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"O abusador pode ser a pessoa que também brinca, cuida, leva à escola"

A vice-presidente da Ordem dos Psicólogos, Renata Benavente, é a entrevistada desta terça-feira do Vozes ao Minuto.

"O abusador pode ser a pessoa que também brinca, cuida, leva à escola"

A Ordem dos Psicólogos lançou um documento - 'Vamos Falar Sobre Abuso Sexual' - que visa a sensibilizar a sociedade para crimes de natureza sexual contra crianças e jovens. Especialista em psicologia clínica, nomeadamente no que a temas relativos à infância diz respeito, a vice-presidente daquele órgão, Renata Benavente, alerta para o facto de o tema estar 'mergulhado' em "desconhecimento" e desinformação, designadamente no que toca à prática deste tipo de crimes na internet.

Em entrevista ao Notícias ao Minuto, a psicóloga sublinha que a prevenção e conhecimento são ferramentas importantes para "reduzir o número" de atos desta natureza. Apesar de estarem a ganhar (mais) credibilidade e a denunciar mais, ainda há "muito estigma" associado às vítimas de abuso sexual. Estes atos praticados na infância e/ou adolescência podem ter consequências a nível físico e psicológico, cujos "sinais ao nível do comportamento e da expressão emocional devem ser observados com atenção".

"Não se sabe com que idade se deve começar a falar destas questões da sexualidade, mas deve ser feito desde cedo, porque quando acontece, sobretudo os casos de abuso intrafamiliar, a criança nem tem noção que está a ser vítima de abuso", explicou Renata Benavente.

Segundo a Ordem dos Psicólogos, só em 2022, registaram-se 1.752 crimes de abuso sexual, mais de 80% contra crianças e jovens. Em traços gerais, 90% dos agressores são homens, 50% dos casos ocorrem em ambiente familiar e 88% dos agressores convivem com a criança. Uma realidade dura e alarmante.

Lançado no mês de julho, o relatório pretende ser um guia criado com o objetivo de ajudar as potenciais vítimas, pais, cuidadores e profissionais que trabalham com crianças e jovens a identificar potenciais abusadores que, muitas vezes, "podem ser a pessoa que brinca, que cuida, que leva à escola, que apoia nos trabalhos de casa".

É um tipo de criminalidade em que a prova do crime é a prova testemunhal, não há evidências físicas

O conceito de abuso sexual não está claro para a maioria da sociedade?

À primeira vista, sabemos que há aqui algum desconhecimento porque não se fala dos assuntos e não são clarificados, as pessoas não têm informação suficiente sobre este tema. Então, há uma série de comportamentos que podem ocorrer no contexto presencial e noutros ambientes, nomeadamente no online, nas redes sociais, na comunicação que hoje em dia é tão utilizada precisamente por crianças e jovens e que configuram práticas de abuso e violência sexual. Por exemplo, o envio de mensagens, fotografias ou vídeos de cariz sexual, obrigar, incentivar ou aliciar crianças ou jovens a expor o seu corpo, a enviar fotografias.

Muitas vezes, nestes casos, a criança ou jovem é aliciada a fazer este tipo de coisas, que são utilizadas como força de coagir esta criança ou jovem para outro tipo de práticas. Também há casos em que estes conteúdos são depois disseminados junto de outras pessoas. A partilha é feita no contexto de uma relação de alguma intimidade e depois é reproduzida noutros contextos que não aquele da relação onde a vítima fez a partilha. Isto pode ter um impacto muito sério. É fundamental sensibilizar as crianças e jovens para as consequências destes comportamentos e [o documento] funciona sobretudo como uma estratégia para prevenir outro tipo de situações ainda mais graves.

Registaram-se 1.752 crimes, mais de 80% contra crianças e jovens, no ano passado. Em que 'falhou' a sociedade para que estes números sejam tão elevados?

O aumento das denúncias não significa que haja mais situações, ou seja, por um lado, há maior conhecimento de que isto é uma prática desadequada, é um crime, deve ser reportado e isto faz com que as denúncias aumentem. Por outro lado, há um aumento da confiança sobre o próprio sistema, sobre o sistema de justiça, sobre os processos de investigação e sobre a credibilização que é dada às vítimas de abuso. É um tipo de criminalidade em que a prova do crime é a prova testemunhal, não há evidências físicas e, portanto, há muitas dúvidas sobre a credibilidade que o testemunho vai ter. A vítima pondera fazer a denúncia, mas é 'a minha palavra contra a do agressor'. Muitas vezes e frequentemente, o agressor tem uma posição de poder que decorre da idade ou até da relação que tem com a vítima, numa hierarquia que a fragiliza, no sentido em que aumenta as dúvidas sobre a credibilidade que vai ser dada ao seu testemunho.

