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"Há pessoas sem formação a pôr outras em risco. Vendem soluções mágicas"

Francisco Miranda Rodrigues, bastonário da Ordem dos Psicólogos Portugueses, é um dos convidados desta sexta-feira do Vozes ao Minuto.

"Há pessoas sem formação a pôr outras em risco. Vendem soluções mágicas"

Numa altura em que aguarda reunião com o Ministério da Saúde, a Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP) lembra que importante é que alterações em curso e implementadas pelo anterior Governo possam sair do papel, pedindo mais celeridade ao Executivo de Luís Montenegro. 

"Estas alterações permitiriam reforçar, ainda este ano, em mais de uma centena, os psicólogos no SNS. Isso a acontecer era um número histórico nos últimos 25 anos. Espero que este Governo possa ser mais rápido na tomada de decisão", afirma Francisco Miranda Rodrigues, bastonário da Ordem dos Psicólogos Portugueses.

Em entrevista ao Notícias ao Minuto, Miranda Rodrigues fala ainda sobre o crescimento do coaching em Portugal, alertando para os perigos a que a população pode estar exposta.

"Quando as pessoas estão em sofrimento ou em situações socioeconómicas mais difíceis, a capacidade para tomar decisões mais analíticas está reduzida", frisa, rejeitando, porém, críticas que apontam que a OPP não tem feito tudo o que poderia sobre a matéria.

Como definiria o estado atual da saúde mental dos portugueses?

Os dados que nós temos dizem que há uma consciência cada vez maior dos portugueses daquilo que é saúde mental e da importância de a cuidarem. De forma geral, e em particular em algumas populações - nomeadamente crianças e jovens, e mais idosos -, têm aumentado os problemas. Isso é uma coisa que agora podemos dizer que é transversal aos dados dos últimos anos e que se mantém. Com o aumento da consciência é provável haver um aumento do reconhecimento, levando a uma procura de apoio mais rápida e em maior quantidade.

O SNS não acompanhou [procura] em termos de respostas no terreno, de recursos

Pode dizer-se que houve uma tomada de consciência da população portuguesa e que o SNS não a acompanhou?

Sim. De facto o SNS não acompanhou em termos de respostas no terreno, de recursos. É um facto comprovado com o aumento generalizado dos tempos de espera. Os recursos são muito insuficientes, já o eram antes deste aumento de procura e agora mais ainda. E assim tem sido nas últimas décadas - nos últimos 25 anos praticamente não houve alterações nessa matéria, na resposta de proximidade. E sabemos que há uma percentagem muito elevada de portugueses que procuram os centros de saúde por causas com dimensão psicológica muito grande. E estas pessoas, também sabemos, não têm resposta em tempo útil. Nestas situações, é o mesmo do que não ter resposta. 

Se a pessoa não tiver recursos financeiros, um seguro de saúde, ADSE… bom, fica quase impossível conseguir recorrer a ajuda

Quem hoje em dia se dirige a um centro de saúde e pede uma consulta urgente e espera meses por ela, com que mais pode contar? Qual é a solução para quem deu o primeiro passo de assumir que precisa de ajuda, mas não a tem?

Se nós não estivermos a falar de intervenções em crise, situações agudas, nomeadamente ansiedade, que poderiam ter uma resposta do serviço de aconselhamento psicológico na Saúde 24, restam muitas vezes alguns serviços disponibilizados em alguns municípios, instituições de caráter mais social… Mas, do ponto de vista sistémico, se a pessoa não tiver recursos financeiros, um seguro de saúde, ADSE… bom, fica quase impossível conseguir recorrer a ajuda nesta área. Quando 50% dos portugueses estão na situação socioeconómica que é conhecida, se não houver uma resposta acessível e gratuita, dada direta ou indiretamente através do SNS, não têm resposta. Lamentavelmente. 

A linha de aconselhamento psicológico do Serviço Nacional de Saúde atendeu mais de 280 mil chamadas desde 2020 e desde o mês de janeiro deste ano já recebeu mais de 15 mil. Este aumento explica-se pela inexistência de vagas para consulta?

