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"O vírus fechou-nos, mas deixou-nos atentos à vulnerabilidade dos outros"

A nova presidente da Cáritas Portuguesa, Rita Valadas, é a entrevistada de hoje do Vozes ao Minuto.

"O vírus fechou-nos, mas deixou-nos atentos à vulnerabilidade dos outros"
Notícias ao Minuto

08:11 - 20/03/21 por Natacha Nunes Costa

País Rita Valadas

Em dezembro de 2020, Rita Valadas foi nomeada presidente da Cáritas Portuguesa. Em 74 anos de existência da organização de caridade social, é a segunda vez que uma mulher assume tal cargo. A primeira, foi a fundadora, Fernanda Mendes de Almeida Ivens Ferraz Jardim, a Condessa de Valenças.

Apesar disso, Rita garante que esta ‘minoria’ não é sintomática da desigualdade de género que ainda persiste na sociedade. Até porque, nunca sentiu que “houvesse alguma coisa que não pudesse fazer” por ser mulher.

Com um vasto saber em intervenção e inclusão social, adquirido, por exemplo, durante as suas experiências de trabalho em Setúbal e em Chelas, esta “mulher do terreno” garante que o segredo da resolução da pobreza em crise está “na proximidade”, na resolução dos problemas “ao dia” e não numa “estratégia” que ainda não passou do papel.

Apesar de admitir que teme pelo futuro, pela crise social que ainda está por vir, escondida pelo confinamento e amparada pelas medidas de apoio do Governo, Rita é uma mulher de sorriso fácil e falar afável. Acredita que é necessário transmitir esperança para que quem está em dificuldades não se afunde. Consiga antes voltar à superfície, sendo protagonista “da solução do seu próprio problema”.

Numa entrevista dada ao Notícias ao Minuto, quase quatro meses depois de assumir “a missão” de liderar a Cáritas Portuguesa, mais do que números, Rita revela o que a organização tem feito para ajudar os mais frágeis e o que ainda pretende fazer, assumindo a responsabilidade de dar “colo” aos mais vulneráveis durante todo o mandato.

Assumiu o cargo de presidente da Cáritas Portuguesa em dezembro, durante a segunda vaga da pandemia da Covid-19 e com uma crise social e económica pela frente. Não teve receio do que teria de enfrentar ao aceitar a nomeação? Porquê?

Não! Tenho medo do que se passa em Portugal e no mundo, tenho receio que esta doença demore muito tempo a ser curada, tenho muito receio do caminho para a cura e de tudo o que resulta da doença. Mas não tive nenhum receio quando me perguntaram se podiam incluir o meu nome.

Mas não sentiu o peso da responsabilidade de assumir este cargo numa altura em que Portugal atravessa uma das piores crises da sua história?

Seria inconsciente se não sentisse o peso, mas receio não tive. Sou uma mulher do terreno e não é o primeiro cargo que desempenho de responsabilidade. Exatamente por ser Cáritas e exatamente por ser uma crise é que eu jamais poderia recusar, se a convicção de quem me convidou era de que poderia ser útil e acrescentar valor àquilo que se estava a passar. Por isso, realmente, receio, temor, não são as palavras que refletem aquilo que eu senti. Sinto que é uma grande responsabilidade, que é um desafio enorme, espero estar à altura do desafio e farei tudo para isso. É muito mais do que ser nomeada qualquer coisa. É uma missão, não é um posto de trabalho.

As pessoas que foram abalroadas por esta situação entram pela porta do doar e de repente não ficam nem com condições para sustentar a sua própria família e têm pudor em vir pedir

E já conhecia as ‘entranhas’ da Cáritas, visto que, fez parte da direção há uns anos. O que encontrou de diferente?

Eu fiz dois mandatos entre 2006 e 2011, na altura em que nós tínhamos uma outra crise. É quase kármico [risos]. Aquilo que eu assisti na altura é muito parecido com aquilo que eu hoje assisto em termos da forma como prejudica, do ponto de vista social. Curiosamente, tudo isto é parecidíssimo com a minha primeira experiência de trabalho, no Plano de Emergência para a Península de Setúbal, ao abrigo de uma situação muito crítica, que se vivia no princípio dos anos 80. Essa experiência profissional acompanhou-me para a vida e habilitou-me a tentar pensar sempre no contraditório. Ver outras opiniões para além da minha ou para além daquilo que eu vejo e que soluções é que existem que não sejam só aquelas que o Estado pode dar e que têm de ser todas muito organizadas e cheias de regras.

