"Saúde mental sofre do mesmo problema que outras áreas do SNS: Escassez"
O médico psiquiatra e diretor clínico do PIN – Partners in Neuroscience, Gustavo Jesus, é o entrevistado de hoje do Vozes ao Minuto para nos falar não só do seu livro '300 Mil Anos de Ansiedade' como para fazer um balanço do estado da saúde mental em Portugal.
© Esfera das Ideias
País Gustavo Jesus
Acordar. Tomar o pequeno-almoço às pressas. Levar os miúdos à escola. Apanhar trânsito. Chegar atrasado ao trabalho. Cumprir objetivos. Pagar contas. Ir buscar os miúdos à escola. Regressar a casa. Apanhar novamente trânsito. Preparar as refeições. Dormir e repetir. Reconhece esta rotina? Se calhar ainda acrescentava, limpar a casa, lavar a roupa, estender, dobrar e arrumar. E mais uma data de outras tarefas diárias que, só de ler (e escrever), cansam.
Nos dias de hoje, a vida mais parece um comboio a alta velocidade, com poucas paragens para respirar. Por isso, não é de estranhar que a maioria de nós se sinta muitas vezes ansioso. O problema é quando tudo descarrila e o stress passa a ser demasiado intenso, desproporcional e a afetar-nos demasiadas vezes. Aí, a ansiedade torna-se patológica e precisamos de ajuda para que não se transforme em algo mais grave.
É esta e outras questões que Gustavo Jesus, médico psiquiatra e diretor clínico do PIN - Parners in Neuroscience -, aborda no livro '300 Mil Anos de Ansiedade'. Em entrevista ao Notícias ao Minuto, o também professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, revela que o que chamamos hoje de ansiedade já nos deu muito jeito. Aliás, "foi útil ao longo da evolução da espécie" para combater os perigos. Só que a espécie humana não teve tempo de se adaptar a "um ambiente que tem 200 anos" e a ansiedade começou a sair dos carris.
Em conversa com Gustavo Jesus, aproveitámos ainda para perceber como é que está a saúde mental em Portugal e para saber qual a sua opinião sobre a nova lei da saúde mental, que prevê "a prestação de cuidados de saúde mental num ambiente o menos restritivo possível". Uma entrevista que não vai querer perder, podendo lê-la a partir daqui.
Vamos começar pelo título do seu livro. ‘300 Mil Anos de Ansiedade’ porquê?
A ansiedade está connosco desde que existimos como espécie. A espécie humana, mais propriamente o homo sapiens sapiens tem, de acordo com as últimas evidências, 300 mil anos de existência e, embora se diga que a ansiedade é um problema dos tempos modernos e que é a pandemia do século XXI, na verdade, a ansiedade sempre existiu e até foi útil ao longo da evolução da espécie.
A nossa espécie não teve tempo para se adaptar a esse ambiente e o que acontece é que isso está a desencadear respostas de perigo a coisas que não têm grande perigo
Foi útil? Em que aspetos?
A ansiedade, no fundo, é uma transformação moderna daquilo que era ancestralmente um mecanismo de defesa do ser humano, relativamente ao perigo e às ameaças. Quando temos ansiedade, temos sintomas físicos e psicológicos que, ancestralmente, em reação ao perigo, eram úteis. Quando víamos um leão era importante fugir ou lutar com o leão, para isso tínhamos de estar alerta, preocupados, atentos. Tudo sintomas psicológicos de ansiedade, mas também tínhamos de ter bastante sangue a circular nos nossos órgãos para conseguirmos correr, oxigénio no sangue para conseguir ter os músculos a funcionar, o coração tinha de bater depressa, a respiração tinha de se tornar mais ofegante.
Não era conveniente andar a fazer xixi enquanto fugíamos do leão. Portanto, todas estas funções fisiológicas tinham de se adaptar ao ambiente de perigo. Assim, ao longo das gerações, a seleção natural fez com que sobrevivessem os humanos que melhor respondiam ao perigo, os que sobreviviam eram os que conseguiam uma resposta boa na relação com o perigo e foram estes que passaram os seus genes.
Mas entretanto, tornou-se num problema...
