"Não há aposta dos governos na Saúde Pública. Só se lembram em crise"
O presidente da Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública (ANMSP), Gustavo Tato Borges, é o entrevistado desta segunda-feira do Vozes ao Minuto.
© Artur Machado / Global Imagens
País Saúde pública
A Saúde Pública é uma das áreas da medicina que ganhou mais destaque com o aparecimento da Covid-19, numa altura em que a existência de epidemias e crises sanitárias eram temas abordados quase exclusivamente nos livros de História.
Mas, além da Covid-19, esta é uma área que está mais mais presente e próxima - ou deveria estar - do que a maioria da população acha. O Notícias ao Minuto falou com o presidente da Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública (ANMSP), Gustavo Tato Borges, por forma a perceber a importância da Saúde Pública.
Gustavo Tato Borges sublinha que não tem havido uma aposta por partes dos governos nas últimas décadas, e que é essencial que a Saúde Pública tenha um lugar à mesa. Quanto à futura licenciatura na área, o responsável admite que poderá vir dar algum apoio, mas que há outras questões que são precisas colmatar.
A Saúde Pública preocupa-se com a comunidade como um todo e, portanto, com aqueles que são doentes, aqueles que são saudáveis e aqueles que estão em risco de vir a ser doentes
Que tipo de questões abrange a área da Saúde Pública?
É uma área muito extensa e que tem uma intervenção bastante alargada naquilo que é a saúde da população que segue. A Saúde Pública preocupa-se com a comunidade como um todo e, portanto, com aqueles que são doentes, aqueles que são saudáveis e aqueles que estão em risco de vir a ser doentes. E isso analisa uma data de coisas. Desde logo, faz a análise do estado de saúde da população - recolhendo dados de muitas entidades para perceber quais são as principais doenças que a nossa população tem e quais são os principais fatores de risco que a assolam -, quantos fumam, quantos são diabéticos, quantos são hipertensos, obesos. Mas, depois, também, de toda a realidade que circunda a população - desde logo, se há mais parques verdes ou menos parques verdes na sua realidade, se a habilitação literária das pessoas é maior ou menor, quais são os seus ganhos médios - para tirar uma fotografia muito grande, e depois sabermos quais são as principais necessidades em saúde da sua população - para fazer a seguir o plano local de saúde, sempre alinhado com o plano nacional e regional de saúde, no sentido de atuar sobre estas necessidades. Isso é o área do observatório e planeamento.
E de resto?
Depois tem aquela área que as pessoas mais conhecem, que é a área da vigilância epidemiológica, em que fazemos o estudo de algumas doenças infecciosas e de que maneira podemos conter o aparecimento de mais casos naquela população - seja identificando quem está em risco de desenvolver a doença e tratando ou isolando essas pessoas para minimizar que transmitam a outras, ou identificando uma fonte de infecção para tratá-la e aí deixamos de ter o risco na população.
Depois há a área da proteção da saúde, na qual basicamente, olhamos para o meio ambiente que rodeia - estamos a falar de tudo o que nos circunda, desde os rios, a água canalizada, saneamento básico, onde estão as indústrias, quais são os estabelecimentos comerciais que servem as pessoas e que podem ser um risco de saúde para as pessoas que lá vão - e tratamos de eliminar esse risco ou minimizá-lo na saúde da população. É uma área bastante abrangente que tem muita forma de intervenção. E ainda há a área da promoção da saúde, classicamente associada àquilo que é a educação para a saúde, maioritariamente nas escolas, mas podemos alargar a muitas outras faixas etárias - e não só.
Como assim?