O aumento das denúncias não significa que haja mais situações. Há maior conhecimento de que [abuso sexual] é um crime

Ainda assim, as vítimas têm ganhado coragem e denunciam...

As vítimas estão a ser credibilizadas, as pessoas estão a falar desta questão, é uma temática que felizmente tem sido muito abordada, nomeadamente na comunicação social, que é um veículo muito importante de disseminação de informação e de conhecimento junto da população em geral. O facto de se falar mais, das crianças e jovens perceberem que estão perante uma situação de abuso - muitas vezes nem têm bem essa noção - pensarem que o seu testemunho vai ser credibilizado, que alguém vai ouvir o que têm para dizer, poderá fazer aumentar o número de denúncias, não significando, no entanto, que o número de casos esteja a aumentar.

Normalmente o processo de revelação é feito a alguém de confiança...

Para que estas questões deixem de acontecer é fundamental dar alguma formação, não só a crianças e jovens, mas também às famílias sobre sinais ou sintomas que a criança possa apresentar que remetem para a hipótese de estar a ser vítima de abuso. Também dar conhecimento aos profissionais que lidam com crianças e jovens - como professores, educadores, treinadores - que podem ser figuras de referência a quem as crianças e jovens frequentemente fazem a revelação, aquele momento em que, pela primeira vez, a criança ou jovem partilha que está a ser vítima de um abuso. Este é um momento crítico para o processo de ajustamento e de recuperação face a este acontecimento que é potencialmente traumático. Como é que se lida com uma criança que nos diz, por exemplo, 'eu fui vítima de abuso, o meu padrasto está a fazer-me isto'? Muitas vezes nem entram em detalhes, porque não têm bem noção da gravidade das coisas.

O abusador pode ser a pessoa que também brinca, que cuida, que leva à escola, que apoia nos trabalhos de casa

Os dados mostram que os abusadores são, por norma, pessoas próximas das vítimas. Há um perfil definido?

O que nós sabemos sobre o perfil dos agressores é que tendencialmente são pessoas que socialmente estão bem integradas, não há indicadores dessa natureza que nos possam fazer suspeitar que a pessoa é ou não é agressor. Também não existem características físicas ou psicológicas que sejam determinantes para a identificação deste perfil. Normalmente, são pessoas até com boa adequação do ponto de vista de socialização, mas têm estas práticas com menores e, portanto, nesse sentido é difícil identificar os agressores. Daí o nosso trabalho ser, acima de tudo, de sensibilização quer das potenciais vítimas, quer das pessoas que privam com essas potenciais vítimas, para sinais ou comportamentos menos adequados. Coisas como ensinar os limites e o que é aceitável no contexto de uma relação entre criança e adulto, as questões do toque - o que é um toque adequado ou inadequado -, como se é adequado enviar fotografias sem roupa para alguém. Portanto, há que fazer este trabalho de prevenção para evitar que a criança se envolva em dinâmicas desta natureza.

Tendo em conta a proximidade, torna-se difícil identificar o abuso e o agressor como tal?

A existência de uma relação afetiva pode comprometer o processo de revelação. O abusador - e falamos no masculino porque é de facto a população mais prevalecente - pode ser a pessoa que também brinca, que cuida, que leva à escola, que apoia nos trabalhos de casa, mas também é quem tem o comportamento abusivo. Isto para uma criança pequena pode ser difícil de distinguir, até que ponto aquilo não é uma expressão de carinho. Os abusadores usam muito o argumento de 'estou a fazer-te isto porque gosto muito de ti, porque és especial’ para aliciar a vítima e envolvê-la nesta complexa dinâmica do abuso. Frequentemente também recorrem a ameaças… Se a criança depende daquela pessoa, sabe que aquela pessoa é a fonte de rendimentos da família, é a pessoa com quem a mãe tem uma relação de apoio e afetiva, fica difícil revelar que também há um lado mau daquele indivíduo. Para uma criança, que não tem maturidade a nível emocional e cognitivo para poder fazer esta distinção, o processo é complexo.

Não se sabe com que idade se deve começar a falar destas questões e deve ser feito desde cedo porque quando acontece, sobretudo nos casos de abuso intrafamiliar, a criança nem tem noção de que está a ser vítima de abuso

A criança deve ser ensinada sobre o que é ou não adequado, mas pode ser complicado em idades muito precoces...

