Médico português ruma a Mossul. Na bagagem, leva cartas e um sonho
Gustavo Carona, médico do Porto, prepara-se para passar um mês em Mossul, integrado na missão dos Médicos Sem Fronteiras.
© Reuters
País Testemunhos
Não é a primeira vez que Gustavo Carona parte em missão para uma zona de conflito. Desta vez, porém, leva mais do que a bata e a experiência de médico.
De Portugal para Mossul, este médico do Porto leva também cartas de portugueses para os habitantes de uma das maiores cidades iraquianas. Uma que nos últimos anos tem sido castigada pela guerra.
Durante o mês de junho, fazendo uso de quase todos os dias de férias que tinha para tirar, Gustavo Carona vai estar por Mossul numa missão dos Médicos Sem Fronteiras.
O Notícias ao Minuto falou com Gustavo Carona sobre a sua experiência em missão, o que o motiva e o porquê de querer que entre Portugal e o Iraque haja palavras para contrastar com o cenário da guerra.
Da nossa conversa, resultou um testemunho que optámos por manter na primeira pessoa, pelas palavras do próprio Gustavo Carona.
"Perguntam-me o que espero. Respondo que espero o inesperado"
“Comecei a trabalhar com os Médicos Sem Fronteiras em 2009. A minha primeira missão foi na República Democrática do Congo. Depois disso, fiz mais ou menos uma por ano. Estive no Afeganistão, na Síria, na República Centro Africana… agora irei para Mossul, no Iraque. Juntei as minhas férias quase todas para fazer esta missão.
Estive na Síria em 2013 e confesso que vi um bocadinho mais do que gostaria de ter visto. Era já na altura uma fase terrível da guerra. De resto, nunca escolhi os sítios para onde fui. Tenho aceitado as propostas de missões que me têm feito. O que tento sempre ser é honesto intelectualmente e ir para qualquer sítio que me proponham.
Desta vez, confesso que há uma parte emotiva, de quem vê as coisas a acontecer pela televisão, pela Internet… estou sempre atento ao que se passa no mundo nestes sítios mais complicados. Os Médicos Sem Fronteiras têm uma missão há relativamente pouco tempo em Mossul. Isto é extremamente exigente do ponto de vista físico e psicológico, o que faz com que rodem muitos médicos.
Às vezes perguntam-me o que espero. Respondo que espero o inesperado.
Infelizmente, o conflito está bastante aceso, o que faz com que o número de vítimas tenha proporções assustadoras. Isto não é só porque há toda uma população que carece de cuidados de saúde. Há também toda uma estrutura que colapsa nestas zonas de conflito e tentamos de alguma forma colmatar essas falhas. As pessoas nestes sítios devastados pela guerra morrem das doenças mais fáceis de tratar.
Quando lá chegar, verei as condições que tenho, farei o que puder, tentarei dar o meu melhor. Tento não perspetivar muito antes de ir porque sei que esse exercício não traz nada de benéfico.
Infelizmente, tive contacto com o Estado Islâmico quando estive na Síria. Não tenho dúvidas sobre as atrocidades que se cometem, mas a neutralidade é um dos conceitos mais importantes em organizações como esta.
Os Médicos Sem Fronteiras preocupam-se com pessoas, falam de pessoas e são incapazes de tomar decisões por outra prioridade que não seja o número de vidas que precisam de ser salvas.
Só podemos atuar em zonas onde a segurança esteja razoavelmente garantida. Por mais que uma zona de conflito seja perigosa é preciso que os líderes de diferentes grupos aceitem a presença dos MSF no local. E a segurança depende dessa neutralidade e da conversação possível com os diferentes atores no terreno. Só assim é que se consegue trabalhar numa zona complicada. Depois, há que gerir e ter preparação para os riscos existentes. Há um risco de armas químicas? Temos de estar preparados para tal. Há o risco de raptos? Temos de estar preparados para tal.