Trabalhando com as câmaras municipais e com os agentes da comunidade podemos criar condições para que as pessoas possam pôr em prática aquilo que aprendem de educação para a saúde, contribuindo para a literacia em saúde. Literacia não é só ter conhecimentos - é aplicá-los de forma intencional para proteger a sua saúde. Uma pessoa que não fuma porque sabe que fumar lhe faz mal e, por isso mesmo, decide não fumar, é uma pessoa que tem literacia em saúde. Mas se aquela pessoa não fuma apenas porque não gosta do cheiro ou do sabor que o tabaco lhe dá, mas desconhece os fatores nocivos do tabaco, então ela tem hábitos de vida saudáveis. São coisas diferentes - e, portanto, nós trabalhamos com os nossos agentes da comunidade para promover a saúde, capacitando os utentes, mas dando-lhes oportunidades para depois poder aplicar esses conhecimentos na vida real.
Há também uma área grande, a da comunicação para a saúde, em que desenvolvemos informação de que as pessoas podem usufruir, desde logo através das redes sociais, alguns boletins que possam sair - e aqui a Direção-Geral da Saúde (DGS) tem um papel bastante importante, mas as unidades de Saúde Pública locais, que estão junto da comunidade, também têm um papel importante a desempenhar. É um trabalho mais próximo - conhece a realidade da população e a maneira como a população também reage a alguma informação. A DGS conhece a realidade nacional, mas, no local, às vezes conhecemos algum pormenor que é importante.
E, por fim, também não podia deixar de falar da área da autoridade de saúde, que é um poder atribuído aos médicos de Saúde Pública que permite intervir em nome do Governo na defesa da saúde da população, como também atuar de acordo com a Lei da Saúde Mental.
De que ações fala?
A autoridade de saúde tem uma abrangência muito grande. Se eu tiver uma queixa de que um restaurante está a produzir comida em condições de insalubridade - que haja um risco de que infecções que possam depois passar para a população -, este poder permite-me chegar àquele estabelecimento, determinar as medidas que ele precisa fazer para conter aquele risco e se ele não estiver a colaborar ou se o risco for mesmo muito, poder encerrar este estabelecimento. Esta é a principal função da autoridade de saúde - conter um risco na população com o poder do Estado por trás.
Já a questão da Lei da Saúde Mental é transversal em todo o país, ou seja, em todos os agrupamentos de centros de saúdes onde há um delegado de saúde - que existem em todo o lado. É possível um utente dirigir-se à unidade, falar com o delegado de saúde e pedir para que o seu familiar - normalmente são familiares diretos que vêm a solicitar este tipo de apoio - e o seu familiar que é um doente psiquiátrico e que está descompensado e não quer tratar-se, possa ser obrigado a dirigir-se ao serviço de urgência de psiquiatria mais próximo para ser avaliado. Depois, os colegas da psiquiatria é que consideram se é necessário internar ou não. Mas este trabalho de parceria entre a autoridade de saúde e a psiquiatria permite que, muitas vezes, doentes psiquiátricos que depois se tornariam um risco na sua comunidade mais local possam ser tratados e regressar num estado de maior equilíbrio e retomar a sua vida o mais normal possível.
Disse-me que normalmente eram familiares que faziam estes pedidos. E as pessoas que estão mais 'abandonadas'?
Em termos teóricos, diria que qualquer pessoa pode pedir à autoridade de saúde que investigue numa situação desse género. Normalmente, o que acontece é que esse género de pessoas que estão mais isoladas, sejam pessoas em situação de sem-abrigo, idosos que estão sozinhos ou utentes psiquiátricos que moram numa habitação sem relação familiar próxima, normalmente a Ação Social acaba por encontrá-los e são eles que nos apresentam esses utentes. E essa realidade acontece também com alguma frequência. Algumas vezes não é possível ajudar porque não é bem uma questão psiquiátrica, é mais uma questão social - o apoio tem de ser outro e o utente tem de autorizar, mas quando acontece de facto uma realidade que é psiquiátrica e que nós conseguimos confirmar, então acionamos os mecanismos para encaminhar essa pessoa para a ajuda clínica de que necessita.
Ainda hoje continua a haver uma tentativa de espartilhar a atuação da Saúde Pública em diferentes áreas
Devido a estas questões tão locais, tão próximas, gostava de falar sobre a licenciatura que vai existir em Saúde Pública, e se estreia para o próximo ano. Qual é a necessidade desta licenciatura em Portugal?