A capacidade de discriminar as situações torna-se muito difícil sobretudo em crianças mais pequenas, mas temos de fazer este treino, este processo de aprendizagem e de clarificação destas dimensões. Não se sabe com que idade se deve começar a falar destas questões da sexualidade mas deve ser feito desde cedo, porque quando acontece, sobretudo os casos de abuso intrafamiliar, a criança nem tem noção de que está a ser vítima de abuso, porque não tem outro padrão de comparação. Hoje em dia, ainda acontecem situações em que a criança só assimila e percebe que está a ser vítima de abuso e que aqueles comportamentos são desadequados quando se fala do sistema reprodutor, da reprodução humana, naquelas disciplinas de Ciências da Natureza, na escola, em contexto puramente académico.

E no caso de vítimas de grupos especialmente vulneráveis?

Aqui falamos de um grupo específico como crianças que têm deficiências ou défices cognitivos e dificilmente conseguem explicar aquilo que se passou. Muitas vezes os agressores escolhem este tipo de vítimas porque partem do pressuposto que não vão conseguir denunciar as situações. É preciso criar mecanismos de supervisão e de monitorização destas populações vulneráveis, como crianças que estão em contexto de instituição, acolhidas em casas específicas, que podem ser potenciais alvos para estes agressores.

De que forma deve ser feito o trabalho de 'proteção' dos pais ou cuidadores das potenciais vítimas?

É importante dar informação e ter conhecimento sobre a existência destas práticas, comunicar e dialogar com as crianças de uma forma aberta, conhecer as suas dinâmicas, os seus interesses, o seu dia a dia, perceber também quando há indicadores que possam não estar totalmente bem, os sinais, definir limites e regras nas relações com os outros, ensinar o nome correto das partes do corpo que, às vezes, é uma questão que pode dificultar a descrição dos acontecimentos.

No que diz respeito às redes sociais, existem de facto mecanismos de monitorização daquilo que são os comportamentos das crianças e dos jovens nestes ambientes, como bloquear o acesso a alguns sites, utilizar este tipo de mecanismos de controlo parental nestas ferramentas digitais que também estão disponíveis e que devem mesmo ser utilizadas.

A Internet é um ambiente utilizado pelos agressores para 'recrutar' as suas vítimas

Que sintomas/sinais podem eventualmente indicar que a criança ou jovem esteja a ser vítima de um crime desta natureza?

Há alguns sinais de alerta ao nível do comportamento e da expressão emocional que devem ser observados com atenção, como dificuldade em dormir, medos extremos, isolamento social, sendo que estes indicadores não são exclusivos deste tipo de situação e podem aparecer também noutro tipo de perturbações, daí que seja importante haver uma atenção especial quando há estas alterações. Imagine, uma criança que era muito ativa, muito extrovertida, feliz, sem problemas, que aprende e se relaciona bem e começa a isolar-se, começa a apresentar resistência para tomar banho, para fazer a higiene, a esconder o corpo… São sinais que devem deixar alerta. Assim como coisas mais psicossomáticas, como dores físicas, dores de cabeça ou dores de barriga.

Já nas crianças que são vítimas de abuso sexual online, muitas vezes os indicadores passam por parecer distantes, irritados, manter em segredo com quem falam ou interagem no telemóvel, referir-se a pessoas mais velhas que desconhecem e que lhes podem oferecer dinheiro ou presentes. É algo que acontece muito, as vítimas aparecerem com objetos ou terem formas não esclarecidas de recursos financeiros, aparecerem com dinheiro que não se sabe de onde vem. Esta é uma parte que as famílias tendem a descurar, porque consideram que, quando as crianças estão no ambiente doméstico, estão protegidas. De facto, estão fechadas no quarto, mas muitos pais não sabem com quem estão a interagir ou que tipo de redes frequentam.

Os abusadores tendem a movimentar-se por 'locais online' onde estão os menores mais vulneráveis?

Quando a intenção é aliciar crianças ou jovens para estas práticas, utilizam precisamente estes mecanismos, porque sabem que são os ambientes onde eles estão hoje em dia. Não é tanto no parque ou na rua a brincar, estão mais nas redes sociais e nos jogos online e entram por estas vias para criar ligação com potenciais vítimas, muitas vezes também omitindo ou ocultando a sua idade real, a sua localização geográfica… São os perigos associados à utilização das redes sociais e internet.

