo garantir o meu público. De resto, nem sei quem la está.
O que acha que mudou ao longo destes 25 anos? Como evoluiu a ModaLisboa?
Na sua generalidade, a ModaLisboa tornou-se mais fácil a nível da produção do evento, no sentido em que já estamos habituados, já sabemos como é. Porque é tão difícil e específico de montar, que é sempre um milagre que aquilo aconteça. De facto, é um espetáculo ao vivo e a cores, por isso sinto-me sempre grato quando chego ao fim daqueles mínimos 12 minutos e por aquilo ter acontecido. Porque por muito que consigamos controlar tudo – e aqui não falo só de fazer a roupa, mas de tudo o resto – o grupo de maquilhagem, o grupo de cabelo, e as manequins, o castings, é muito trabalho. Os manequins têm-se vindo a aperfeiçoar cada vez mais. O ano passado consegui trazer, com esforço gigantesco, uma manequim internacional, que foi brilhante e foi paga para vir exclusivamente para mim, e isso é uma mais-valia. São essas pequenas coisas que vão pondo a pouco e pouco esta plataforma no panorama internacional.
Veja-se o que fez o Brasil: o Brasil não existia a nível da moda, não existia a fashion week de São Paulo há dez ou vinte anos e em meia dúzia de anos puseram aquilo a bombar. É a tal história, havia a indústria têxtil e de calçado, mas eles quiseram pôr a indústria da moda a funcionar em pleno e em muito pouco tempo puseram a sua moda no panorama internacional. Hoje, é fundamental haver uma fashion week de São Paulo, a nossa ainda não é fundamental.
Sou por um design equilibrado, duradouro, não de consumo rápido, que se esgota numa coleção de seis meses Não marca presença em eventos estrangeiros do género. É uma decisão sua?
Não, de todo. Assim como para mim foi difícil começar a fazer a ModaLisboa, também está a ser difícil levar os meus trabalhos para fora. É muito caro, é outro patamar porque, mais uma vez, implica mais pessoas, parceiros... mas estamos a tentar. Aí eu não arrisco muito. Faço experiências, estamos há muito tempo a experimentar uma coleção cápsula, mas não sou uma pessoa de consumismo por consumismo, de todo. Sou muito mais de uma moda sustentável, sou por um design equilibrado, duradouro, não de um consumo rápido, que rapidamente se esgota numa coleção de seis meses. É nisso que acredito, posso estar enganado, e ser esmagado à primeira coleção, mas acho que vale a pena tentar.
Algumas destas experiências de que fala são para esta coleção, que vai apresentar agora?
Estamos a tentar ir à procura do que fossem itens de outras coleções. Para se criar um estilo, é preciso criar varias peças que se mantenham e que são ícones da marca, aliás, esta coleção junta o que é icónico nas várias coleções. Neste caso, vestidos que se repetem de estação para estação, já não estão em desfile, mas as pessoas continuam a comprar.
Isto vai ao encontro de uma ideia da própria ModaLisboa. Quando a associação apresentou esta edição aos media, disse que queria que o evento fosse inesperado, desafiante, refrescante e imprevisível. Acha que ainda é possível conseguir isso nas novas coleções, numa altura em que não há barreiras e tudo é aceite na moda?
A moda é uma coisa surpreendente porque o movimento da moda é cíclico, mas não um círculo que se fecha, porque é em espiral, ou seja, não para, não se fecha em si próprio. Por isso a moda vai ao passado – que eu acho obrigatório – e renova-se, porque há sempre coisas novas, materiais novos. Se vai ao passado mas tem materiais novos, está na atualidade e a trazer coisas para o agora. O momento é sempre o agora, e isso acaba por fazer o futuro, o agora é sempre novo, e muitas vezes vai-se à procura de técnicas do passado. Por exemplo, os plissados sempre se usaram, só que as cabeças são outras, hoje em dia, e isso resulta numa outra moda.
A parceria que fez com os bordados da Madeira vai ao encontro desta ideia?
Os bordados da madeira ainda não apareceram, vão ser apresentados agora na ModaLisboa e sim, vai completamente ao encontro desta ideia.
Tem alguma ligação com o arquipélago da Madeira? Por que razão aceitou esta parceria?