A Cáritas que encontrei agora é naturalmente diferente, com muito, muito envolvimento e muito aprofundamento de várias áreas. Do ponto de vista da crise, na altura como agora, tivemos de criar programas especiais para resolver a situação. Na altura foi um programa que fizemos em colaboração com a Fundação Calouste Gulbenkian e, desta vez, foi um conjunto de iniciativas sucessivas que foram resolvendo as situações mais graves.

Logo no início, a direção que me antecedeu tentou agir sobre os equipamentos de proteção individual que eram necessários e que eram extraordinariamente difíceis de conseguir. Numa segunda fase, começaram a existir as situações de emergência. Das pessoas que tinham o seu próprio negócio, que viviam do turismo ou da restauração, que ainda não tinham a sua situação consolidada e, sendo obrigados a fechar de um dia para o outro, ficaram completamente sem rendimentos. Logo aí que foi preciso foi acudir às situações que nas Cáritas diocesanas eram muito urgentes e que apareciam fora do padrão usual que acontece na Cáritas. Por isso, lançámos um programa de emergência para acudir a estas situações de pessoas que, de repente, viram-se com uma grande baixa de rendimento ou sem rendimento.

Já numa segunda fase, criou-se um programa que é o ‘Vamos Inverter a Curva da Pobreza’, cujo objetivo era acudir às famílias que, não tendo poupanças e não tendo sustento próprio, tinham a situação habitacional comprometida. Renda, água luz e até, em alguns casos, internet, por causa das crianças que estavam na escola à distância. 60% do dinheiro deste programa foi para despesas de renda, 18% para despesas relacionadas com saúde, 12% com eletricidade, 3% com despesas de água e 2% com despesas de telecomunicações e gás, ou seja, há aqui um peso grande sobre o que é o grande temor das pessoas, que têm uma vida mais ou menos equilibrada, que é ficar sem casa, depois de todo o investimento que fizeram.

Isto quer dizer que, ao contrário do que se pensa, a Cáritas não ajuda só com bens alimentares...

Nós temos um programa permanente de ajuda alimentar de pessoas muito frágeis. Para ajudar esta situação, a Cáritas já tinha utilizado e voltou a usar os vouchers para bens de primeira necessidade, em vez dos próprios produtos, de bens alimentares. Porque as pessoas que foram abalroadas por esta situação entram pela porta do doar e de repente não ficam nem com condições para sustentar a sua própria família e têm pudor em vir pedir.

Ninguém se acomoda à pobreza, mas é mais fácil desistir. Se nós não deixarmos as pessoas desistirem, as pessoas mantêm aquela energia que as permite ser protagonistas da solução do seu próprio problema

A tal pobreza envergonhada?

Eu até tenho pudor em falar na palavra pobreza porque aquilo que verdadeiramente nós queremos é que estas pessoas não cheguem aí. O nosso investimento é que as pessoas consigam, com as suas competências próprias e o apoio que nós pudermos oferecer, dar a volta porque têm todas as condições para isso.

Nós não queremos que ninguém se acomode a uma situação de onde depois de acomodados é muito difícil sair. Ninguém se acomoda à pobreza, mas é mais fácil desistir. Se nós não deixarmos as pessoas desistirem, as pessoas mantêm aquela energia que as permite ser protagonistas da solução do seu próprio problema e, quando nós conseguimos fazer isso, é muito mais robusta a solução e o futuro.

Quando eu lhe falo destas outras despesas [com a habitação] não é desvalorizando o apoio alimentar, que também aumentou muito. Só que este resolve-se mais facilmente na proximidade. É mais fácil incentivar os paroquianos ou os voluntários a fazer campanhas para angariação de géneros do que por dinheiro. Para essas outras despesas nós não temos um fundo de emergência. Se calhar temos de pensar nesta situação. 