A questão é que o ambiente moderno é totalmente diferente daquele do qual evoluímos. O nosso ambiente atual todos os dias muda radicalmente, mas deve ter para aí uns 200 anos e nós tivemos uma evolução que demorou centenas de milhares de anos para viver num ambiente que tem 200 anos. A nossa espécie não teve tempo para se adaptar a esse ambiente e o que acontece é que isso está a desencadear respostas de perigo a coisas que não têm grande perigo ou, pelo menos, não têm o perigo para o qual o nosso corpo e cérebro estão preparados, e esses perigos psicológicos que nós detetamos dão depois origem a respostas que são reproduzidas na ansiedade.
Ancestralmente, estamos preparados para lidar com o stress agudo e a nossa vivência atual é sobretudo uma vivência de stress crónico
E quais são os 'perigos' que causam mais ansiedade na sociedade atual? O que é que desencadeia mais estas respostas?
Todo o stress psicológico pode desencadear respostas. Todos nós temos ansiedade e a ansiedade é normal, por exemplo, quando temos um exame, quando vou ser pai, quando tenho uma entrevista de trabalho. Mas é uma ansiedade proporcional, ou seja, aí o sistema de alarme está a funcionar bem. Pode passar a existir uma perturbação de ansiedade quando esse sistema de alarme funciona demasiadas vezes, com demasiada intensidade e de forma desproporcional em relação aquilo que a gerou e também de forma muito duradoura. Então aí já podemos ter uma ansiedade que é patológica.
Além disso, é preciso ter em conta que, ancestralmente, estamos preparados para lidar com o stress agudo e a nossa vivência atual é sobretudo uma vivência de stress crónico. Toda esta coisa de stress laboral, todos os dias temos objetivos a cumprir, temos chefias, temos de cumprir regras, temos trânsito, temos de ir pôr os miúdos, de ir buscar os miúdos, pagar as contas, etc. E, sobretudo neste contexto que temos hoje, tivemos uma pandemia, agora temos a guerra, a inflação. O que temos mais hoje em dia não é o stress agudo, que nós conseguimos lidar bem, mas um stress crónico e é esse que é o mais preocupante porque tem consequências a médio prazo no nosso cérebro, dando origem a perturbações de ansiedade mais graves, mais duradouras e, eventualmente, a um quadro de depressão e doenças não psiquiátricas também.
Então, quando é que nos devemos preocupar com o nosso estado de ansiedade?
Os critérios principais são o grau de disfunção que causa - Está a causar perturbação no meu dia-a-dia? Antigamente conseguia lidar com isto e agora já não consigo? Conseguia ter ansiedade e geri-la e agora já não estou a conseguir? Evito coisas que não evitava? Deixo de fazer coisas que fazia? -, a intensidade e a duração. Estou permanentemente assim quando antigamente era uma coisa episódica? Antigamente era de uma intensidade moderada que eu tolerava e agora é tão intensa que me causa um sofrimento horrível?. Implícito naquilo que já disse há ainda outro critério que é quando as pessoas acham que estão diferentes do que eram antes, ou seja, as pessoas funcionavam de uma maneira e passaram a funcionar de outra. Claro que depois há aqui um fator que deve ser tido em consideração que é o da personalidade porque há pessoas que têm personalidades mais ansiosas que outras ou com mais tendência à ansiedade e esta é uma variável que complica mais o diagnóstico, mas é por isso que é preciso profissionais de saúde mental para fazer o diagnósticos.
Neste momento, o acesso a consultas no SNS no âmbito da saúde mental é limitado
Tal como recorda no livro '300 Mil Anos de Ansiedade', há uma série de fatores ambientais e genéticos por detrás das perturbações psicológicas. Como podemos evitar 'transmitir' essas perturbações aos nossos filhos?
A genética é impossível de controlar. Metade dos genes de cada um dos progenitores vai para a criança e é provável que, alguns deles, possam aumentar a probabilidade de também a criança ter uma perturbação de ansiedade. Por outro lado, também pode ter um estilo educativo que é gerador de ansiedade ou de preocupação e que vai moldar aquela criança de forma a, no fundo, estimular o fortalecimento de traços ansiosos. Por isso, quando uma pessoa é ansiosa e teme passar essa característica aos filhos, o mais óbvio é fazer psicoterapia.