A primeira vez que ouvimos falar desta necessidade, pelo menos, publicamente, foi através do Relatório de Primavera de 2022 do Observatório Português do Sistema de Saúde [pág. 12], numa das áreas escritas pelo professor Henrique Barros, onde ele dizia que é necessária esta licenciatura para criar "um exército" essencial na resposta às tarefas da rotina ou até mesmo em relação às crises sanitárias porque tem havido uma planificação insuficiente da força de trabalho desta área. Aqui tem vários fatores de risco. Quando falamos das crises sanitárias falamos da preparação e resposta, controlo e prevenção, ou seja, do estudo das situações para que possamos ter um plano de contingência e para que todos sejam preparados para os níveis de resposta - e depois, efetivamente, trabalhar.
Concordando eu com o professor Henrique Barros, tem sido muito difícil criar condições para que a Saúde Pública se torne atrativa para os seus profissionais - e os seus profissionais clássicos são médicos de Saúde Pública, enfermeiros de Saúde Pública ou Saúde Comunitária e técnicos de saúde ambiental. Não tem havido, e infelizmente, continua sem existir, uma aposta dos sucessivos governos nesta área. E só se lembram da Saúde Pública quando há uma crise. Isto tem sido cíclico ao longo do tempo e é preciso mudar de maneira a que haja uma capacidade de atratividade por parte da Saúde Pública para que os jovens talentos queiram ficar não só nesta área, mas também no Serviço Nacional de Saúde (SNS).
De que tipo de falta de condições fala?
Um dos exemplos clássicos tem a ver com a reforma da Saúde Pública, em que já estamos em sucessivas renovações de comissões, que já produziram documentos com uma proposta de organização para esta área e nenhum governo quis implementá-lo - sendo que a atual está completamente manietada porque todos os médicos de Saúde Pública se demitiram num claro sinal de revolta ou de insatisfação com o facto de não existir uma vontade política para seguir as indicações destas comissões para fortalecer a Saúde Pública em Portugal.
Ainda hoje continua a haver uma tentativa de espartilhar a atuação da Saúde Pública em diferentes áreas, por diferentes atores, sem existir uma coordenação única e integrada e isso dificulta o nosso trabalho. É um futuro que nós não queremos que exista.
O Governo está a copiar um pouco o que está a acontecer com o Reino Unido, onde a Saúde Pública já foi dividida em três instituições diferentes - e tem sido difícil para os profissionais de Saúde Pública no terreno operarem de uma forma coerente, integrada, porque cada uma puxa para os seus interesses e é difícil a nível de recursos [já que] são escassos.
Mas no Reino Unido existe especialização?
Há especialistas em Saúde Pública - médicos e não médicos - que no Reino Unido trabalham de uma forma muito semelhante e que estão colocados junto das câmaras municipais, onde têm uma capacidade de intervenção junto destas câmaras para resolver questões que a câmara pode resolver - e, normalmente, a câmara tem a faca e o queijo na mão para muitas coisas -, mas, por outro lado, ficaram muito desligados daquilo que é a área da saúde e os dados da saúde e têm dificuldade em entrar em contato com hospitais e com os centros de saúde. Ganharam de um lado, mas perderam do outro. E isto é muito complicado de gerir.
O Canadá, por exemplo, fez já o caminho de saída da saúde para as câmaras e, voltou para a saúde percebendo que nas câmaras perdia uma capacidade de intervenção - e, acima de tudo, perdia dados que eram extremamente importantes para perceber o que a população necessitava. Nós queremos ficar na área da saúde, mas ter uma colaboração muito forte com as câmaras municipais e outras áreas.
Mas esta área, a nível internacional, tem muitas formas de organização. A Saúde Pública como está em Portugal não acontece com muita semelhança noutros países. O Canadá será um país muito próximo - apesar de terem níveis regionais mais robustos porque são regiões independentes. Em Itália, a Saúde Pública está nas universidades. Depende muito da organização individual de cada país. Há muita forma de organizar a Saúde Pública. Há vantagens e desvantagens entre as diferentes formas de organização.
