"Vou lutar até ao fim das minhas forças por transformar a União Europeia"
Rui Tavares, fundador do Livre e candidato às eleições europeias, é o entrevistado de hoje do Vozes ao Minuto.
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Política Rui Tavares
Foi eleito eurodeputado, em 2009, como independente nas listas do Bloco de Esquerda. Dois anos depois, incompatibilizou-se com Francisco Louçã, acusando o partido de não saber lidar com a independência e acabou por deixar a delegação parlamentar do BE, criando, na sequência disso, o Livre.
Depois de não ter conseguido representação tanto nas últimas eleições europeias como nas legislativas, Rui Tavares é de novo cabeça de lista pelo Livre no sufrágio de 26 maio. Defensor de uma transformação da União Europeia (UE) que passe pela sua democratização, o historiador encontra nos partidos portugueses “hipocrisias” e considera que o debate em Portugal sobre a UE “enferma de uma quase farsa”.
Na realidade, aponta em entrevista ao Notícias ao Minuto, “os partidos institucionais discordam sobre União Europeia para televisões verem”. Enquanto isso, “Costa faz de conta que não ouve e responde ao lado”, critica. O antigo eurodeputado manifesta ainda preocupação com o crescimento dos fenómenos de extrema-direita na Europa e tem plena convicção de que Portugal não está imune a eles.
Nunca dirá que o crescimento destes fenómenos é culpa da Esquerda, mas avisa que esta tem de "ir a jogo" e abandonar o discurso da impotência para não perder terreno. "O discurso da extrema-direita não faz sentido (...) Os cidadãos não acreditam que o melhor caminho é fecharmo-nos todos em casa e não falar com os vizinhos, os países todos governarem-se a si mesmos e esquecerem que há uma crise ecológica no Planeta", enfatiza.
Já na segunda parte da entrevista enfatiza a ideia de que "todos os partidos instalados na política portuguesa têm medo do Livre", considerando ainda que a "Geringonça foi mais remendo do que remédio".
Que ideias tem para a União Europeia que, como diz, vive uma situação de urgência a vários níveis?
Precisamos urgentemente que a União Europeia seja uma democracia. Toda ela. O que quer dizer que todos os níveis que fazem lei dentro da UE devem ser eleitos. Os cidadãos devem ter um acesso mais direto, mais rápido e mais fácil aos tribunais da UE. O que quer dizer que os direitos fundamentais de todos os cidadãos devem ter proteção igual. Isto é, uma União Europeia inteiramente democrática, feita de Estados-membros que sejam todos, sem exceção, Estados de Direito - sem derivas autoritárias como as da Hungria e da Polónia, para as quais venho alertando desde 2013 – e com 500 milhões de cidadãos que tenham todos eles, sem exceção, incluindo também refugiados, imigrantes e outras pessoas que vivam sob jurisdição da UE, o mesmo direito a proteções iguais que estão na carta dos Direitos Fundamentais da UE.
E nada disso se passa.
Nada disso se passa hoje em dia. Temos uma UE em que nem todos os níveis de legislação são eleitos. O Parlamento é eleito, a Comissão não é – deve sê-lo – e o Conselho é a instituição da UE que as pessoas conhecem pior e que de forma muito opaca funciona com embaixadores a fazer legislação que é um verdadeiro entorse à ideia de democracia europeia. Todos estes níveis devem ser eleitos, ou eleitos à escala pan-europeia ou eleitos nacionalmente. No Conselho, Portugal poderia estar na vanguarda da democratização da União decidindo eleger os seus dois representantes permanentes, dois embaixadores neste momento, ou na Assembleia da República (AR) ou por até voto direto de todos os cidadãos. É este tipo de várias pequenas revoluções democráticas na prática que nós defendemos que depois acabem por criar uma mobilização cidadã que leve à democratização do projeto europeu. Em relação aos Estados de Direito, como sabemos, há hoje países que estão a desmantelar as suas democracias.
E a que se deve esse desmantelamento e retrocesso democrático?
Esse retrocesso deve-se ao facto de haver políticos que o querem fazer.
E outros que os deixam …
Exatamente. No início deixam porque havia um otimismo de que países que chegavam à democracia não voltavam para trás. Ou seja, houve uma falta de vontade em aprender as lições da História. E a primeira lição, nomeadamente na Europa, entre as duas guerras, é de que regimes que são democráticos, repúblicas, democracias liberais, podem ser destruídos por dentro, até por gente que foi eleita mas que depois quer concentrar poder ou não o quer largar. A segunda lição é que falhámos entre as duas guerras porque a sociedade das Nações viu o fascismo ganhar países atrás de países e não fez nada. E é por isso que em 2013 alertei para o que se estava a passar na Hungria. Identifiquei as vulnerabilidades das instituições europeias para lidar com isso.
E não fez nada porquê?
O Parlamento Europeu, às vezes, está preso por laços de lealdade de afiliação política dentro dos partidos políticos europeus. O PPE, onde estão PSD e CDS, tem lealdades com o Fidesz de Orbán e, por isso, deixaram andar. A Comissão Europeia tem falta de legitimidade democrática para agir.
Senti-me plagiado. Não tenho problema nenhum com isso. Só tenho pena de ter sido plagiado com pelo menos seis anos de atraso E o que é que defende para alterar isso?