O tratamento farmacológico trata as perturbações de ansiedade em muitos casos e trata os sintomas, etc., mas, muito provavelmente, sem psicoterapia a pessoa não vai ter uma grande capacidade de perceber o que está a transmitir aos filhos do ponto de vista comportamental. É óbvio que se um pai ou uma mãe fizer tratamento para a ansiedade transmita menos ansiedade mas, ainda assim, em termos comportamentais, dos estilos, dos hábitos, da relações, etc, só a psicoterapia é que pode ajudar.
E nota que nos últimos três anos, com a pandemia, a guerra, a inflação, o futuro incerto há mais pessoas a precisarem de ajuda?
Um dos capítulos do meu livro chama-se 'Tudo sob controlo' e fala precisamente sobre o que é que o controlo sobre a situação faz à vivência da ansiedade. Quando uma pessoa não controla o que está a acontecer, em regra, isso gera mais ansiedade. Tudo o que não posso controlar e não posso modificar gera mais ansiedade. Além do incontrolável temos outra característica que é o imprevisível, ou seja, quando não sei qual vai ser o desfecho. Estas duas características em conjunto, que foram muito vividas na pandemia e agora são novamente muito vividas devido à guerra [na Ucrânia], aumentam a vivência de stress desnecessariamente. Sabemos - e há estudos epidemiológicos nesse sentido - que ao longo da pandemia houve um aumento das prevalências das perturbações de ansiedade. Provavelmente, parte dessa prevalência vai reduzir-se mas, estima-se que, há uma parte que se mantém.
Além disso, há outro fator que contribui para o aumento dos pedidos de ajuda. Como se falou muito em saúde mental durante a pandemia, a saúde mental veio para as bocas do mundo e há mais sensibilidade para as pessoas procurarem ajuda. Portanto, há este duplo efeito. As prevalências aumentaram, mas também se fala mais do assunto, logo, provavelmente, mais pessoas procuram ajuda. A resposta à sua pergunta é então um 'sim'. De facto, nós notamos um aumento da procura.
A prevalência de depressão e perturbações de ansiedade em Portugal é elevadíssima. (...) É a segunda mais alta da OCDE, abaixo apenas da Irlanda do Norte
Há resposta para essa procura no Serviço Nacional de Saúde (SNS)?
No SNS a saúde mental sofre dos mesmos problemas que todas as outras áreas da saúde, ou seja, há escassez. Há escassez de médicos, há escassez de psicólogos. A primeira linha no tratamento das doenças mentais é o médico de família e também há uma grande escassez de médicos de família. Muitos portugueses não têm médico de família e os que têm, muitas vezes, têm dificuldades em aceder a ele. Neste momento, o acesso a consultas é reduzido, mas não é só na psiquiatria, é em todas as especialidades. E os tempos de espera nas consultas estão a aumentar devido à escassez, por exemplo, de classes profissionais como os psicólogos, que têm a capacidade de alguns tipos de intervenções. Portanto, não. Neste momento, o acesso a consultas no SNS no âmbito da saúde mental é limitado.
Psicadélicos? Não podemos começar a fazer utilizações pouco baseadas na evidência e é isso que eu temo que possa acontecer
Em relação aos médicos de família, há quem se queixe do excesso de prescrições de fármacos no âmbito da doença mental por parte destes profissionais de saúde. Qual a sua opinião sobre este assunto?
É claro que os psiquiatras têm um conhecimento mais abrangente e mais aprofundado dos psicofármacos, mas isso não quer dizer que os médicos de família não os possam prescrever, sobretudo para as doenças mentais mais comuns, nomeadamente, depressão e perturbações de ansiedade. A prevalência de depressão e perturbações de ansiedade em Portugal é elevadíssima. Aliás, é elevadíssima em todo o mundo e está a aumentar mas, em Portugal, é a segunda mais alta da OCDE, abaixo apenas da Irlanda do Norte. Assim, com esta prevalência seria impossível, com os recursos disponíveis em psiquiatria e mesmo que se aumentasse muito os recursos seria muito difícil, dar resposta à doença mental comum nos serviços de psiquiatria.