Em Portugal, consideramos que tendo o Serviço Nacional de Saúde tão rendilhado como é o nosso, espalhado por todo o terreno, faz sentido que a Saúde Pública esteja perto da comunidade. Há pequenas variações que podemos fazer - se estamos efetivamente dentro do centro de saúde ou numa estrutura de saúde pública, há vantagens e desvantagens. São tudo questões que podem ser organizadas e em que a Comissão para a Reforma da Saúde Pública tem vindo a debruçar-se, sendo que já apontou um caminho para uma resolução deste enquadramento dos serviços de saúde pública e de que forma podem servir cada vez melhor a população - caminho este que, infelizmente, não é público.
Esse caminho estará em vias de ser público?
Não é mesmo público. Que eu tenha conhecimento, há dois ou três relatórios já elaborados que estão na gaveta do Ministério da Saúde. Esta nova comissão não conseguiu ainda produzir nenhum trabalho devido à admissão do seu coordenador, o Dr. Mário Jorge Neves, e depois à saída de todos os médicos em protesto com a maneira como estavam a ser pedidos os trabalhos e a falta de vontade, de facto, de assumir estes compromissos que a comissão e estes aconselhamentos da comissão iam desenvolvendo.
Portanto, não temos um relatório público. Não é conhecido e não vai ser divulgado - se quisessem divulgar, o Governo já o teria feito. E é uma pena porque nós precisamos de discutir de uma forma técnica, científica a maneira como a Saúde Pública se vai organizar para estar preparada para 2030 enfrentar aquilo que for necessário. Sem estes relatórios, abertura e transparência para poder ser discutida, vamos acabar por estar um bocado mais manietados, infelizmente, aguardar por uma reforma da Saúde Pública que vai tardar a chegar.
Parece haver aqui um problema de comunicação?
A interação entre os diferentes atores da sociedade - seja da saúde, seja da sociedade civil, seja de que área forem - é extremamente importante. Nós trabalhamos em colaboração para crescermos em conjunto e a nossa população ser melhor servida.
Infelizmente, a interpretação de que "eu sei mais ou eu posso mais ou eu tenho esta obrigação e tu não tens" acabou por minar muitas vezes esta comunicação e nós precisamos de trabalhá-la cada vez melhor. Com o Governo, há uma comunicação, uma linha de contacto, mas o que se denota, ao longo dos sucessivos governos - não é um problema deste Executivo - é que eles têm uma visão para a saúde que não contempla a Saúde Pública porque desconhecem aquilo que a Saúde Pública faz.
E quando temos lá profissionais da Saúde Pública e posso recordar, por exemplo, o ministro professor Adalberto Campos Fernandes - que é um médico especialista em Saúde Pública e doutorado em Sistemas de Saúde -, a verdade é que quando ele queria fazer também alguma coisa o Governo não estava a perceber qual era a vantagem. Acabou por também ser um bocado manietado, por não conseguir intervir da forma como ele se calhar tinha idealizado e acabou por sair do Governo de uma forma rápida e inglória.
Este espartilhamento em Portugal de que falou é assim sinónimo de uma desvalorização da área por parte do Governo?
A desvalorização não só tem a ver com esta falta de investimento para atrair os profissionais que vêm - falo não só da reforma, mas também das condições de trabalho e do salário -, mas também o facto de as unidades de Saúde Pública não terem um financiamento próprio. Quando precisamos de desenvolver alguma atividade que tenha um custo associado, temos de obter várias autorizações a diferentes níveis - local, regional e nacional. Para que do bolo da Saúde Pública que a própria DGS vai tendo, nós no nível local possamos fazer alguma coisa. Isto também não permite ter uma intervenção adequada. Precisávamos de ter uma verba atribuída às unidades de saúde pública e que estas se fossem gerindo de acordo com as necessidades, nomeadamente, em termos de análises ou contratações, por exemplo, para podermos trabalhar de uma forma mais eficaz.