Sim. A linha foi desenhada para intervenções breves e para determinado perfil de necessidade e não para responder à panóplia de situações a que responde agora. E há pessoas que recorrem de forma repetitiva porque é a única resposta que conseguem ter. E é uma situação dramática que continua a não ter resposta. 

Mas durante o último ano temos acompanhado um resolver e eliminar de barreiras invisíveis ao olho comum dos cidadãos, para que seja possível o SNS contratar de forma célere psicólogos para os centros de saúde. Isso, de facto, aconteceu como nunca. Vimos a queda de várias das barreiras que tínhamos identificado num trabalho de estreita colaboração com a Direção Executiva do SNS. E por isso também temos alertado que é inadmissível que não se conclua o trabalho, por exemplo, não tendo ainda sido dado orçamento para que a Direção Executiva e as ULS’s [Unidades Locais de Saúde] possam contratar os recursos já planeados. Agora todo o tempo está a contar em paralisação, porque o esforço não chegou a efetivar. E essa é neste momento a nossa maior preocupação: que se possa melhorar, mas que se conclua sem colocar em causa os processos que tanto demoraram a construir. 

Como é que a entrega do orçamento, que vem no Orçamento de Estado e precisava apenas de uma negociação com a Direção Executiva para afinar os detalhes, não aconteceu?

Disse já que há um enorme perigo em fazer transformações complexas sobre temas que estão em curso tendo em conta que colocam em causa trabalho já feito. Na sua perspetiva, o que deve ser mantido e alterado pela Direção Executiva do SNS?

É necessário manter aquilo que foi uma tentativa de iniciar a simplificação do tema, e que em certa medida foi feita nas ARS’s [Administrações Regionais de Saúde], criando um sistema que permite uma verticalização e linha mais direta entre coordenação e estratégia nacional com orientações e recomendações nacionais. Depois, um processo de autonomia crescente para as próprias unidades locais de saúde. Portanto, este desenho de modelo parece-me estar no bom caminho. Cada vez mais autonomizar o SNS de uma gestão que confundia a dimensão política com as dimensões operacionais. E temos visto essa simplificação, mesmo com a falta de meios dados à Direção Executiva que neste momento nem estrutura de recursos humanos tem. 

Portanto, uma das coisas que é preciso melhorar claramente é como é que o desenho do modelo permitiu, apesar de tudo, que as decisões necessárias a que a operacionalização pudesse acontecer autonomamente a partir de certa altura nunca tenham acontecido. Como é que a entrega do orçamento, que vem no Orçamento do Estado e precisava apenas de uma negociação com a Direção Executiva para afinar os detalhes, não aconteceu? E isso é absolutamente inadmissível e uma falta de respeito pelos profissionais que têm tentado levar este processo adiante. É necessário que o novo Executivo resolva, antes de mais, estas situações e que crie formas de evitar que isto aconteça outra vez. 

Outro processo que se iniciou, que julgo não estar concluído e que tem de ser melhorado - que são as nomeações serem feiras para as várias unidades de saúde a partir da designação da Direção Executiva, iniciando um processo de despartidarização de nomeações. Foi o início e julgo que temos de fazer mais nessa matéria, não só no SNS, mas na Administração Pública. Estes cargos devem ser entregues por avaliação das competências de cada pessoa, e aí ainda está muito por fazer. Outra coisa positiva é o que no desenho da Direção Executiva está uma preocupação, até do ponto de vista estrutural, com uma área específica para ter medidas de orientação e estratégias na área do bem-estar das pessoas que trabalham no SNS. Claramente uma mudança de paradigma, para termos organizações mais sustentáveis. Mais ainda, houve muita desburocratização, que vai permitir, em tempo útil, aos centros de saúde, contratar e reduzir disparidades inadmissíveis. 