O que defendi nesse relatório de 2013 foi que fosse criada uma comissão independente constituída pelos tribunais constitucionais dos Estados-membros, por antigos presidentes da República, por ex-ministros da justiça, por personalidades de prestígio reconhecidamente ao nível da defesa dos direitos fundamentais na UE, até por prémios Sakharov. E que essa comissão, chamada comissão de Copenhaga, em nome dos critérios que os países têm de cumprir para entrar na UE – e que depois nos esquecemos que teriam de cumprir para permanecer - , quando carregasse no botão de alarme teria de ter uma resposta por parte das instituições.
E continua a fazer sentido, mais do que nunca.
Foi com alguma surpresa que vi que o candidato do PPE às eleições europeias, depois de nove anos em que não fez nada em relação ao caso húngaro, e depois de ter votado contra esta proposta - como votaram Paulo Rangel e Nuno Melo - agora veio defender num artigo publicado na imprensa alemã que a forma de lidar com os casos como húngaro é a criação de uma comissão independente de juristas e de pessoas de reconhecido prestígio que se pronunciem sobre violações de direitos fundamentais. Senti-me plagiado. Não tenho problema nenhum com isso. Só tenho pena de ter sido plagiado com pelo menos seis anos de atraso.
Em muitos aspetos da política nacional da Geringonça, às vezes sinto-me um bocadinho a viver 'o dia da marmota'
É o reconhecimento de que tinha razão?
É. E não é uma experiência nova. A nível de política europeia, e também em muitos aspetos da política nacional da Geringonça, às vezes sinto-me um bocadinho a viver 'o dia da marmota', do filme em que o tipo acha que as coisas se estão a repetir. A Geringonça era impossível e depois passou a ser.
O Paulo Rangel e o Nuno Melo votam contra a ideia da comissão de Copenhaga, e agora apoiam um candidato que, à última hora, antes das eleições, muito embaraçado pelo facto de estar no mesmo partido do governo que mais ataques tem feito aos direitos e aos valores europeus, acaba por adotar a minha ideia de há seis anos. Mais vale tarde do que nunca, mas não seria melhor para todos nós dar ao Livre a potência de poder realizar essas coisas a partir do Parlamento Europeu e da Assembleia da República? As nossas ideias têm muita força, têm tanta força que mais tarde ou mais cedo os partidos do sistema acabam por ter de se render a elas. Há seis anos fomos os únicos a candidatarmo-nos com listas paritárias. Hoje em dia todos o fazem.
O primeiro partido a apresentar listas paritárias em Portugal não é nenhum daqueles que tiveram décadas de oportunidades para o fazer
Um feito do qual o PSD hoje também se orgulha.
Chega atrasado. Na verdade, o primeiro partido a apresentar listas paritárias em Portugal não é nenhum daqueles que tiveram décadas de oportunidades para o fazer, foi o Livre e foi na primeira eleição que teve oportunidade de fazer. Se eles [os outros partidos] com seis anos de atraso vão render-se às nossas ideias porque elas fazem sentido perante a cidadania, o desafio que lançamos à cidadania é em vez de olhar para quem tem dinheiro – milhões de euros, aliás – para encher o país de cartazes, ou para quem tem os lugares cativos da cobertura jornalística e mediática durante toda a legislatura parlamentar, em vez de olharem para isso, para o passado, que deem força a quem tem as ideias de futuro, porque isso significa que elas chegam mais rápido e, convenhamos, ninguém as vai conseguir defender tão bem como quem acredita verdadeiramente nelas. Não é exatamente quem chega a essas ideias a dois meses das eleições, porque está embaraçado por causa do senhor Orbán, que vai ser o melhor defensor das ideias, o melhor defensor das ideias é quem as teve.
Tem acusado Paulo Rangel de hipocrisia nomeadamente na questão da Venezuela. O período eleitoral também é terreno fértil para hipocrisias, como se sabe.
Sim … Há muitas hipocrisias na política portuguesa acerca da UE. Em primeiro lugar, devo dizer que respeito Paulo Rangel, tenho um bom diálogo com ele, e acho - como toda a gente acha - que é uma pessoa inteligente e é precisamente por isso que tenho pena de ver essa inteligência às vezes mal usada. Acho muito bem que Paulo Rangel se preocupe com os direitos humanos na Venezuela. Eu redigi e aprovei resoluções de preocupação sobre o que se estava a passar na Venezuela e não foi só no tempo de Maduro, foi também no de Chavez. Convenhamos, Paulo Rangel, durante dez anos, conviveu com o braço direito de Orbán no desmantelamento do Estado de Direito na Hungria, partilhando com ele o cargo de vice-presidente do grupo parlamentar do PPE.
Rangel conviveu, durante 5 anos, com um eurodeputado do PSD, Mário David, que tem uma enorme cumplicidade política – e eventualmente supera a cumplicidade política – com Victor Orbán, agindo muitas vezes como seu braço direito, inclusive para tentar tropedear a candidatura de Guterres às Nações Unidas. Nunca lhe ouvi, dentro do PSD ou para fora, perguntar que cumplicidades práticas tem Mário David com Orbán, algo de que em privado muita gente do PSD fala mas que em público não fala tanto. Mas toda a gente sabe.
O candidato de Paulo Rangel e de Nuno Melo à presidência da Comissão Europeia é Manfred Weber, que foi o maior ponto de apoio de Orbán no Parlamento Europeu e que ainda por cima pediu à Comissão Europeia uma punição exemplar contra Espanha e Portugal por causa das questões orçamentais. Evidentemente, as palavras de Paulo Rangel sobre democracia, Estado de Direito e direitos fundamentais são sempre bem-vindas e são sempre bonitas, mas a prática é outra coisa. E a prática esteve muitíssimo aquém destas palavras. Não deixo de ficar calado porque vi e sei.