Ou seja, até chegar uma 'luz verde' para um problema que as unidades possam ter, este alastra-se e depois há uma corrida atrás do prejuízo?
Quando o problema é sério, e aí estamos a falar do problema nacional, é mais fácil obter autorizações porque está tudo já mais agilizado. Mas vamos imaginar que há casos de Legionalla numa determinada localidade e que se consegue perceber que há um possível foco infeccioso - precisamos de confirmar que aquela origem está infetada com a bactéria que os utentes têm. Precisamos de fazer uma análise laboratorial à água. Se não tenho uma verba adequada para mim, tenho de recolher aquela amostra, guardá-la, pedir autorização e ficar à espera que venha essa autorização para fazer essa análise. E isto é tempo perdido. Não só é tempo perdido para identificarmos uma causa, como é tempo perdido, muitas vezes, para fazer uma intervenção mais eficaz. E por isso nós precisávamos deste financiamento. E quem fala desta área da intervenção de vigilância epidemiológica, poderíamos falar em programas de promoção da saúde.
Em que medida?
Poderiam desenvolver-se programas e projetos muito interessantes com a comunidade, mas que é preciso financiamento - que nós não temos. E para não falar também dos recursos tecnológicos, já que por vezes precisamos de sair para ir ao exterior fazer alguma atividade, e se não tivermos um tablet ou um telemóvel capaz de ligação à internet, muitos dos meus colegas usam o seu próprio telefone - que já compram de maneira a poder incorporar o telefone no cartão de serviço.
Para não falar também da possibilidade de poder fazer investigação em Saúde Pública fora das nossas unidades. O nosso tempo é muito dirigido para o trabalho de serviço e não nos permitem guardar um período do nosso horário para trabalhar áreas conexas. Tudo isto acaba por tornar esta área pouco atrativa para médicos, enfermeiros e técnicos de saúde ambiental, que muitas vezes procuram outros desafios quando têm reconhecimento em áreas diferentes.
A licenciatura pode dar apoio, mas há outras profissões que precisávamos de ter a trabalhar connosco debaixo deste chapéuÉ por tudo isto que uma licenciatura na área se torna importante?
A licenciatura vem colmatar uma resposta, mas há muitas outras que é preciso ter.
Como por exemplo?
Não existe nesta área, especialmente a nível regional ou local, profissionais dedicados ao marketing ou à comunicação. Nós não temos juristas que nos ajudem - juristas especializados na área de intervenção da Saúde Pública, que nos permitam fazer uma intervenção baseada na lei. Quando muitas vezes questionamos outros juristas, não sabem muito bem como integrar as nossas atividades naquilo que é a lei ou aquilo que o Direito possa defender.
Precisávamos de epidemiologistas que estivessem connosco para permitir fazer uma análise melhor. Psicólogos, por exemplo.
Precisávamos não só técnicos licenciados em Saúde Pública, mas [profissionais de] muitas outras áreas que são conexas à Saúde Pública, que deveriam estar incorporados na nossa atividade. Neste momento, o que sabemos desta licenciatura é que, de acordo com o responsável, está dirigida para criar profissionais peritos ou, pelo menos, conhecedores da área da Saúde Pública para irem trabalhar ao nível das câmaras municipais, de juntas de freguesia e de outras entidades que acompanhem a comunidade.
Será importante?
Faz sentido porque quando nós precisamos de chegar à beira de uma câmara municipal ou a uma junta de freguesia e explicar porque é que aquela praia vai ser interdita ou porque é tão importante mudar o planeamento urbanístico daquela área para permitir ter ali um parque verde ou arborizar as vias - ou porque é que numa epidemia é importante encerrar determinado local ou fazer alguma cerca, estes técnicos podem abrir essas portas dentro da câmara municipal porque falarão a mesma linguagem que nós. E isso é uma mais-valia. Mas esta intervenção e esta integração de conhecimentos e destes profissionais noutras entidades deverá sempre estar coordenada com aquilo que é a evidência que a unidade em causa transmite, de maneira a que possamos estar todos alinhados. Tem de haver uma unidade, senão vamos estar a perder oportunidades de intervenção e estar desalinhados.