Por fim, é importante que isto saia do papel e possa ser implementado. Estas alterações permitiriam reforçar, ainda este ano, em mais de uma centena, os psicólogos no SNS. Isso a acontecer era um número histórico nos últimos 25 anos. Espero que este Governo possa ser mais rápido na tomada de decisão. 

As ordens profissionais da Saúde enviaram já ao primeiro-ministro um conjunto de propostas para melhorar o contexto atual da Saúde Humana, Animal e Ambiental. Houve já alguma resposta?

Ainda não temos resposta do Governo. Só tive oportunidade de falar com a senhora ministra ao telefone, logo após ter tomado posse, e aguardamos reunião. Com apreensão mas também serenidade dado o curto espaço de tempo desde a tomada de posse. Mas o compromisso de reforçar o número de psicólogos no SNS foi assumido pela coligação que agora governa o país. Assim, espero que seja cumprido. 

Quando as pessoas estão em sofrimento ou em situações socioeconómicas mais difíceis, a capacidade para tomar decisões mais analíticas está reduzida

A Ordem dos Psicólogos Portugueses recebeu 207 denúncias de usurpação de título desde 2021 e, só durante os primeiros três meses deste ano, deram entrada 25 queixas. Como se explica e combate este fenómeno do coaching?

A explicação tem certamente vários fatores. Antes de mais, porque esta é uma área que tem tido um crescimento de procura. As pessoas procuram cada vez mais respostas e tentam encontrá-las junto da psicologia, mas infelizmente nem sempre dos psicólogos ou profissionais de saúde qualificados. Mas a procura tem crescido porque, como falámos, as pessoas estão mais conscientes dessa necessidade. Mas isso não quer dizer que tenham atingido um patamar de literacia em saúde, podendo não conseguir distinguir um profissional regulado de alguém que não o é. Muitas destas soluções aparentemente são fáceis, estão acessíveis, têm marketing muito agressivo, uma comunicação fortíssima sem grandes preocupações com rigor e que chegam a muita gente - e muita gente que por vezes está mais vulnerável. E assim se tomam decisões pouco informadas. Quando as pessoas estão em sofrimento ou em situações socioeconómicas mais difíceis, a capacidade para tomar decisões mais analíticas está reduzida.

Estas pessoas apresentam-se no mercado como se fossem uma espécie de vendedores de soluções mágicas, e que basta querer muito, e outras frases feitas, como se isso fosse suficiente. Depois há outras dimensões mais complicadas. Pessoas que se afirmam pelo nome de técnicas, ou coisas que começaram por técnicas, como o caso da psicoterapia. Hoje em dia há infelizmente pessoas que tentam apropriar-se dela como profissão, tratando-se, na realidade, de um método que deve ser praticado apenas por profissionais. Há ainda pessoas sem formação de base na área da saúde, sem os conhecimentos mínimos, a pôr em risco outras pessoas. 

Nota-se muito, também, pessoas que descobrem, já em determinada fase da vida, que o que gostavam mesmo de fazer era trabalhar com pessoas e ajudá-las. E acham que podem fazer isso sem qualquer formação, curso ou treino. Se mesmo quem se forma comete erros e falhas éticas, imagine-se quem não o faz. Estamos a falar de coisas muito complexas, de processos mentais, de comportamento. Como se todos soubéssemos muito só por intuição o que fazer para ajudar de forma profissional. Não se pode confundir isso. 

Mas há uma amálgama de fatores para esta proliferação de coaching, tanto pelo lado da oferta, como da procura. 

De onde partem as queixas? Pacientes? Psicólogos?

Ambos e também de entidades públicas como Ministério Público ou Entidade Reguladora da Saúde. Na maioria dos casos, as pessoas recorrem aos serviços e percebem depois que não estão a ter ajuda, que a sua individualidade não é respeitada, ou a pessoa começa a ter sofrimento crescente. Basta ver por esta lógica do ‘basta querer com muita força’. É muito complicado porque se a pessoa não tiver as competências, isto pode vir a causar problemas até onde talvez nem existisse nenhum. 