E os apoios da Segurança Social, das juntas de freguesia?

Há soluções para vários apoios, há a Segurança Social, há juntas de freguesia que têm planos, etc. Mas nesta situação, ninguém conseguiu resolver problemas sozinho. Estamos todos no mesmo barco e o desafio é que, em vez de estarmos a sobrepor-nos uns aos outros, façamos continuidade para apoiar o maior número de pessoas possível e, sobretudo, as que estão mais longe, as que estão mais escondidas, as que estão deprimidas, as que precisam de uma ajuda de proximidade muito grande, que não se resolve com os programas nacionais.

Proximidade essa que a Cáritas já tem...

O grande trunfo da Cáritas é ser, do ponto de vista nacional, a instituição que mais capilaridade tem. É uma rede constituída pelas Cáritas diocesanas e a Cáritas portuguesa é uma entidade de serviço, de apresentação e de dinamização dessa rede. Na verdade, são 20 que estão na proximidade e depois das 20 há todas as paroquiais e todos os serviços que existem. Estas Cáritas conhecem melhor os problemas, têm maior capacidade de incentivar localmente para apoios em género. Quando é para o desenvolvimento de campanhas tem de ser uma coisa mais nacional, que tenha outro tipo impacto.

Se é verdade que isto [pandemia] nos fecha em casa, também nos deixou mais atentos ao que se está a passar ao nosso lado (...). As pessoas estão agora mais atentas e mais sensíveis. A pandemia fechou-nos em casa, mas deixou-nos atentos à vulnerabilidade dos outros 

Como é o caso do Peditório Nacional.

O Peditório Nacional é uma das iniciativas de sempre da Semana Nacional da Cáritas e é, aliás, curiosamente, contra a minha intuição pessoal, uma atividade que a Cáritas gosta de fazer porque mostra que está presente em vez de estar enfiada para lá num buraco qualquer a fazer cabazes e a distribuir roupas [risos]. Os voluntários gostam e têm orgulho em apresentarem-se como voluntários da Cáritas, portanto, o Peditório Nacional é quase emocional para aqueles que participam nele. Só que, este ano, não era possível fazê-lo como não foi o ano passado. O ano passado nem chegámos a fazer nada, mas este ano não podia ser porque algumas Cáritas diocesanas precisam do dinheiro do Peditório Nacional para o seu próprio funcionamento, por isso decidimos que tínhamos de encontrar uma maneira. Fomos ao banco perceber quais as várias alternativas que havia para, de uma forma muito simples, as pessoas poderem doar e utilizámos a transferência, o MBWay e a doação direta no portal da Cáritas.

Ao mesmo tempo, fizemos uma ronda por algumas empresas e fiquei positivamente surpreendida com a forma realista com que encaram esta situação. Apesar de estarem todas com dificuldades e terem menos rendimento, a resposta ao nosso desafio foi, em alguns casos, surpreendente. Há empresas que disseram que queriam colaborar e não só na Semana da Cáritas, querem pensar em iniciativas para continuar apoiar Cáritas. Isto diz muito do país que nós somos e da esperança que devemos ter em nós porque se é verdade que isto [pandemia] nos fecha em casa, também nos deixou mais atentos ao que se está a passar ao nosso lado. Às vezes, quando andamos de um lado para o outro, no vai para aqui e para ali, fala com este e fala com o outro, não temos tempo de atenção. As pessoas estão agora mais atentas e mais sensíveis. A pandemia fechou-nos em casa, mas deixou-nos atentos à vulnerabilidade dos outros.

Apesar de o Peditório Público ter sido online, conseguiram angariar mais de 100 mil euros. Onde é que este dinheiro vai ser aplicado?

O dinheiro será distribuído equitativamente pela rede, portanto, vai ser completamente dividido. Graças a Deus ainda está a ser somado. Apesar de ter sido a primeira vez que fizemos isso e mesmo com a nossa inexperiência, foi muito mais do que estávamos à espera. Nunca chega, mas foi mais do que pensávamos ser capazes de fazer. E ainda há umas iniciativas que estão a acontecer, como as das empresas que há pouco falava.