Quanto a mim, confesso que nunca senti a minha vida literalmente ameaçada. Já tive armas próximas, nas mãos de pessoas que não são propriamente boas, e isso intimida. Já ouvi bombas a explodir perto de mim e isso intimida.
Mas acho que o maior susto que tive foi a posteriori. Dois dias depois de sair da Síria, cinco dos meus companheiros foram raptados da casa onde eu vivia. Foi o meu maior susto e já não estava lá, mas sofri pela perceção de ver que pessoas de quem eu gostava estavam a passar um mau momento.
Há riscos, sim. E às vezes perguntam-me se o espírito de missão vai crescendo ao longo dos anos, se há algo de ‘viciante’ nisto. Sim e não.
Acho que quem se conhece a si próprio admitirá sempre que, além do espírito humanitário, há outras motivações. No meu caso gosto de viajar, gosto de descobrir, gosto de compreender, de conhecer novas culturas. Tudo isso me entusiasma e alimenta a vontade de continuar a querer trabalhar com os MSF. Mas é difícil às vezes continuar.
Ter o entusiasmo de ir uma, duas vezes, acredito que aconteça a muita gente. Já continuar, não desistir, não deixar que os nossos ideais arrefeçam, acho que, esse é o maior desafio. E o meu grande objetivo é que isso nunca me aconteça.
Por um lado, é de alguma forma viciante, são realidades e emoções muito fortes que nos fazem querer repetir. Por outro, quando lidamos com tantas dificuldades pelo mundo fora… Por vezes há o risco de se baixar os braços por se sentir que a dimensão do problema é sempre maior do que a dimensão do esforço.
Depois ainda há a família, os amigos. Quem cá deixamos. E acho que isto é mais difícil para quem é emocionalmente ligado a mim do que para mim.
Quem imagina sítios como o Iraque, a Síria, o Afeganistão, tudo aquilo que sabemos desses países são bombas a cair. Achamos que 100% do território está a ser bombardeado 100% do tempo, o que obviamente não é nem de perto nem de longe aquilo que acontece.
Na verdade, quando estamos nestes sítios quase todos os dias são mais ou menos normais. Mas as pessoas que cá estão acham sempre que há perigo a toda a hora e se às vezes ouvem uma situação que aconteceu no Iraque, vão achar que foi um perigo perto de mim quando o Iraque é um país imenso. Há aqui uma componente emocional, as pessoas ficam sensíveis a qualquer informação. Mas a verdade também é que, quem está perto de mim, já ganhou alguma experiência na forma como lida com essas emoções.
Entretanto, tenho cerca de 250 cartas de portugueses para Mossul. As cartas tiveram de ser traduzidas para inglês e depois para árabe. A ideia parece simples mas depois, quando se vai pôr em prática, complica-se bastante. O processo de tradução foi uma aventura. Tive muita ajuda para o conseguir.
Esta missão é só nas minhas férias, é relativamente curta para mim. Vai durar o mês de junho todo. Com a missão para preparar e um livro por acabar, isto tem sido tudo contra o tempo. Mas o objetivo é apresentar o livro no Porto antes de ir e, se tudo correr bem, quando voltar é para apresentar também noutras partes do país mas já com mais histórias para contar.
O meu desafio era pôr os portugueses a pensar: que diriam se falassem cara a cara com estas pessoas? Sugeriram-me, e bem, que também era interessante ver o que as pessoas de lá teriam a dizer a gente como nós. Seriam as cartas de Mossul para Portugal. Não sei se será possível, não gosto de fazer promessas. Mas esse é o meu sonho e gostava muito de o realizar".
Alexandre Quintanilha apresenta este sábado no auditório do Hospital Pedro Hispano, no Porto, '1001 Cartas para Mossul', de Gustavo Carona. As receitas do livro revertem a favor dos Médicos Sem Fronteiras e da Plataforma de Apoio aos Refugiados.
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