O debate europeu em Portugal enferma de uma quase farsa
Reconhece hipocrisias também nos outros partidos, PS, Bloco e PCP?
O debate europeu em Portugal enferma de uma quase farsa. Na verdade, os partidos institucionais discordam sobre União Europeia para televisões verem. Não é para absolutamente mais nada. E o continuismo institucional de PS e PSD e agora também CDS, que já foi eurocético e agora é pró-europeu outra vez, é apenas a outra face da moeda do catastrofismo europeu do Bloco de Esquerda e do PCP. Basicamente o que eles nos dizem são duas coisas. Uns dizem que está tudo bem, deixem connosco. E outros dizem que é impossível fazer o quer que seja na UE, não se pode democratizar a UE, não se pode fazer um New Green Deal [novo pacto verde]. Agora também, nomeadamente no BE, vai haver um certo virar o bico ao prego nos últimos meses das eleições europeias para dizer que afinal vale a pena eleger deputados ao PE porque eles servem para qualquer coisa.
Mas convenhamos, nos últimos anos ouvi Mariana Mortágua, Francisco Louçã, Catarnina Martins dizerem que a UE é irreformável, que não adianta fazer nada. Eu pergunto aos cidadãos: vale a pena investir em gente que diz que lá não pode fazer nada? Vamos investir civicamente, com o nosso voto, em quem diga que quer democratizar a UE, que quer uma UE social, ecológica e dos cidadãos e sei como fazê-lo, tenho propostas, porque acredito nisto. Vocês sabem que vou lutar até ao fim das minhas forças por transformar a UE. Quando três deputados do PCP nos dizem ‘não há nada a fazer’, mas também não explicam como querem sair... O Bloco de Esquerda a mesma coisa. Tem candidatos nas listas que me dizem que a forma de sair do euro é através de uma comunicação à Comissão Europeia, o que seria na verdade uma saída desordenada e unilateral do Euro para conquistar não se sabe bem o quê, talvez o poder de cortar os salários dos portugueses através da desvalorização da moeda. Mas o BE, no seu discurso político, acha que a prioridade é trabalhar nas vias da saída, é estarmos preparados para a saída da UE.
A missão do Livre é acabar com este consenso todo. Queremos dar intensidade ao debate europeu em Portugal
E a prioridade do Livre é qual?
É trabalhar para transformar a União Europeia. 80 a 90 % dos cidadãos portugueses querem que Portugal esteja no euro, mas não estão contentes como a UE é hoje. Se estivessem contentes não havia este nível de frustração. A conclusão a tirar é que não podemos ficar como estamos, que não devemos voltar atrás aos Estados nação – é um caminho que é mítico, nós nunca fomos um Estado nação como os nacionalistas à Direita e à Esquerda imaginam, Portugal descolonizou e entrou no projeto europeu, nunca viveu isoladamente. O caminho mais construtivo é transformar a UE. E isso, infelizmente, nem PS e PSD e CDS oferecem, porque são continuistas, nem o BE e PCP oferecem porque, sendo catastrofistas, adiam as transformações que querem fazer para um dia, quando sairmos da UE.
A prova de que isto é uma farsa é, por exemplo, o CDS já ter tido uma posição equivalente à do PCP e hoje em dia ser pró-europeu. A missão do Livre é acabar com este consenso todo. Queremos dar intensidade ao debate europeu em Portugal e acreditamos que os países que mais poder e influência têm na UE têm um debate mais avançado nas suas sociedades na UE. Quanto mais intensa for a cidadania em Portugal, mais poder tem. Quando a sociedade não debate, acontecem todos os dias coisas em que o nosso Governo vota e cede, negoceia, faz de conta que se esquece.
Queremos injetar cidadania no debate europeu em Portugal e tornar a nossa cidadania muito mais informada
Um exemplo em que isso tenha acontecido?
Portugal votou a favor dos pesticidas que estavam a matar as abelhas porque na altura de Passos Coelho a estratégia era votar sempre com a Alemanha, e a Alemanha estava a defender a Bayer. Depois houve um segundo voto, a Alemanha mudou o sentido de voto mas esqueceram-se de nos avisar, Portugal votou na mesma a favor desses pesticidas. Isto passa-se de uma forma que é completamente opaca em relação à maior parte dos cidadãos. Ou seja, se há um défice democrático na UE, também há um défice democrático e gravíssimo que não é só do Governo, é da AR também, em relação às matérias europeias decididas. É contra isso que nós estamos. Queremos injetar cidadania no debate europeu em Portugal e tornar a nossa cidadania muito mais informada, muito mais exigente, muito mais esclarecida e portanto muito mais capaz de apertar os calos dos seus representantes em relação a matérias tão importantes como as da política europeia.
Os partidos falam vagamente dos assuntos da UE e com o propósito apenas de reforçar o poder internamente, não com o objetivo verdadeiro de discutir os assunto. É isso?
Sim, sim. Em geral as eleições europeias têm sido para falar dos temas do dia e acabamos por saber o que os partidos acham acerca do tema do dia que a seguir já foi esquecido. Escusam-se sempre a dizer-nos o que é que acham do que é que deve ser o destino da UE na próxima década, que é crucial, porque o mundo está a transformar-se, porque a economia está a voltar a ser aquilo quer era em 1500, em que a maior parte da riqueza mundial estava na China e na Índia, porque os EUA estão numa crise política sem fim à vista e porque a resposta à pergunta ‘o que é que deve ser a democracia no século XXI e o que é que deve ser o Planeta e como vamos salvá-lo’ passa pela UE. A UE é uma das três potências regulatórias que existem no Mundo (EUA, Europa e China).