Por isso, as depressões e ansiedade, numa primeira linha, devem ser tratadas nos cuidados de saúde primários pelos médicos de família. Eles têm capacidade técnica, aliás, fazem formação para isso. Infelizmente, e fica aqui a nota, um bocadinho em contra ciclo com as necessidades em Portugal, antigamente, durante a formação de medicina geral e familiar, era obrigatório passar-se três meses na psiquiatria e agora reduziu-se para um mês, o que é para mim incompreensível porque há mais doença mental e mais necessidades. Parece-me um pouco absurdo, mas foi o que aconteceu. Ainda assim, existe essa formação.
É, então, suposto que os médicos de família saibam prescrever e medicar, utilizando os antidepressivos mais comuns, as perturbações de ansiedade e as depressões. Com outras doenças também é assim. Por exemplo, não é preciso ir ao cardiologista para ser medicado para a hipertensão arterial e também não se vai a um endocrinologista para se medicar a diabetes. Essas doenças primárias são atendidas pelos cuidados de saúde primários. Só quando a coisa é mais complicada é que são referenciadas para a especialidade.
O que pensa sobre as terapias assistidas por psicadélicos?
Psicadélicos é uma classe muito ampla, tem coisas muito diferentes. Podemos estar a falar de cetamina (ketamina) ou podemos estar a falar de psilocibina, ou seja cogumelos, mas também podemos estar a falar de LSD e de outras coisas. Todas elas são moléculas com mecanismos de ação diferentes, todas com efeitos psicológicos e psiquiátricos diferentes. Em geral, na verdade, hoje em dia, para nenhuma delas o grau de evidência científica é suficiente para que seja recomendado. Isto para dizer que, na minha opinião, não há ainda evidência suficiente para recomendar, com regularidade, a utilização de psicoterapia assistida por psicadélicos. Porém, acho que deve ser investigado. Está a ser estudado e devemos aguardar por resultados de investigações de qualidade. Não podemos começar a fazer utilizações pouco baseadas na evidência e é isso que eu temo que possa acontecer.
Recentemente, foi divulgado que os internamentos compulsivos, a que se deve recorrer em situações graves e como medida de último recurso, subiram em 2021, para valores acima dos registados antes da pandemia. Na sua opinião, a que se deve este aumento?
Para já, que fique claro que os internamentos compulsivos não se aplicam às pessoas em geral com ansiedades e depressão. O internamento compulsivo é um instrumento terapêutico para um doente com uma psicose, ou seja, uma descompensação de esquizofrenia, uma descompensação grave da doença bipolar e, nestes casos, não há um aumento de prevalência.
Durante a pandemia, houve um aumento de depressões e ansiedades, mas não um aumento de esquizofrenia e bipolaridade. O que há sim é uma diminuição dos bons cuidados em ambulatório. Durante a pandemia, os hospitais não fecharam mas estiveram com um acesso muito reduzido. As consultas passaram a ser telefónicas, o acesso ao hospital reduziu-se. Isto, associado a um grande stress psicológico, provavelmente, levou à descompensação de mais pessoas com doença mental grave, como esquizofrenia e doença bipolar.
Por isso acho que é expectável que haja mais internamentos compulsivos. O aumento dos internamentos compulsivos não me parece ser um mau indicador, é é um indicador de que mais pessoas com doença mental precisaram de tratamento e tiveram de ser internadas compulsivamente.
Médicos de família têm de aumentar a formação em psiquiatria e saúde mental e também de melhorar a articulação entre os serviços de psiquiatria e os cuidados de saúde primários, que é uma coisa que está no papel há décadas e que, na prática, cada vez acontece pior
Ainda nesta senda, o Parlamento está a debater uma medida que prevê "a prestação de cuidados de saúde mental num ambiente o menos restritivo possível". O que lhe parece esta nova lei sobre a saúde mental?
A ideia geral é positiva. Acho que a forma como está a ser comunicada é que é enganadora. A lei de saúde mental em Portugal é de 98 e, para quem conhece bem as duas leis - a lei de 98 e aquela que está agora a ser proposta e a ser discutida na Assembleia da República-, as alterações não são assim tão significativas na prática. É óbvio que há a passagem a texto de especificações relativas aos direitos dos doentes e muito bem. Há uma preocupação com os direitos dos doentes, em passá-los a escrito, em deixar bem claro que um doente só porque tem doença mental, é internado ou está em tratamento involuntário tem os direitos que as outras pessoas têm e isso é óbvio que tem de ficar registado.