Outra iniciativa, que surgiu de um conjunto de reuniões que fizemos com todas as Cáritas diocesanas, foi que a renúncia pascal, este ano, na Igreja, fosse a favor das Cáritas e isso foi um tiro quase total. As dioceses que já se tinham comprometido não o puderam fazer, mas a grande maioria sim e essas doações ainda estão por contabilizar. Dessas reuniões também saiu a necessidade de se esclarecer o que é que é a rede Cáritas em Portugal, onde é que está e a fazer o quê. Nós fizemos uma apresentação para os órgãos de comunicação social e também tivemos respostas muito generosas.

Nós não recebemos Orçamento do Estado, portanto, dependemos da boa vontade das pessoas e da consciência social de cada um 

Ou seja, cada diocese é que decide onde é que vai aplicar as doações, certo?

Cada diocese é absolutamente autónoma e depende do seu bispo. A Cáritas tem vindo a responder às necessidades de cada área em que se implanta. Não é nossa matriz duplicar respostas já existentes. O que posso dizer é que diversidade maior não há. Temos dioceses mais especializadas em trabalhos com jovens, dioceses mais especialidades em trabalhos com idosos, dioceses que têm respostas sociais e outras nem tanto. Por isso é que a Cáritas Portuguesa depende do Conselho Geral da Cáritas e o Conselho Geral da Cáritas é constituído por todas as Cáritas diocesanas.

Portanto, temos aqui uma espécie de matriz ao contrário daquilo que é o nosso pensamento de caixinha. A Cáritas Portuguesa lidera os movimentos que tiver de liderar, conforme o que for definido em Conselho Geral e em serviço das Cáritas diocesanas. Mas são estas que vão aplicar o dinheiro, de acordo com as suas necessidades a nível local e vão juntar a este o angariado com outras iniciativas que estão a ser feitas localmente.

Neste peditório, houve uma proximidade grande aquilo que eram as nossas necessidades e que eu espero que seja um movimento contínuo porque, infelizmente, as coisas não se vão resolver. Não se resolvem na pobreza em geral e esta crise ainda está para ser mais social do que já é. Nós temos uma crise sanitária, crise sanitária essa que provocou uma crise económica, crise económica esta que ainda está a ser poupada pelas medidas de proteção do Governo. Quando a situação estiver mais estabilizada, quando deixar de haver lay off, moratórias e essas coisas é que vamos perceber quais são as empresas que conseguem retomar a sua vida e aquelas que não vão conseguir, criando mais desemprego e, portanto, maior crise social.

Apesar de, como explicou, a ajuda da Cáritas Portuguesa ser repartida pelas várias dioceses, consegue perceber quantas pessoas ajudaram no seu conjunto?

Entre 2019 e 2020, que é o número comparatório que nós temos – e não tem tudo porque a nossa rede é ‘de fazer’ e às vezes há dificuldades em ter números – houve um aumento de 100 mil atendimentos para 120 mil atendimentos. E, em 2020, demos cerca de 1 milhão e 500 mil euros de apoio. É muito significativo.

As pessoas que fazem parte da rede Cáritas vivem isto com imenso sofrimento porque, se não conseguirem dar uma solução para uma família, vão para casa e levam o problema com eles

Têm tido dificuldade em responder a todos os pedidos de apoio ou até agora têm conseguido corresponder na totalidade?

Nós temos sempre dificuldade porque temos de conter as despesas para tentar ser equitativos e manter algum controlo nas situações de urgência que acontecem todos os dias. Como somos uma rede nacional e internacional, sempre que nos vemos muito aflitos podemos fazer um repto para uma campanha ou para uma coisa deste estilo. Fá-lo-emos se for necessário, como fizemos para o ‘Vamos Inverter a Curva da Pobreza’ e isso está em cima da mesa. Nós não recebemos Orçamento do Estado, portanto, dependemos da boa vontade das pessoas e da consciência social que cada um tem.

Esse é o maior desafio da Cáritas Portuguesa? Não receber apoio do Estado e contar apenas com a solidariedade dos portugueses?