E vemos agora no Brexit que a escolha que o Reino Unido oferece a si mesmo é entre ser um país satélite da UE - se escolher uma saída à norueguesa - ou ser um país satélite dos EUA - se escolher uma saída sem acordo. E disso nunca se fala na política portuguesa, e em particular, a Geringonça – que eu defendi ainda antes de se assim se chamar, e fui atacado por isso – falhou redondamente em relação a isso. Como PCP e BE de um lado e PS do outro estão cada um nos seus nichos, nos seus cilos em relação à UE, os debates no Parlamento entre estes partidos sobre UE são uma coisa caricata de se ver. Catarina Martins e Jerónimo de Sousa fazem um discurso absolutamente fatalista, derrotista e catastrofista. António Costa faz de conta que não ouve e responde ao lado. E assim se andou quatro anos.
As elites em Portugal é que sempre foram provincianas
A União Europeia é um assunto apelativo apenas em ano eleitoral?
Na verdade, nem isso. As elites portuguesas, sociais, económicas, políticas, institucionais, até em grande medida jornalísticas, nunca quiseram discutir a UE. Nos anos 80 era indiscutível porque era boa. Enquanto os fundos entraram, enquanto algumas pessoas aproveitaram para fazer investimentos agrícolas, era indiscutível, era bom. A elite portuguesa estava contente.
A partir da austeridade, houve muita elite que, antes estava contente porque o dinheiro entrava, e tornou-se anti-europeia de um dia para o outro. O povo português não é, ao contrário do que se costuma dizer, nacionalista, é cosmopolita. Emigra, está lá fora, sabe a diferença entre o tempo em que iam para a fila do visto e o tempo em que são cidadãos europeus, ou mesmo que tenham o passaporte europeu sabem aquilo que ele vale nos EUA, no Canadá, pelo mundo todo.
Fale-se com toda a gente na rua e eles percebem que a realidade económica social do país está muito dependente de uma UE que deveria funcionar melhor mas que depois se se olha para o debate que as elites fazem, nunca é um debate sobre o que interessa. As elites em Portugal é que sempre foram provincianas porque tinham os empregos fáceis na capital ou nas indústrias mais a Norte, porque eram empregos familiares e das suas redes de relações políticas e sociais. Só aprenderam verdadeiramente o que custava a emigração, principalmente os filhos da classe média, com a austeridade. Essa elite continua com os seus maus hábitos de não querer discutir a Europa.
Mas por que razão ou razões?
É mais fácil. Não têm de se atualizar. Quantas vezes eu ouvi queixas de jornalistas a dizer: ‘este tema é muito interessante, mas o meu editor não quer, o meu diretor não quer’. Sinto essa dificuldade. Tenho alguma presença no espaço público e o que mais me dizem é ‘não fales da Europa, as pessoas não querem saber’. Mas na verdade não é isso, quando um chefe num departamento público, num ministério, numa universidade ou numa redação nos diz que as pessoas não querem saber, o que nos estão a dizer ‘eu não conheço bem esse assunto, não me atualizei. Sei tudo acerca das minudências da política portuguesa, mas agora, nesta fase da minha carreira, atualizar-me sobre a UE, demorava, era custoso e dava trabalho. Então prefiro dizer-te a ti, jovem jornalista que queres falar da Europa, que o povo não quer saber’. E assim despacha-se o assunto. Isto tem uma consequência.
Qual?
Enfraquece Portugal. É por razões também patrióticas que eu acho que é preciso tornar muito mais intenso sobre a Europa em Portugal, porque se não o país vai estar mais fraco. Há países que fazem um bom debate europeu, para o bem ou para o mal. Não chegam às conclusões que nós gostaríamos, mas quando uma chanceler alemã chega a um Conselho Europeu e diz que na Alemanha não querem isto ou aquilo, sabemos que não é só uma posição da elite política e do governo. É uma posição que foi consolidada num debate relativamente profundo na sociedade alemã e, portanto, não volta para trás, não é fácil dizer ‘tomem lá um cargo e mudem de posição’. Vale para a Irlanda também. Porque é que a Irlanda é tão forte na questão do Brexit? A sociedade irlandesa sabe a discussão que tem a ter acerca da fronteira. Ou seja, muito menos populosa do que o Reino Unido, no entanto, consegue ter outros 26 países com a Irlanda a dizer ao Reino Unido que aquela questão é crucial. Mas se não fosse da sociedade irlandesa, o primeiro-ministro ia a um Conselho Europeu e acontecia o que nos acontece a nós. Tomem lá um cargo ou uma cedência noutro dossier ou agora não é oportuno.
Em Portugal, um Parlamento que fala tanto sobre soberania não exerce a sua soberania
E ficaria tudo bem …
Tudo bem. O primeiro-ministro de Portugal, ou de outro país europeu sem debate, voltaria sempre para casa sabendo que os editores e diretores dos jornais não iriam apertar com ele por causa daquela cedência. E a sociedade, não tendo por parte da sua elite política verdadeiro debate europeu não está dotada das ferramentas para perceber a gravidade do que acontece. Isso na Irlanda, Holanda, Dinamarca acontece. Em Portugal, um Parlamento que fala tanto sobre soberania não exerce a sua soberania. E isso é um problema grave no país.