Mas de que forma estes profissionais vão ser integrados? Vamos estar a duplicar saberes e vamos estar com profissionais que fazem coisas parecidas? Nós queremos diferenciar as nossas habilidades e, portanto, há muitas dúvidas sobre a maneira como uma licenciatura vai ser introduzida no mercado de trabalho e precisamos de perceber como é que eles vão ser integrados, salientando-se sempre que uma força de Saúde Pública robusta é óptima - e que a licenciatura pode dar o apoio -, mas há muitas outras profissões que precisávamos de ter a trabalhar connosco de uma forma integrada debaixo deste chapéu e desta visão que a medicina de Saúde Pública pode fazer e que pode orientar um trabalho bastante diferenciado e eficaz.
Esta licenciatura pode então ser uma ponte, mas não uma 'construção' em ambas as margens?
[Estes profissionais] podem ser uma porta de entrada para conseguirmos que os agentes da comunidade, onde quer que eles estejam a trabalhar, possam estar sensíveis e capazes muitas vezes de entender o que a Saúde Pública acaba por transmitir - porque nós também temos o nosso défice de linguagem e, muitas vezes, comunicamos de uma forma que não é tão eficaz.
A ANMSP considera que para nós podermos saber qual o melhor caminho para evitar que em futuras pandemias que vão existir se repitam os mesmos erros, problemas e dificuldades há necessidade de fazer uma investigação independente ao trabalho feito na pandemia. E isso não pode ficar parado. Para podermos complementar com dados mais concretos a visão que o professor Henrique Barros também partilha [no relatório acima referido], mas, acima de tudo, uma avaliação global de quais os recursos que fazem falta.
E esse estudo deveria focar-se só em termos de Saúde Pública ou também em termos da atuação do Governo?
Diria uma investigação alargada, que veja não só a forma como o Governo respondeu [à pandemia de Covid-19] -se respondeu atempadamente, se as medidas foram as mais corretas, se houve algumas que precisávamos de fazer e não fizemos e outras que fizemos e já não era necessário, se a capacidade de intervenção na população e de colocar em isolamento as pessoas que era necessário foi eficaz ou não, se o uso de máscara devia ter sido mais cedo ou mais tarde, se teve um papel ou não teve, se câmaras, escolas, ação social, associações utentes, comércio, economia - responderam de uma forma adequada ou não. E onde é que estão as oportunidades para melhorar.
A Saúde Pública é a área do não-evento. Somos os médicos do não-evento
Foi a pandemia que colocou a área da Saúde Pública em cima da mesa?
A Covid-19 trouxe a Saúde Pública para a frente - isto só acontece quando há de facto epidemias. Aconteceu a mesma coisa quando veio a Gripe A ou o SARS original. A Saúde Pública tem estado na baila apenas quando há crises. Tem sido olhada apenas quando há um problema efetivo de Saúde Pública alargado e não como uma área de intervenção coletiva, constante e preventiva.
A área da Saúde Pública tem três objetivos: evitar a doença, prolongar a vida e promover a eficiência física e mental, ou seja, não ficarmos doentes, sermos cada vez mais saudáveis para vivemos mais anos, mas mais anos com qualidade.
Aliás, a Saúde Pública é a área do não-evento. Somos os médicos do não-evento. O que é muito complicado, porque depois dizem: "Gastaram-se milhões de euros na Saúde Pública para isto e depois não aconteceu nada". Mas é exatamente para isso que nós trabalhámos. Era para que não acontecesse nada, e isso é o mais importante. Muitas vezes sofremos com o nosso próprio sucesso: gastaram-se milhões, não houve problema de saúde então não era necessário gastar. Não. Era necessário gastar porque exatamente com a nossa intervenção evitámos aquelas casos de doença.