Falamos essencialmente de visados entre os 12 e os 16 anos. As redes sociais têm inúmeras potencialidades de informação, mas continuam a ser um ‘isco’…

A Internet é um contexto privilegiado e intencionalmente utilizado pelos agressores como um ambiente para 'recrutar' as suas vítimas. É um canal de comunicação útil para disseminar este tipo de informação para crianças e jovens, ou seja, uma forma de chegar a eles sobre o que é o abuso sexual, quais são os perigos destes ambientes, o que acontece nas redes sociais e os perigos associados... Este também é um ponto importante a destacar, até porque por vezes os pais têm algum desconhecimento, os miúdos conseguem mover-se nestes contextos de forma muito diferente e os pais não conseguem de facto perceber o que se passa e podem não ser suficientemente hábeis para identificar situações mais críticas.

Os sintomas e as queixas não aparecem imediatamente após o abuso, podem surgir alguns anos mais tardeO facto de ocultarem que podem estar a passar por uma situação deste género pode indicar que ainda há muito preconceito direcionado para as vítimas?

Sim, ainda há muito estigma associado a estas questões do abuso sexual e também há uma interpretação errada que tem a ver com a vivência pessoal e com a forma com que cada pessoa tem de lidar com experiências traumáticas. Infelizmente há muitas pessoas que optam por uma estratégia que é o não pensar sobre o que aconteceu, como se aquilo ficasse ali isolado, como se fosse uma espécie de sonho, como se não tivesse a certeza que aquilo aconteceu, que, como era miúdo, se calhar não foi bem assim… Na verdade é uma estratégia que a nossa mente tem de lidar com coisas que são traumáticas e isso pode ter efeitos a longo prazo, ou seja, aquela memória fica na mente e a memória negativa pode ser ativada em contextos que não têm relação direta. Por exemplo, a ver um filme ou num envolvimento mais íntimo com alguém… O que sabemos é que falar sobre estas experiências traumáticas e trabalhar isto num contexto terapêutico ajuda muito no processo de recuperação e de integração de uma experiência negativa na vida da pessoa.

Quais os impactos a curto e médio prazo na saúde física e mental da vítima?

Este tipo de ocorrências podem desencadear quadros de perturbação de stress pós-traumático e também estão associadas ao desenvolvimento de perturbações depressivas e de ansiedade, muitas vezes condicionam uma vivência da sexualidade plena, trazem impacto a uma vida sexual normativa ou regular. Além disso, os sintomas e as queixas não aparecem imediatamente após o abuso, podem surgir alguns anos mais tarde.

Um potencial agressor irá repetir estas práticas se não for devidamente apoiado a conter estes impulsos

No caso do agressor, também há potencialidades de poder ser 'tratado'?

Essa é outra componente que destacamos no documento que tem a ver com a perspetiva dos agressores, sobre a identificação de alguém que possa estar a ter comportamentos abusivos. O que posso fazer? Isto pode ser tratado? Posso pedir ajuda? Como é que eu paro de fazer isto? Fala-se muito do apoio e da necessidade de intervenção às vítimas e não tanto dos agressores. Um potencial agressor irá repetir estas práticas com outras vítimas se não for devidamente apoiado a eventualmente conter estes impulsos que levam a que tenha estes comportamentos.

Haver sanções - como uma pena de prisão por exemplo - quando há este tipo de criminalidade também pode funcionar como dissuasor à prática, porque um raciocínio que muitos agressores têm quando escolhem e selecionam intencionalmente vítimas é pensarem 'ninguém vai dar ouvidos à criança, até posso fazer isto mais vezes porque ninguém vai validar aquilo que ela diz'.

Além disso, há programas específicos para intervenção psicológica, programas de desenvolvimento de competências e de controlo dos impulsos, relação emocional, etc., por via do Ministério da Justiça, que são eficazes na redução destes comportamentos. Por isso, é importante que, havendo algum tipo de sinais, haja desde logo um apoio especializado, nomeadamente por um psicólogo.

Falar e debater sobre o tema pode permitir que este tipo de crimes possa ser evitado?

Sem dúvida, sim, falarmos sobre o assunto e discutirmos estas estratégias de prevenção. Aqui a situação ideal é que não acontecessem abusos e que as crianças estivessem protegidas, sabemos que é difícil, mas campanhas desta natureza, explicarmos às pessoas o que podemos fazer para prevenir é - e isto está comprovado pela própria investigação - um dos caminhos para reduzirmos o número de práticas deste tipo.

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