Contudo, a forma como tem sido comunicada esta nova lei dá a entender que, hoje em dia, a psiquiatria faz os tratamentos em ambiente muito restritivo e que interna por tudo e por nada e com esta nova lei vai passar a tratar em ambiente pouco restritivo e a internar menos. Isto é absurdo. Na verdade, estou convencido que, desse ponto de vista, não vai mudar nada porque o internamento compulsivo hoje em dia já é utilizado como último recurso. O tratamento é predominantemente feito em ambulatório. É bom que isso perceba. Não há nenhuma mudança aí.
O que vai haver é, segundo dizem e que está a ser publicitado pela Coordenação Nacional das Políticas de Saúde Mental, um investimento na melhoria dos cuidados de saúde. Há um foco muito grande nas estruturas comunitárias de saúde mental e ela é meritória e é importante. Ela vai permitir reforçar os cuidados ambulatórios sobretudo nos doentes graves mas, por outro lado, não podemos esquecer que não pode ser um investimento sozinho. Tem de ser acompanhado de um investimento a nível do internamento, do aumento do número de vagas de camas disponíveis, uma melhoria dos cuidados continuados do ponto de vista da rede de doentes crónicos que, depois do internamento, necessitam de apoio domiciliário.
Está, portanto, planeado um investimento em saúde mental muito focado nas unidades comunitárias, o que tem vantagens, mas que descura um pouco outras vertentes dos cuidados de saúde mental. Mas o que é preciso deixar claro é que não é com esta nova lei que os cuidados vão passar a ser predominantemente ambulatórios porque eles já o são e o internamento já é usado como último recurso. A forma como a nova lei está redigida não muda radicalmente, muda, na verdade, muito pouco sobre o quem são os doentes que precisam de internamento compulsivo, ou melhor, involuntário, que é como vai passar a chamar-se agora.
A depressão, por exemplo, é a principal causa de incapacidade para o trabalho
Além das unidades comunitárias, como falou, onde é que é mais urgente investir no âmbito da saúde mental em Portugal?
Há duas vertentes onde se deve ponderar o investimento. Na doença mental comum, que é altamente prevalente e inclui a depressão e a ansiedade. Estas doenças têm imensos custos para a própria sociedade. A depressão, por exemplo, é a principal causa de incapacidade para o trabalho. Ora se é a principal causa de incapacidade para o trabalho está a ver os custos que isto tem em termos de empresas e de Estado, através das baixas médicas, e não através das equipas comunitárias de saúde mental que estas pessoas vão ser tratadas. É bom que as pessoas percebam isto porque as equipas de saúde mental comunitárias vão ser reservadas e vão ser dedicadas à doença mental grave, ou seja, doentes psicóticos, esquizofrenia, doença bipolar. A depressão e a ansiedade vai continuar a ser tratada onde é.
Então, sem dúvida que devemos investir num reforço dos cuidados de saúde primários, para que tenhamos médicos de família com capacidade de tratar todos os doentes que os procurem. Além disso, é importante investir no número de psicólogos disponíveis nos centros de saúde para permitir as intervenções não farmacológicas a par das farmacológicas. O médico de família inicia a terapêutica farmacológica e, a par disso, é necessário que haja uma psicoterapia. Algo que, neste momento, é praticamente uma virtualidade no SNS, em particular, nos cuidados de saúde primários.
Além disso, também é muito importante a formação dos médicos de família que, como já disse, tem vindo a reduzir e isso não pode acontecer. Têm de aumentar a formação em psiquiatria e saúde mental e também de melhorar a articulação entre os serviços de psiquiatria e os cuidados de saúde primários, que é uma coisa que está no papel há décadas e que, na prática, cada vez acontece pior, até porque os médicos de família estão assoberbados de trabalho.
Um dos grandes problemas que faz com que as pessoas não se tratem dos seus problemas de saúde mental é o estigma, não só associado às doenças como também associado aos tratamentos
E quanto à doença mental grave?