Só porque é muito comum nas minhas coleção dar um foco ao artesanato. No inverno passado viu-se as mantas de papa. Nós fomos lá acima, à Guarda, visitar o centro paroquial que acolhe pessoas de idade e muitas coisas que fazem para passar o tempo são as mantas de papa que sempre se fizeram e que são uma coisa interessantíssima. Nós usámos isso em repetição de uma coisa que tínhamos feito em 2007, repeti os casacos que já tinha feito numa coleção que se chamava Portugal Portugal em que também tinha ido buscar 'n' técnicas de artesanato que se mantêm na nossa tradição. Também já tinha utilizado outras coisas a nível de artesanato por isso achei muito interessante virem aqui à porta perguntar se eu queria trabalhar com o bordado da Madeira.
Tive de refazer a coleção toda e dali nasceu uma coisa completamente diferenteNão fazia ideia do que era, fiquei chocado porque é de uma perfeição e de uma sabedoria interessante. Eu acho que as pessoas nem têm noção do que é porque se veem aquilo numa montra, não acreditam que é feito à mão, mas quem sabe que não é feito à máquina não tem como não dar valor. Quando se vê o processo todo, percebe-se que aquilo é uma coisa completamente do além. E quando mergulha naquilo, porque tem uma energia fortíssima, com muitas horas de mãos humanas e de várias pessoas, pegar naquela matéria com tanta energia humana tem de facto uma força muito grande. Já tinha começado a minha coleção quando surgiu o convite, mas aquilo é de tal maneira abrangente e forte que eu tive de refazer a coleção toda e dali nasceu uma coisa completamente diferente e surpreendente.
O que é excitante na moda é que nos surpreende, pelo menos eu sou surpreendido, o meu trabalho não é um trabalho de risco ou de conceito. Eu sou muito surpreendido pela matéria, pela rua. Deixo-me influenciar, deixo-me ir e muitas vezes sou surpreendido pela vida, porque a moda é vida.
Na sua coleção em 2015, associou-se à Fundação Rui Osório de Castro e as suas peças contaram com desenhos de crianças do IPO. É importante para si associar-se a estas causas?
Mais uma vez digo que não estava nos meus planos. Não é um conceito e não era uma prática aqui do atelier, mas aconteceu e foi extraordinário. Fiquei muito sensibilizado com o resultado final. Na prática, naquelas crianças, como efeito e causa que aquilo provocou na vida delas e nos pais. Foi muito gratificante.
Faísca no seu atelier, na preparação da coleção 'Darling', com desenhos feitos por crianças do IPO© Global Imagens
E teve uma boa aceitação por parte do público?
Sim, extraordinária.
Relativamente às suas vendas, ainda está na fase de expandir, através da loja online..
Isto ainda está muito no princípio, estamos agora a atualizar mais e a dar mais ênfase a isso.
É uma forma de levar as suas peças para o estrangeiro?
É. Para já, os meus clientes são todos daqui. Há mais dois ou três pontos de venda, mas são todos no país.
Faz-me sentido democratizar a marca, como é óbvio, mas será sempre com mão de obra portuguesaAs peças de designers não são acessíveis para todas as carteiras. Defende mais a democratização dos preços ou a exclusividade deve ter o seu preço?
As duas coisas são possíveis. Uma coisa que para mim é um manifesto e acho que é fundamental que fique bem claro é que eu sou pelo trabalho sustentável, é isso que gera uma sociedade sustentável. Quero dizer que as minhas costureiras ganham acima do salário mínimo nacional, não tenho costureiras chinesas nem indianas, logo, quando alguém entra no meu atelier e me diz que alguma peça é cara, eu pergunto “ é cara ou você não tem dinheiro para a comprar?” é que são coisas completamente diferentes.
Porque quando alguém me diz que a minha roupa é cara, está a negar imediatamente 'n' tarefas que se passam aqui. As minhas funcionárias são pessoas que têm família em casa e têm de pagar para as sustentar, e enquanto houver trabalho infantil, pessoas a trabalhar 14 ou 20 horas por dia, vamos estar sempre a competir com marcas que conseguem produzir muito mais do que eu. Aqui, as peças são únicas e eu não tenho maneira de as repetir. As pessoas dizem que é caro porque viram o mesmo género de peças por outro preço, só que as peças que viram foram feitas 500, 800 ou 1.800 vezes. Aí não tenho maneira de competir, e a, sim, faz-me sentido democratizar a marca, como é óbvio, mas será sempre com mão de obra portuguesa, dou primeira importância a isso. Posso pagar pelo que estou a dizer, e daqui a nada estar a produzir na China, mas acho difícil.
Com que outros projetos conta para breve?
Agora o foco é mesmo conseguir pôr esta coleção nas feiras internacionais e conseguir começar a vender lá fora.
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