E como é que conseguimos alterar esse estado de coisas sobre a falta de debate europeu?
Eu diria que a médio/longo prazo teríamos que esperar por uma mudança geracional para nos apercebermos da importância que o debate europeu tem, mas só que arriscar no médio/longo prazo é complicado. Tivemos sempre uma grande discussão em Portugal entre produzir barato ou produzir com valor acrescentado, mão de obra barata ou valorização das pessoas. E, ciclicamente, um país com as vulnerabilidades que Portugal tem, o que acontece é que as elites políticas apostam na desvalorização do trabalho. Todas, curiosamente.
Estou convencido que se Portugal não almejar ser um dos países mais desenvolvidos, com melhores proteções ambientais, com melhores proteções sociais, com maiores graus de qualificação, na verdade, não conseguimos sequer a convergência. É um bocado como uma equipa que joga para o empate e acaba a perder. Ora, o que acontece é que se nós dissermos que daqui a 20, 30 anos as novas gerações vão ter outra perspetiva e vão dar mais poder a Portugal na Europa, pode ser que essas novas gerações tenham outra perspetiva e outro debate sobre a Europa mas vão tê-lo fora de Portugal.
E entretanto já perdemos uma geração inteira.
Daí a urgência da política e da urgência da política partidária. Os partidos e as elites políticas entendem a linguagem da concorrência. Aliás, temos a prova disso com o que se passou em relação à Geringonça. Os partidos de Esquerda achavam que era impossível a fazer uma governação conjunta. Na verdade, bastou aparecer um partido que pôs esse assunto em cima da mesa – acabando por não ser eleito - para que se posicionassem em relação a isso. E viu-se que a posição anterior não tinha sustentação e não tinha o apoio dos eleitores. Isso obrigou os partidos a fazerem uma viragem que para muitos era inesperada mas que para nós não foi.
Nós dissemos que era possível governar à Esquerda em Portugal e que era possível governar à Esquerda na UE. A primeira parece que está provada, [PS, BE e PCP] aprovaram quatro orçamentos juntos. A segunda parte, é importante provar. Essa governação faz-se melhor com um país bem preparado dentro do projeto europeu. Essa segunda parte da prova, da demonstração que o Livre nasceu para fazer, que é possível governar à Esquerda, é possível governar na UE e é possível governar no sentido de uma estratégia ecológica – outra área em que a Geringonça falhou bastante – é o que nós queremos fazer também com a concorrência partidária. Ou seja, metendo temas em cima da mesa sobre os quais outros também vão ter que se posicionar.
O que é que o Livre traz ao espectro político português?
O que dizemos aos eleitores é: se conseguimos o que conseguimos mesmo sem ser eleitos, imaginem o que conseguiremos se vocês levarem o Livre ao Parlamento Europeu e levarem o Livre à Assembleia da República, com candidaturas como é a minha, cujo empenhamento na causa da democratização da UE acho que não oferece dúvidas a ninguém. Há quem possa duvidar ou criticar se o objetivo é alcançável ou não, mas o empenhamento é muito. E com candidaturas como da Joacine Katar Moreira aqui em Lisboa que trará uma nova voz feminista e anti-racista à AR, ou o Jorge Pinto, no Porto, que trará uma voz na defesa de uma sociedade ecológica, sustentável, pós-capitalista, ou do Carlos Teixeira aqui em Lisboa, também uma pessoa com cartas dadas na área da ecologia e com uma visão para o país em termos de ordenamento do território, agricultura, produção energética, a Ana Raposo Marques em Setúbal, com o seu trabalho na área da saúde.
Se tivermos estas pessoas no Parlamento, a política portuguesa muda para muito melhor, e muda a contra-corrente daquilo que está a acontecer nos outros países. Em vez de populismo, civismo, em vez de política destrutiva, política construtiva. Tenho a convicção que este é o sentido da maior parte dos portugueses, da nossa cultura política, é aquilo que provámos em vários momentos a seguir ao 25 de Abril que queremos. Queremos transformação, somos ambiciosos naquilo que queremos para o futuro e queremos fazê-lo de forma construtiva. A ideia do populismo para destruir uma democracia que conquistámos tão duramente não nos agrada. O Livre traz isso, uma mudança na política a sério, mas que é também uma mudança na política séria. Não é com as vigarices dos populistas que vamos lá.
O que é que responde quando lhe dizem ou ouve dizer que Portugal não conta para nada na UE?
Respondo que isso é derrotismo. É a mesma coisa que eu diria a um amigo individualmente que me dissesse que a minha opinião não conta para nada no meu lugar de trabalho, na minha escola, na associação onde estou, no bairro onde estou. Não podes partir derrotado. Significa que em algumas coisas precisas de fazer melhor o teu trabalho de casa. A culpa não pode ser sempre dos outros, em grande medida também é nossa, temos de nos preparar melhor. Mas acima de tudo, tens que superar a fase das vitórias morais. Vou dar um exemplo um bocado caricatural. Lembro-me muito bem do tempo em que a Seleção portuguesa era a seleção das vitórias morais. Devíamos ter ganhado aquele jogo, jogamos tão bonito. Porque é que os alemães não jogam um bocadinho mais devagar para podermos ganhar? Alguns até se sobravam nas teorias da conspiração. ‘Não não, isto está feito para que não possamos ganhar’. Quem diz no futebol, diz na Eurovisão, diz na Ciência, na Academia.
