Ausência de Merkel pode explicar impasse na crise ucraniana, diz biógrafa
A ausência de Angela Merkel na atual crise entre a Rússia e o Ocidente tem sido "muito notada" e pode explicar o impasse político internacional, disse hoje à Lusa a autora de uma biografia da ex-chanceler alemã.
© Reuters
Mundo Angela Merkel
"Estamos agora a ver o que acontece numa crise - pela primeira vez em 16 anos - sem (Angela) Merkel. Ela e (o Presidente russo Vladimir) Putin conhecem-se bem, falam as duas línguas: russo e alemão. Ela aprendeu russo durante a ocupação soviética da Alemanha e ele aprendeu alemão quando era agente do KGB em Dresden", indicou.
"Há pouco tempo perguntei-lhe em que língua falava com Putin e ela respondeu-me que o alemão dele é melhor do que o russo dela. Ultimamente começavam a falar em russo e depois mudavam para alemão", adiantou Kati Marton.
Para a jornalista norte-americana de origem húngara, 73 anos e viúva do diplomata Richard Holbrooke (1941-2010), além da questão da língua, Angela Merkel entendia de forma clara a "mentalidade" do Presidente russo e conhecia a capacidade de Putin para a "crueldade" e o "engano" porque foi na juventude vítima da polícia política da antiga República Democrática Alemã (RDA).
"A Stasi tentou recrutá-la e Putin sabe que não a pode enganar como engana muitos outros. Agora Merkel não está à mesa das negociações com ninguém. Talvez (o chefe de Estado francês) Macron tenha êxito, espero que sim, mas Merkel foi quem manteve o Ocidente unido. Merkel não podia dar-se ao luxo de virar as costas porque a Rússia está perto da Alemanha e não vai sair", disse Kati Marton.
Para a autora do livro "A Chanceler: A Notável Odisseia de Angela Merkel", lançado este mês em Portugal, a ex-líder alemã procurava como negociadora conseguir compromissos da outra parte e "encontrar o inimigo a meio do caminho" para marcar pontos.
"Estive casada com um grande negociador, Richard Holbrooke, que acabou com a guerra na Bósnia, e estive com ele em Dayton (1995) e vi como trabalhava: com charme e ataques frontais. Merkel, por outro lado vai para mesa de negociações sabendo mais detalhes do que a outra parte. Quando ela disse que conhecia todas as árvores de Donbass (região no leste da Ucrânia controlada em grande parte por separatistas pró-russos) não estava a exagerar e desta forma consegue 'asfixiar' a outra parte, com o conhecimento profundo dos problemas", disse Marton.
Olaf Scholz, sucessor de Merkel, é criticado na Alemanha e no estrangeiro por uma alegada complacência com Moscovo. O chanceler alemão encontra-se hoje em Washington para a sua primeira reunião com o Presidente norte-americano, Joe Biden.
Reunir-se-á também com os dirigentes dos Estados bálticos em Berlim esta semana e deslocar-se-á à Ucrânia e à Rússia na próxima semana.
Além disso, a ministra da Defesa da Alemanha, Christine Lambrecht, anunciou hoje o envio de mais 350 soldados para a Lituânia no âmbito de uma operação da NATO, no contexto de tensão entre a Rússia e a Ucrânia.
O anúncio surge num contexto de medo crescente de que a Rússia esteja a preparar-se para invadir a Ucrânia, tendo o Ocidente acusado Putin de concentrar mais de 100.000 soldados ao longo da fronteira entre os dois países.
A biógrafa referiu ainda que Merkel mostrava pragmatismo e uma forma muito particular de comunicar as decisões, referindo-se à questão do gasoduto Nord Stream 2, que liga a Rússia à Alemanha através do Báltico.
O gasoduto aumentará a dependência do gás russo e a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, já admitiu que pode ser utilizado como parte do mecanismo de sanções, no caso de Moscovo decidir intervir militarmente na Ucrânia.
"Esta questão (do gasoduto) (...) surpreendeu alguns dos aliados mais leais de Merkel. 'Sempre que Obama lhe perguntava porque ia avançar para o Nord Stream, Merkel dava uma resposta diferente', disse-me Charles Kupchan, um conselheiro de Segurança Nacional da Administração Obama", refere a biografia, acrescentando que uma das respostas preferidas da ex-chanceler era: "as vantagens ultrapassam as desvantagens".
No livro, Kati Marton enfatiza o papel de Angela Merkel durante a crise dos refugiados na Europa, em 2015, considerando que a ex-chanceler alemã democrata cristã deixa uma Alemanha em transformação.
Para a biógrafa, a ex-chanceler conseguiu manter a Alemanha como potência financeira e económica e transformou o país "no centro moral europeu" ao fazer "vingar" a política sobre os refugiados e defendendo os direitos das mulheres.
"Isto num país marcado pelo III Reich é uma grande conquista", sublinha a autora da biografia de Angela Dorothea Kasner, nascida em Hamburgo em 1954, cientista, filha de um pastor luterano socialista que na década de 1950 se muda para o Leste alemão.
Sobre o papel da Alemanha durante a crise económica e financeira o livro aprofunda sobretudo as questões ligadas à Grécia, referindo apenas de passagem a posição de Angela Merkel em relação a países como Portugal e Espanha.
Nos aspetos ligados à personalidade da ex-chanceler, o pai de Angela Merkel, Horst Kasner (1926-2011) é uma das figuras que acompanha esta biografia, sendo que o livro o mostra como tendo sido um homem para quem a família esteve sempre em segundo lugar.
A filha (que adotou o sobrenome do primeiro marido nos anos 1970), por muito brilhante que fosse nunca recebeu "uma total atenção paternal" fazendo-a "decretar a independência" muito cedo.
"A personalidade do pai é uma das coisas que faz Merkel 'seguir em frente'. Ele nunca votou na filha. Como é possível? O pai e a filha tinham diferenças políticas. Entrevistei muitos padres que se referiam a Horts Kasner como 'Kasner o Vermelho' porque ele defendia que o cristianismo podia estabelecer compromissos com os comunistas. O facto de ele ter mudado a família para o leste (Templin) quando os movimentos migratórios eram do Leste para o Ocidente demonstra um grande zelo", explica.
A educação religiosa austera num ambiente político totalitário fez com que Angela Merkel seja uma mulher que sabe lidar com a realidade e "não sendo uma idealista" é também uma pessoa divertida, refere a jornalista norte-americana.
"Não é fria, eu via chorar duas vezes e gosta muito de se divertir. Tem muito humor e fazia grandes imitações de Putin para os membros do gabinete. É mais do que uma puritana luterana", diz Kati Marton, acrescentando que o futuro de Merkel pode vir a estar ligado aos direitos das mulheres e às questões ambientais.
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