Não! Essa é a matriz da nossa ação. Não pomos isso como dificuldade, é a natureza da coisa. Eu diria que o maior desafio que enfrentamos é continuar a resolver as coisas através da proximidade ao mesmo tempo que tentamos ver quais são os caminhos da resiliência. Não sabemos quantas mais crises vamos ter e esta situação de viver em constante emergência é muito angustiante. As pessoas que fazem parte da rede Cáritas vivem isto com imenso sofrimento porque, se não conseguirem dar uma solução para uma família, vão para casa e levam o problema com eles. Por isso, temos de arranjar uma forma de arranjar resiliência para o futuro, ao mesmo tempo que tentamos encontrar soluções para sair desta crise.

 O Estado sozinho não consegue resolver estes problemas e, para isso, tem de contar com o conhecimento que vem da proximidade

E quem são as pessoas que pedem ajuda neste momento à Cáritas? Há algum padrão?

Não, não há uma matriz única. A realidade desta crise é muito democrática. Esta crise ataca todos e, portanto, temos as situações todas. Temos situações de pessoas que tinham pequenos negócios e é um grupo muito grande, mas depois também temos os migrantes que temos por cá e que fazem limpezas. Acredito que as pessoas que menos sofreram, quando se fala de migrantes, são os que trabalham na construção civil porque esta não parou. No entanto, não estamos em condições para fazer o diagnóstico certo. As pessoas atravessam-se muito em números, eu atrevo-me muito pouco porque também estivemos confinados. A nossa realidade é de território a território. Portanto, comparabilidade não existe e há muita gente escondida.

Essas comunidades de migrantes, por exemplo, vivem muitas vezes todos juntos e, como já vimos, infelizmente, existiam grupos a passar grandes necessidades e não era do conhecimento porque as pessoas não saiam de casa e, portanto, não tinham como saber. Ainda há muita coisa desconhecida, quer do futuro, quer do que se está a passar e ainda não sabemos. 

E tem medo do que aí vem?

Temo muito pelo futuro, mas tenho a certeza que se a Cáritas não chegar, ninguém chegará.

Acha que a estratégia nacional de combate à pobreza, em que a Cáritas foi chamada a participar, vai funcionar?

A estratégia que está a ser construída pode vir a ser interessante para encontrar meios ou caminhos para resolver o nosso problema da pobreza que se estende e está erradicado. Pode também ser uma resposta para a crise, mas eu acho que não porque não podemos estar à espera que se escreva a estratégia para erradicar a pobreza numa situação como a que vivemos hoje. Nós temos de resolver problemas ao dia, não podemos ficar à espera.

Apesar de Portugal ser pequeno, somos um país com muita diversidade e esta deve ser vista como um trunfo. Às vezes vemos como um problema, mas a desigualdade é que é um problema, a diversidade é um trunfo

Isso quer dizer que o Estado está a falhar no apoio às famílias portuguesas?

Não sei se o Estado está a fazer tudo o que pode fazer, mas quero acreditar que o Estado está a fazer tudo quanto pode porque, se não, já não devia ser este Estado [risos]. Quando temos um problema, é bom pensar nas soluções que podem existir para ele e para isso tem de se identificar as lacunas do sistema e encontrar formas de preencher essas lacunas. O Estado sozinho não consegue resolver estes problemas e, para isso, tem de contar com o conhecimento que vem da proximidade. Nós podemos ter todos imensa noção estratégica de intervenção em crise, em pobreza, em sem abrigo, etc., mas se não conseguirmos encontrar o foco do problema, dificilmente o conseguiremos resolver. As situações da pobreza em crise só se resolvem na proximidade. A estratégia pode almofadar com algumas soluções, mas não resolve se não houver ninguém a fazê-lo na proximidade. Porque também sabemos quanto dinheiro temos desbaratado em estratégias. Fazer estratégias custa muito dinheiro e, naturalmente, agarrar nesse dinheiro e atirá-lo para cima de uma mesa também não resolve o problema. Não é a atirar problemas para cima de uma mesa que os faz desaparecer. Nós precisamos de ver os problemas e ter coragem de os enfrentar. Aquilo que eu espero que aconteça é que uma estratégia como a que está a ser construída não se esqueça de ouvir, com prioridade, a proximidade.

Algo que deve ser, então, tido também em conta no Plano de Recuperação e Resiliência...