Estou francamente preocupado com o facto de Portugal estar sem plano há demasiado tempo
Na verdade, os políticos que dizem isso estão a dar um péssimo exemplo à sociedade portuguesa. Felizmente a sociedade portuguesa é melhor do que a nossa política e não segue esse exemplo em boa parte das nossas atividades. Portugal tem um futuro enorme, por exemplo, na área do ensino superior de alta qualidade. Acho que poderíamos ter um plano para sermos um país farol do ensino superior português mas também estrangeiro na Europa e no mundo inteiro. Não tenho dúvidas que temos as condições ideias para isso. Aqueles que nos dizem que Portugal não risca para nada na UE, na verdade, não querem eles próprios riscar para nada na UE. Estão bem como estão. A política partidária é rotineira, estão a ocupar um cargo, mais tarde vai ver-se o que dizem as sondagens, se roubamos mais um bocadinho de votos a x ou a y. Só que isso não chega, com isso Portugal não passa da cepa torta e eu estou francamente preocupado com o facto de Portugal estar sem plano há demasiado tempo.
Se a Esquerda não for a jogo perde por falta de comparência
Mas como é que é possível Portugal contar mais na UE?
O exemplo da Irlanda é muito concreto. Podia dar o da Holanda. O caso da Holanda. A Holanda percebeu – e não vai ser de uma maneira que nos agrade – que com o Brexit vai haver uma orfandade no campo liberal na UE. E começou a prepara-se. Visitaram todas as capitais da União Europeia. Fizeram diálogos em cada uma dessas capitais com uma série de gente. Em Lisboa, fui uma das pessoas que participou nesses diálogos. Fazem diálogos dentro da própria sociedade holandesa e sabem que a 10, 20 anos, a missão deles é substituir o Reino Unido como porta-voz dos interesses liberais na UE. O que eu digo, nomeadamente na minha família política que é a da esquerda, do progressismo e da ecologismo, é que ao assumirem esse derrotismo estão a deixar o campo livre aos Macrons, aos Mark Rutte e a outros desse campo liberal e depois vão queixar-se que a UE é muito neo-liberal. Pois é. Se nós não formos a jogo perdemos por falta de comparência. O que é importante é entender que a UE é um campo de contenda política, onde se jogam antagonismos ideológicos, de interesses nacionais, culturais, de indústrias e de outros. E dizer que nós não participamos nesse jogo é a melhor garantia de perdermos esse jogo. O que é preciso é mobilizar a sociedade com aquilo a que eu chamo objetos de desejo político.
Como por exemplo?
Se milhões de cidadãos europeus exigirem um novo pacto verde para combater as alterações climáticas mas também para isolar bem as casas das pessoas que passam frio em Portugal, vai do Planeta à casa do cidadão individual, se dissermos às pessoas que pode ser feito com fundos europeus, que deve ser feito com um plano europeu de 500 mil milhões de euros por ano. Aliás, esta é uma ideia dos verdes europeus desde 2010, já atravessou o Atlântico, está a criar uma enorme mobilização nos EUA com Bernie Sanders e com Ocasio Cortez. É importante que essa ideia regresse à UE. Se houver milhões de cidadãos a exigi-la, ela vai acabar por ter que se fazer. Porque a democracia tem mesmo muita força. Esse é o grande objeto de desejo político que temos de ter porque é importante para relançar a economia europeia e é importante para salvar o Planeta.
O menor risco que a UE pode correr é o de irrelevância
Defende uma mudança na maneira de fazer política e diz até que é uma emergência. Que riscos corre a União Europeia se essa mudança não se efetivar atendendo também ao crescimento de fenómenos populistas e de extrema-direita?
O menor risco que pode correr é o de irrelevância, é não ter autonomia estratégica e, como tal, ser ultrapassada pelos acontecimentos noutras partes do mundo. Preocupa-me muitíssimo que a resposta de que como é que deve ser a política do século XXI, como é que deve ser a democracia se a conseguirmos preservar, seja dada pelo senhor Putin ou pelo senhor Xi Jinping. Teria todo o prazer que as respostas a essas perguntas fosse dada por outras partes do mundo desde que essas partes do mundo fossem democráticas. Rejeito o eurocentrismo.
E, por isso mesmo, acho que nós precisamos de pôr a Europa a caminho de qualquer coisa diferente do que é neste momento. Estamos numa situação em que a UE, mesmo com os seus défices democráticos que sempre me pareceram tão maus, quando comparados com o que está a passar no resto do mundo, parecem menos maus. Porque no resto do mundo temos Putin, Trump, Bolsonaro, Erdogan, Xi Jinping, Duterte. Temos todos estes atores e alguns já dentro UE como Orbán e Salvini.
E nessa encruzilhada qual deve ser o papel da UE no mundo?
Deve ser, em primeiro lugar, de dar o exemplo de que é possível cumprir com a próxima etapa na história da democracia. A história de democracia desde que ela nasceu, há 2.500 anos, é democratizar coisas que antes não eram democratizáveis. Quando Atenas se tornou democrática, as grandes lealdades, as grandes oposições e antagonismo estavam ao nível da tribo, não eram ao nível da cidade. Superar essas rivalidades tribais para criar democracia na cidade foi o primeiro grande passo da democracia. E por isso dizia o Aristóteles: “o humano é um animal político”. Ele não dizia o ateniense ou o grego, dizia o humano. Nós, humanos, somos capazes de nos entender para criar constituições democráticas que funcionam a várias escalas. E assim, muitos anos depois foi possível democratizar nações inteiras, uma coisa que era considerada impossível, mesmo por gente do século em que isso aconteceu (XVIII). Dizia-se que uma democracia seria no máximo uma cidade, uma nação tinha que ser um reino e qualquer coisa maior do que isso já tinha que ser um império. E, no entanto, fez-se a revolução francesa, fez-se a a revolução americana e os Estados Unidos são uma república feita de repúblicas. Já na altura havia quem dissesse que poderíamos ver a Europa como uma grande república partilhada por diversos estados.