As pessoas têm o direito de preferir recorrer a pseudociência, desde que isso seja uma coisa absolutamente clara desde o início

Falava há pouco na literacia, mas pode até dar-se o caso de a pessoa estar ciente de que quem está a consultar não é de facto um psicólogo. Não se trata de outro perigo? Do desprezo pela profissão?

Há crenças sobre as profissões, deste ou daquele profissional, em todas as áreas. Para já, há que definir literacia em quê, mas partimos do pressuposto de que a pessoa entende a diferença. As pessoas têm o direito de preferir recorrer a pseudociência, desde que isso seja uma coisa absolutamente clara desde o início e que não esteja a ser vendido gato por lebre. Estando absolutamente conscientes dos riscos, podem querer experimentar uma determinada abordagem sem provas científicas. Só nos parece importante que haja absoluta clareza no serviço que é prestado. 

Quando o coaching surgiu, era bastante bem pago. Por isso é que tantos quiseram seguir esse caminho

O aumento do coaching pode explicar-se em parte pela prática de valores mais acessíveis do que nas consultas de psicologia, às quais, como já vimos nesta conversa, nem todos conseguem aceder?

Sim, mas talvez não seja o principal fator. Porque repare, quando o coaching surgiu, era bastante bem pago. Por isso é que tantos quiseram seguir esse caminho. Não esquecer ainda que muitas empresas compram estes serviços. Fazem-no por muitas razões, mas às vezes sem grandes cuidados com o que estão a comprar. Pese embora os preços estarem a descer no mercado devido ao aumento de pessoas na área. 

Como acolheu a crítica de que a Ordem não fez tudo o que podia no que concerne aos perigos do coaching?

Não tenho ouvido muito essa crítica, mas entendo que possam achar que é sempre possível fazer mais. Em teoria, é sempre possível. Mas a questão do coaching é internacional, de muitos milhares de dólares em todo o mundo, em crescimento ano após ano. E Portugal não é diferente do resto do mundo. A única diferença é que como andamos há anos a chamar a atenção para estes temas, há uma maior consciência do que em outros países em que o coaching se tornou banal. 

Esta conversa que estamos a ter é um exemplo dos alertas da Ordem. Mas antes desta, se formos ver, há muitas outras. Só que esta conversa não se vai tornar viral, e não é por falta de empenho da jornalista e do entrevistado. Trabalhamos também via campanhas, permanentemente, com informação para que as pessoas distingam umas coisas das outras. E, sinceramente, tenho a consciência muito tranquila com aquilo que fazemos com este tema desde 2017, que é geral e não se resolve neste pequeno retângulo. 

Congresso sobre homossexualidade? No que diz respeito aos psicólogos, seria uma clara violação do código deontológico

A propósito da participação de Maria José Vilaça no congresso sobre homossexualidade que decorreu, no passado fim de semana, em Fátima, qual a posição da Ordem? 

Sobre o evento em si, não existe posição da Ordem, nem pode haver. Sei que recebemos uma denúncia, e essa, tal como todas, está a ser avaliada. E não posso dizer muito mais do que isso, e qualquer declaração seria eticamente reprovável da minha parte. Sobre o tema das chamadas terapias de reconversão, a posição da Ordem é, desde há anos, muito clara. Consideramos que não há evidência científica que dê suporte a esse tipo de intervenções. No que diz respeito aos psicólogos, seria uma clara violação do código deontológico. Além disso, é uma violação, também, dos direitos humanos, não respeitando identidade da pessoa. Além do mais é, recentemente em Portugal, crime. 

Sobre o tema temos também desenvolvido, já há bastante tempo, linhas de orientação profissional para o trabalho com pessoas LGBTQI+ e que já levou ao desenvolvimento de formação específica nessa área, já frequentada por milhares de psicólogos. 

É de caráter obrigatório?

Não. Não existem formações obrigatórias para psicólogos. Existe uma obrigação deontológica: a do profissional se atualizar e frequentar formações, sendo isso diferente de dizer que esta ou aquela formação são obrigatórias. 

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