E outros projetos?
Relativamente a este conhecimento da força de trabalho que é necessária existir na Saúde Pública, a Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública está a trabalhar com a Organização Mundial da Saúde no âmbito do mapeamento da força de trabalho de Saúde Pública para tentarmos clarificar quais são as competências, as funções o que é que falta para este investimento e, naturalmente, também que tipo de profissionais são a mais-valia para ter nos serviços que possamos operacionalizar cada vez melhor e cada vez de forma mais eficaz as competências essenciais que os médicos, os enfermeiros e os técnicos fazem nesta área da saúde.
Não há sensibilização para que no SNS tenha um olhar atento à Mutilação Genital Feminina
A questão da invisibilidade faz com que não haja muita investigação?
Temos dois grandes centros de investigação em Saúde Pública em Portugal, que é o Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto e a Escola Nacional de Saúde da Universidade de Nova Lisboa, mas são dois centros académicos. E seria extremamente importante que os serviços de Saúde Pública locais, regionais e nacionais tivessem capacidade de fazer mais investigação em Saúde Pública.
Com o aparecimento do surto de Mpox, o grupo que vigia esta doença e estes acontecimentos, acabou por fazer um artigo científico em que demonstra a maneira como foi evoluindo e o que é que foi feito e identificado. Também o Instituto Nacional de Saúde Ricardo Jorge ao fazer a investigação, que também é outro grande centro - mas mais laboratorial - fez um artigo científico onde explicou que tinha conseguido decifrar o genoma completo deste agente microbiológico.
O surto de Mpox é mais um exemplo de como a Saúde Pública só vem para a ribalta quando, efetivamente, existe risco infeccioso grande na comunidade.
Além da Mpox, também a Mutilação Genital Feminina (MGF) é um problema de Saúde Pública. Existe um sistema onde os médicos podem notificar os casos.
Sim, a Saúde Pública tem uma capacidade de intervir em muitos assuntos que muitas vezes não têm a ver com doenças em específico, mas com práticas que a comunidade vive e exercita. E a prática da Mutilação Genital Feminina é extremamente importante porque não há de todo uma sensibilização para que no SNS se tenha um olhar muito atento para esta realidade. E só mesmo profissionais que estão sensibilizados para a temática é que se desenvolvem neste campo, de maneira a poderem intervir de uma forma mais holística. E na área da Saúde Pública poucos são aqueles que se interessam por esta área.
Mas quem fala da MGF, fala do assédio sexual, de áreas mais globais como alimentação saudável, de atividade física. São tudo aspetos da nossa vida - uns mais graves e mais específicos e outros mais genéricos - que mudam a nossa saúde e que a Saúde Pública tem capacidade de intervir. Não só dando conhecimentos para que as pessoas saibam o que é que está mais certo e o que está mais errado - para que possam tomar as suas decisões e capacitarem-se de dizer eu "eu quero isto ou não quero aquilo" e depois, a seguir, mudar a sociedade.
E com isto nós estamos a falar desde dar conhecimentos, alertar a população para não permitir estas circunstâncias, mas também a trabalhar com a comunidade - e aqui estamos a falar das escolas, ação social, o cidadão em comum - para que possa denunciar rapidamente uma coisa deste género. Há ali uma família que pratica este género de atividade e, portanto, é preciso intervir e aí acionam-se os alarmes e vamos lá tentar resolver a situação - como estamos a falar especificamente aqui da MGF ou de casos de assédio e violação. O sistema tem a capacidade de intervir. Não há muitas armas, mas, se nós somos capazes de identificar situações de risco e evitar que elas aconteçam de uma forma concreta, conseguir minimizar estes problemas - e estes são muitos e muito alargados.