E é nesse ponto da história que estamos agora. O que estas gerações de cidadãos europeus e de todos os que vivem na Europa, incluindo os refugiados, podem provar é que é possível construir uma democracia que tenha várias nações e que todas essas nações democráticas também. Nós já temos alguns elementos disso. O Parlamento Europeu é um elemento disso. Pouca gente sabe, mas a primeira proposta de criação do PE é de 1693. Demorámos 300 anos a criar um Parlamento Europeu democrático. Mas agora existe e é o único parlamento transnacional do mundo e o segundo maior parlamento funcionando numa democracia no mundo, a seguir ao congresso indiano. A UE é a terceira maior entidade política do mundo, a seguir à China e à Índia, e pode ser a segunda maior democracia do mundo, a seguir à Índia, e a maior democracia transnacional do mundo. Se o for, o exemplo que se estará a dar a outras regiões do mundo como a América Latina, como o Sudeste Asiático, como a própria União Africana, é um exemplo muito poderoso.Em alguns aspetos, este exemplo até está a ser seguido.
A que nível?
A União Africana passou a ter, recentemente, um Tribunal dos Direitos Humanos, a exemplo do que temos na Europa, que não é da UE, mas que faz parte do projeto europeu. O presidente do Uruguai disse recentemente, mesmo com todos os seus defeitos, "oxalá eu tivera uma União Europeia na América Latina". E o que eu digo aos meus amigos e camaradas da Esquerda, na qual me filio, é: “Vocês veem o Trump e o Putin a dizerem que a UE é um inimigo e que precisa de ser destruída e veem o Mujica do Uruguai a dizer que a UE é património da humanidade e que deve ser salva, e depois disto ainda têm dúvidas de que lado devem estar? Não acham que o mundo nos está a dar um sinal de que se salvarmos a UE isso é importante para o resto da humanidade, nomeadamente para os países pequenos e médios, que serão apanhados neste torniquete entre China – Estados Unidos – Rússia e, eventualmente, Índia?’ Parece-me evidente que a aposta tem que ser feita por dentro da UE, mas por outro lado, como a UE é hoje muito frustrante – aí concordo no diagnóstico, está muito aquém do que podia ser –, a única hipótese tem que ser transformá-la. Se apresentarmos esse objetivo aos cidadãos europeus, a política muda. Toda esta preocupação sobre as pessoas irem votar na extrem- direita e nos populistas evidentemente se altera.
Vemos uma Esquerda que baixou os braços e que diz que é impossível mudar a UE
O que é que está a impulsionar o voto na extrema-direita?
As pessoas vão votar na extrema-direita e nos populistas porque têm de um lado um centrão que lhes diz que está tudo bem, não se preocupem, aqueles que vos trouxeram à crise são aqueles que devem continuar a governar e as pessoas desconfiam disso. Mas depois viram-se para a Esquerda, que é o lugar histórico da transformação e da democratização das sociedades, e o que veem é uma Esquerda que baixou os braços e que diz que é impossível mudar a UE, que a UE é neo-liberal e que não se pode fazer nada acerca disso. E depois admiram-se que as pessoas vão votar em tipos que lhes dizem autênticas falsidades históricas em relação à sua identidade nacional e de como precisam voltar a ela, aos que lhes oferecem um discurso que não é de impotência.
Se a Esquerda abandonar o discurso da impotência e se admitir que a UE tem muitos defeitos, mas que é preciso transformá-la, aqueles 80 a 90% dos cidadãos que não querem que a UE acabe mas que, ao mesmo tempo estão frustrados com a maneira como ela funciona, voltarão a votar em quem lhes diz que é possível alterar a realidade que temos.
A Esquerda tem então contribuído para o crescimento da extrema-direita, é isso?
Há duas coisas diferentes. Uma é a Esquerda não estar a ir à luta como deveria para derrotar a extrema-direita, e ao mesmo tempo, derrubar o autoritarismo da austeridade, o autoritarismo do capitalismo desregulado. No fundo são dois autoritarismos que temos à nossa frente. O autoritarismo de quem nos diz que é assim e tem que ser assim, que a precariedade e a austeridade são inevitáveis. E o autoritarismo de quem nos diz que temos que voltar atrás, que temos que ser como éramos num passado mítico que na verdade nunca existiu, que é o autoritarismo da extrema-direita.
Se a Esquerda não tiver um discurso económico e social para derrotar a austeridade, mas também sobre os valores políticos, culturais e filosóficos para derrotar a extrema-direita, a Esquerda vai entrar a perder neste jogo. Inclusive a Esquerda que, com boa vontade, acha que a forma de acabar com a xenofobia e o racismo da extrema-direita é investir no social porque se houver menos desemprego e menos desigualdade, as pessoas deixam de ser racistas. Tomara que fosse assim. Nós devemos combater o desemprego e as desigualdades. Mas a igualdade no Brasil aumentou, a igualdade na Suécia sempre foi grande, e há extrema-direita tanto num país como noutro. Não podemos deixar de ter um discurso filosófico político, moral, cultural dos valores do cosmopolitismo e da tolerância para combater o discurso da extrema direita. O discurso da extrema-direita não faz sentido.