Quanto à doença mental grave, que é aquela que vai beneficiar das equipas comunitárias, o investimento nestas equipas é muito importante para permitir um tratamento de proximidade e de acompanhamento próximo daqueles que não conseguem manter um acompanhamento de outra forma, nomeadamente, dos doentes com psicoses, esquizofrenia, com deterioração das suas relações sociais, das suas relações laborais. Para estes doentes é necessário também não descurar de outras duas vertentes: O serviço de urgência em psiquiatria - que está a deteriorar-se e a funcionar de forma muito insuficiente - e camas de internamento, porque o atual plano prevê que, até 2026, o número total de camas de doentes agudos diminua. Ora, neste momento, a lotação dos serviços de psiquiatria de agudos já é sempre ou quase sempre 100% ou superior, o que significa que, neste momento, já não há vagas suficientes para internar as pessoas que estão doentes e vamos diminuir o número total de camas de agudos? Eu prevejo que o problema se agrave.
Há quem ache que o facto de investirmos em equipas comunitárias vai permitir não internar pessoas, pois eu penso que isso não vai acontecer. Para já há literatura internacional que mostra que, em Inglaterra e na Austrália, por exemplo, foi-se um pouco longe demais no encerramento de camas. Não havendo camas de agudos não há equipas comunitárias suficientes que permitam um tratamento também adequado. Além disso, um aumento da presença na comunidade vai reforçar o diagnóstico, vai sensibilizar, vai permitir um diagnóstico mais frequente e um encaminhamento para o internamento.
Portanto, provavelmente, acho que a necessidade de camas de internamento não vai diminuir, vai manter e, provavelmente, até aumentar numa primeira fase. Portugal já é dos países da OCDE com menos internamentos por 100 mil habitantes, não sei muito bem como é que se espera que o número de internamentos reduza de tal forma que sejam necessárias menos camas que já estão sempre cheias. Acho que deviam pelo menos manter o mesmo número, substituindo as camas que existem em hospital psiquiátricos - que vão encerrar e bem, na minha opinião -, por, pelo menos, igual número em hospitais gerais, nos serviços de psiquiatria, e não é isso que está previsto.
Ao longo dos últimos anos tem havido um aumento do debate à volta da saúde mental e acho que isso é positivo, mas, às vezes, também temo que se possa cair noutro extremo que é normalizar-se a doença. Às vezes parece que é normal estar doente e não é normal estar doente
De regresso ao seu livro '300 Mil Anos de Ansiedade'. O Gustavo utilizou uma linguagem simples para falar de um tema complexo, de forma a que qualquer leigo na matéria perceba o funcionamento do nosso cérebro. Acha que há uma necessidade de falar de uma forma clara e descomplicada sobre ansiedade?
Acho que é necessário falar sobre todos os temas relacionados com a saúde mental. Tudo o que seja discutir saúde mental e, por essa via, desestigmatizar a saúde mental, os cuidados de saúde mental, aumentar a procura de serviços e a procura de tratamentos é positivo. Um dos grandes problemas que faz com que as pessoas não se tratem dos seus problemas de saúde mental é o estigma, não só associado às doenças como também associado aos tratamentos. Portanto, quanto mais se falar sobre o tema, de forma o mais descontraída possível, mais aumenta o acesso, o diagnóstico e o tratamento.
Ainda está, então, enraizado na nossa sociedade algum preconceito quanto às doenças mentais?
Acho que há cada vez menos preconceito, mas ele ainda existe. A psiquiatria e a saúde mental devem ser tratadas como qualquer outra especialidade porque aquilo que é tratado de forma diferente gera estigma. Por isso, acho que as coisas devem ser tratadas de forma igual, dentro do possível como é evidente, para que o estigma seja reduzido. Quanto mais se falar sobre isso melhor. Ao longo dos últimos anos tem havido um aumento do debate à volta da saúde mental e acho que isso é positivo, mas, às vezes, também temo que se possa cair noutro extremo que é normalizar-se a doença. Às vezes parece que é normal estar doente e não é normal estar doente. Como mensagem final é importante dizer que é muito bom reduzir o estigma, aumentar a sensibilização, normalizar as experiências, mas também perceber que quando as experiências de doença existem elas têm de ser tratadas.
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