E também podemos falar das pessoas transgénero e da comunidade LGBTQIA+. O sistema não está preparado para lidar com estas realidades cada vez mais significativas, para podermos acudir quando há necessidade de um problema ser resolvido. Ou até mesmo de sabermos receber estas pessoas e colaborar com elas de acordo com aquilo que elas expressam que é a sua realidade muito concreta. Portanto, a Saúde Pública tem esta possibilidade de intervir nestas áreas todas, mas precisamos de mais capacidade de intervenção, diagnóstico, pessoas sensibilizadas para estes temas e isso também vem da falta de profissionais. Se tivéssemos mais profissionais podíamos dedicar-nos a mais áreas. A Saúde Pública deve intervir de uma forma bastante organizada, deve existir um plano nacional, por exemplo, para a MGF, que permitisse saber de que forma vamos intervir antes - sem qualquer situação de risco conhecida -, como vamos intervir quando há uma situação de risco, quando já ocorreu alguma coisa ou quando sabemos que há uma prática reiterada.
Também as questões ambientais são uma preocupação?
Já estamos numa fase do mundo em que as alterações climáticas já produzem efeitos significativos na vida das pessoas - e na mortalidade das pessoas. E, portanto, nós precisamos de ter aqui uma intervenção bastante consistente. Aqui nós preocupamo-nos desde a poluição dos rios, aos parques verdes que existem, à poluição ambiental que vai ocorrendo e, obviamente, às alterações climáticas. Aqui a Saúde Pública precisava de ter uma voz um bocadinho mais forte nesta área para poder dar evidência dos riscos que vamos tendo. Temos muitas investigações, muitos cientistas ambientais que vão trabalhando, mas na Saúde Pública vamos ficando por um plano de resposta à saúde sazonal - em que no inverno alertamos quando há ondas de frio e no verão alertamos quando há ondas de calor. Mas é uma coisa reativa.
Precisamos de cada vez mais olhar para as alterações climáticas como uma realidade que nós podemos mudar a médio e longo prazo - e que precisamos de começar a agir agora. É extremamente importante alertar as pessoas sobre os riscos, mas o que também podemos fazer é identificar as zonas onde o risco é maior - identificando locais onde é mais importante intervir - quais são as intervenções mais efetivas para poder resolver determinados riscos e poder trabalhar esta área de uma forma mais concreta e mais sistematizada.
Muitas vezes, o que acontece é que há pessoas interessadas nestas áreas e que desenvolvem um trabalho, mas acabam a fazer um trabalho desgarrado do resto porque não há um foco nacional, não há uma organização concreta em que todos podemos trabalhar à volta do mesmo problema. Precisávamos de ter uma estratégia de prevenção das alterações climáticas que passem pela saúde, pelo Ministério do Ambiente, pelo Ministério da Educação, pela Administração Interna para que todos respondam. Passa pela Habitação também.
Em que medida?
Uma das questões que condiciona muito a saúde das pessoas - nomeadamente nas ondas de calor e de frio - é ter uma habitação que é energeticamente insuficiente. E, portanto, precisamos de melhorar as nossas casas. E nisto, tenho de dizer, os últimos governos, nomeadamente do Partido Socialista, que tem estado agora nos últimos anos no Governo, têm lançado projetos para que as pessoas possam ter financiamento para aperfeiçoarem as suas casas nesta área. E isto é um caminho extremamente importante. Mas também sabemos que há muitas pessoas que vivem isoladas ou em situações habitacionais degradadíssimas e que estes programas não chegam a elas. Temos de olhar de uma forma mais global e crescer nesta área.
Portugal tem de ter um plano, tem de fazer a sua parte, mas precisamos que o mundo se una de uma vez por todas, para minimizar a realidade que cada vez mais é premente de que isto vai ser irreversível - e que, possivelmente, um dia vamos ter uma ameaça à nossa sobrevivência bastante significativa, se não mesmo uma ameaça [que conduza] à nossa extinção enquanto população que habita neste planeta.
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* Estudo da e Netsonda, nov. e dez. 2023 produtodoano- pt.com