Sim, se não, será mais uma vez atirar os milhões para cima dos problemas. Durante um tempo, ainda pode tapar, mas não resolve. O controlo e o acompanhamento da forma como se vai utilizar este dinheiro é importantíssimo. Tem de ser feito de uma maneira muito séria e muito desprendida dos interesses individuais. É, se calhar, a última oportunidade que vamos ter para resolver alguns problemas estruturais que temos e não é fazer coisas com muita visibilidade que vai resolver os problemas. É encontrar os caminhos certos para os resolver e estes não têm de ser iguais para todo o país.

Apesar de Portugal ser pequeno, somos um país com muita diversidade e esta deve ser vista como um trunfo. Às vezes vemos como um problema, mas a desigualdade é que é um problema, a diversidade é um trunfo. A desigualdade, que é aquilo que estamos a sentir que está a acontecer no nosso país é um problema que temos de combater. Nenhuma solução que aumente a desigualdade é uma solução seja ela vinda de uma estrutura, seja vinda de uma campanha. Temos de enfrentar isto com muita coragem, muita abertura de espírito e de uma forma permanentemente crítica, assumindo o contraditório. Temos de assumir que, às vezes, temos de ouvir uma resposta diferente ou sugestão diferente da nossa para agir.

A receita para os primeiros tempos não são iguais às de agora. Os idosos são um exemplo fantástico da resiliência, já passaram por muito

Falando de desigualdade e exclusão social, acha que a pandemia da Covid-19 vai comprometer o trabalho feito até agora para combater estas assimetrias?

No trabalho que vinha a ser feito? Não sei responder-lhe [risos]. Há um grupo grande de pessoas que faz deste propósito a sua missão. E muitas vezes temos um propósito e temos consciência da missão, mas não conseguimos ter as condições para o fazer. Acho que há mais consciência de que nunca da necessidade de apoiar, de forma construtiva e com soluções para a vida, as pessoas que estão mais frágeis, mais desiguais, mais vulneráveis. Não pode é ser só discurso, tem é de ser efetivamente e, por isso, não é preciso um programa para promover a igualdade, é preciso haver consciência social, é preciso que as pessoas percebam que para resolver os problemas não são precisos os outros. Tem de começar por nós. Pela nossa proximidade, pela forma como olhamos para os que têm mais problemas do que nós. Tentando fazer até o exercício de ‘se fosse eu, o que eu faria’. Quando nos dispomos a pensar dessa maneira, tenho por experiência de que conseguimos, de facto, encontrar soluções.

A dada altura da minha vida construi um programa que tinha como base de pensamento um grupo que se chamava ‘Amigos Críticos’. E aprendi tanto, tanto nessa altura. Juntei um grupo de pessoas que era completamente improvável de se juntar a trabalhar. E o programa que saiu é de uma riqueza que jamais seria possível se fosse feito pelos prováveis. O saber de quem passa pelo problema, despido da natural angústia que vem junto, pode dar muitas soluções que não estávamos a pensar.

Às vezes, desvalorizamos aquilo que é mais óbvio que é: Quem passa pelo problema sabe muito mais dele do que qualquer um de nós. É muito mais confortável sentarmo-nos à volta de uma mesa e pensarmos as coisas, vermos os números e pensarmos nas pessoas, mas se não formos à proximidade e não conhecermos o problema, estamos a construir sobre uma hipótese e isso é um trabalho académico.

Um dos grupos etários que mais sofreu e continua a sofrer com as ‘sequelas’ da pandemia é o dos idosos, não só por serem os mais afetados pela doença, como também por padecerem com o confinamento e a distância física. Que trabalho podia ser feito junto destes para atenuar os efeitos do medo e do isolamento?