Os cidadãos não acreditam que neste início do terceiro milénio que o melhor caminho é fecharmo-nos todos em casa e não falar com os vizinhos, os países todos governarem-se a si mesmos e esquecerem que há uma crise ecológica no Planeta.
Nunca direi que a culpa do crescimento da extrema-direita é da Esquerda
Há quem acredite.
O problema é que não estamos a ter a coragem política necessária para contrapor com o discurso que faz sentido. Sim, a humanidade é só uma, o Planeta é só um, é preciso mais cosmopolitismo e não menos. O cosmopolitismo não é um valor de elite, é o valor do trabalhador, do refugiado, é o valor das mulheres - que são quem mais sofre com as guerras e com a austeridade. E esse é o valor histórico da Esquerda e do socialismo. Não o podemos abandonar. A Esquerda que não vai a jogo neste plano dos valores evidentemente perde terreno. Mas nunca direi que a culpa do crescimento da extrema-direita é da Esquerda. Isso aí é uma falácia que tem sido apresentada por muita gente no centro direita que tem dado a mão, na Hungria, na Áustria, na Polónia, em muitos países do mundo todo, à extrema-direita e depois vão dizer que a culpa é da Esquerda. Calma lá! Eu sou o primeiro a criticar à Esquerda, mas a Esquerda não pode ter culpa de tudo. Não é por a Esquerda ser feminista que tem culpa que apareça uma extrema-direita machista. O problema é que às vezes a Direita, e mesmo a Direita centrista, a democracia-cristã, dá a mão a esses discursos de extrema-direita quando os devia rejeitar completamente.
Então de quem é a culpa do surgimento de movimentos de extrema-direita e dos fascistas?
É, em primeiro lugar, dos fascistas. A culpa de muitos fascistas terem chegado ao poder tem sido do centro-direita que lhes têm dado a mão. Culpas da Esquerda, se as há, estão apenas em não ser ainda mais eficaz, mais de Esquerda e mais afirmativa nas formas de combater a extrema-direita. Rejeito completamente a ideia de que a Esquerda deva ser menos feminista ou menos defensora dos imigrantes para se tentar encontrar com a extrema-direita a meio do caminho. É precisamente por isso que rejeito o argumento daqueles que agora estão na esquerda nacionalista e dizem que têm de ser um bocadinho nacionalistas porque se não o povo foge para a extrema-direita. O que estão a fazer é ao contrário. Estão a preparar o terreno para que o eleitorado fuja para a extrema-direita. Aconteceu em França, está a acontecer em Espanha, aconteceu em vários países da Europa e eu não quero que aconteça em Portugal.
Acho que temos tido sorte. E acho que a nossa sorte pode estar a acabar. E a melhor maneira de não andarmos a confiar na sorte é precisamente ter um discurso forte em todos os planos contra a extrema-direita
Há a tendência de se pensar que Portugal está, de certa forma, imune ao crescimento de fenómenos de extrema-direita. Concorda com isso?
Não. Acho que temos tido sorte. E acho que a nossa sorte pode estar a acabar. E a melhor maneira de não andarmos a confiar na sorte é precisamente ter um discurso forte em todos os planos, económico, social, cultural, moral, contra a extrema-direita. Não acreditarmos que há algum fator histórico que nos proteja, até porque a extrema-direita também nasce, em grande medida, com apoios exteriores, por exemplo de cadeias de media que acham que os populistas dão audiências e portanto vão tê-los a fazer campanha para as europeias até à última hora.
Refere-se ao caso do Chega [que agora propôs ir em coligação com o nome Europa Chega, que também foi chumbado]?
O Chega é um pseudo-partido que eu nem menciono. E já vimos isto noutros países. Às vezes há dinheiro interno e externo a financiar este tipo de fenómenos. E depois [André Ventura] quer apresentar-se com uma espécie de coligação inventada à última da hora tendo entregado [para a constituição do partido] assinaturas ilegais de menores e de forças policiais no Tribunal Constitucional. O que é muitíssimo grave. E vejo com muita preocupação a passividade institucional em relação a estes fenómenos. Isto é o que já deu errado em Itália e França. Assim a nossa sorte vai-se acabar.
Não nos esqueçamos que a senhora Le Pen foi pedir dinheiro à Rússia, muitos milhões de euros, para as suas campanhas, e recebeu, através de um falso banco na República Checa. Não nos esqueçamos que o senhor Salvini tem um acordo de financiamento com o Putin. Não nos esqueçamos que qualquer país que seja membro da União Europeia é um país que potências exteriores desejam desestabilizar. Acharmos que Portugal vive isolado do mundo e à margem das tendências internacionais nunca tem dado bom resultado.
E como é que Portugal pode combater isso?
Em relação à extrema-direita, Portugal tem de estar muito vigilante, não pode continuar a confiar na sorte. Temos de ser muito mais exigentes e radicalmente transparentes em todas as questões de formação de partidos e financiamento partidário e de campanhas se não queremos que um dia venhamos a chorar porque de repente a degradação do Estado de Direito e da democracia em Portugal se faz por dentro das instituições e aí, então, as coisas são muito mais difíceis de resolver.
*Pode ler a segunda parte desta entrevista aqui.
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