Vivi uma experiência durante este tempo que foi ser responsável por um lar de idosos. Na primeira fase, foi dificílimo explicar aos utentes porque é que os estávamos a proibir de sair. Foi uma fase muito dura, foi duríssima. Além das depressões e das coisas mais sérias, foi muito, muito complicado. Mas o nosso objetivo era protegê-los o mais possível, dentro do que era possível, do vírus. Quando desconfinámos foi uma grande alegria porque começámos a ter visitas. Contudo, por um descuido do nosso sistema, houve uma contaminação cruzada. Pedimos que nos fizessem testes e a resposta demorou 15 dias, o que significou que, quando os fizemos, só três pessoas é que não estavam infetadas. Portanto, foi uma crise enorme, principalmente, porque se aproximava o Natal, mas quando chegou esta altura, todos estavam zerados (negativos) o que permitiu que se celebrasse o Natal e isso deu uma nova vida àquele gente. E eles são a testemunha da nossa resiliência. Até me apetece ir para lá, toda a gente se queixa, toda a gente se queixa e lá é uma festa [risos].

Quero com isto dizer que estar atento ao que se passa em cada momento é essencial. A receita para os primeiros tempos não são iguais às de agora. Os idosos são um exemplo fantástico da resiliência, já passaram por muito. Revoltaram-se o que eu acho fantástico. Depois fiquei seriamente preocupada quando eles começaram a deprimir. Hoje é ‘venha lá esse vírus, essa coisa’, ainda por cima agora vacinados, andam de peito cheio [risos].

Mas acha que este é o grupo etário com mais medo de uma nova vaga da Covid-19?

Muitos estão fechados em casa com medo, mas o medo que aconteça alguma coisa como a que se passou não tem idade. É uma coisa absolutamente transversal. Claro que há gente a desrespeitar as medidas, claro que há gente que anda em grupos, claro que há gente que se abraça como se a amizade nos protegesse de qualquer doença, mas se as pessoas fazem distância quando se cruzam com alguém na rua, reagem se há uma pessoa tosse, evitam os transportes públicos, é porque têm medo. E agora, o isolamento deixou de ter idade.

Quando se falava em solidão falava-se em idosos. Hoje há muitos adultos sozinhos. Durante um ano, não foram ao centro de dia, não conviveram com os seus grupos. Essas pessoas, sim, vão ter mais dificuldade em enfrentar a normalidade, porque, além disso, não há normalidade. A experiência na vida dá ferramentas que nos permitem melhor encarar os problemas consoante maior é a idade, desde que não tenhamos uma perspetiva muito depressiva, em que tudo o que nos acontece é uma grande desgraça, mas isso também não tem idade, há gente que reclama desde que nasce. Os ministros da reclamação existem em todas as idades [risos]. Os jovens que vivem na sua vida, agarrados aos computadores, terão muito mais dificuldade em fugir à solidão do que esta gente terá. Os idosos são um exemplo fantástico.

Em 74 anos de existência da Cáritas Portuguesa, é a segunda mulher a assumir a liderança. É sintomático da desigualdade de género que ainda persiste na sociedade? Surpreendeu-a o convite? E sente alguma pressão por isso?

Na minha vida nunca me preocupei com a desigualdade de género em lado nenhum. Sou ex-aluna do instituto de Odivelas e, se calhar, como ‘adolescentei’ só com meninas, nunca senti que houvesse alguma coisa que não pudesse fazer por causa do meu género. Durante o Ano Internacional da Igualdade de Género, que se celebrou há uns anos, fui confrontada, muitas, muitas vezes, porque participei num dos grupos de trabalho sobre isso, com essa questão e acho que, às vezes, quase não compreendo essa realidade. Já no que diz respeito à Cáritas, acho até um bocadinho o contrário. Quando eu tomei posse, o presidente da Conferência Episcopal e o Presidente Pastoral Social, dois bispos, fizeram questão de referir, quão importante era, que fosse uma mulher nos destinos das Cáritas, exatamente pelas especificidades que a mulher tem. O saber ser colo, saber ser próxima, o olhar como uma mãe olha os seus filhos, com uma grande perspetiva de proteção, mas também de autonomia. E isto foi um enorme elogio e uma enorme responsabilidade porque foca no género a questão. Claro que há muitos homens capazes de dar a mesma resposta, mas na verdade, na nossa cultura, isso ainda é um papel desenvolvido pelas mulheres e o facto de haver esse propósito quando me chamaram é um elogio e uma grande responsabilidade que eu farei tudo para corresponder e para que a rede Cáritas em Portugal possa ter condições para cumprir o seu papel.

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