"Vão ser precisos quatro anos para festivais atingirem sucesso económico"
Dois anos depois, os festivais de verão estão de volta. A preparar o regresso do Primavera Sound, no Porto, o promotor do festival e diretor do Paredes de Coura, João Carvalho, é o entrevistado desta quarta-feira do Vozes ao Minuto.
© Notícias ao Minuto/Hélio Carvalho
Cultura Festivais de verão
Em 2020, um a um, os festivais de verão tomaram a difícil decisão de adiar os concertos para 2021. Um ano depois, a mesma história, à medida que a ânsia para voltar a realizar um festival crescia. Agora, depois de dois anos de pandemia, o NOS Primavera Sound abre a temporada dos grandes festivais de música e acolhe assim o regresso destes eventos.
Em entrevista ao Notícias ao Minuto, o promotor do Primavera Sound, João Carvalho, fala das dificuldades económicas em organizar um festival de música num clima de inflação, com dois anos de paragem obrigatória e sem lucros, e do otimismo em torno das vendas recorde de bilhetes gerais, do cartaz deste ano e da antecipação das pessoas em voltar à relva do Parque da Cidade do Porto.
O promotor, que é também diretor e fundador do Paredes de Coura, aborda ainda o festival minhoto e a decisão de criar um quinto dia de música, só com artistas portugueses.
Voltar a este ritmo normal depois de dois anos praticamente parados nem sempre é fácil
O Primavera Sound é o primeiro grande festival de verão após dois anos de pandemia. Como estão a correr os preparativos para o regresso? É como andar de bicicleta ou há mais dificuldades que o costume?
Estamos mais emperrados que o costume, depois de dois anos parados (risos). Um festival é sempre uma coisa muito intensa. São várias dezenas de empresas e centenas de pessoas a trabalhar, o telefone não para de tocar e, portanto, voltar a este ritmo normal depois de dois anos praticamente parados nem sempre é fácil. Mas vale-nos o entusiasmo de voltarmos a fazer aquilo que gostamos.
O grande desafio é fazer um festival que de repente já não tem nada a ver com o orçamento anterior. Esta área foi das mais prejudicadas, a cultura foi das áreas menos apoiadas. Nós não despedimos ninguém, mantivemos toda a estrutura e estar agora a fazer um festival, com orçamentos que sobem entre 20% a 30%, torna as coisas muito mais complicadas. Dois anos sem ganhar dinheiro, dois anos a ter despesas e, agora, quando regressamos, tudo mais caro. São 60 e tal empresas que trabalham nos festivais: o preço da gasolina aumentou, do ferro aumentou, da madeira aumentou, os cachês das bandas aumentaram, portanto os festivais são muito mais caros e nós não aumentamos o preço dos bilhetes.
Somos importantes na dinamização económica da cidade - enchemos hotéis, restaurantes -, e há obviamente uma boa expectativa em relação às vendas do Primavera Sound, mas temos essa dificuldade dos preços acrescidos. Fizemos caminho para ter sucesso, mas nem de perto nem de longe, sem apoios governamentais, será o ano ideal.
Mas temos um cartaz maravilhoso, com grandes nomes. Os passes gerais estão esgotados há algum tempo - há um dia, o dia 9, que também já esgotou [à data da entrevista, o dia 11 ainda não tinha esgotado] - e agora é montar o festival, que é um trabalho que está a ser feito há várias semanas. Fazê-lo o melhor possível, como sempre fizemos, e desfrutar dos concertos e pensar que este é um ano em que tudo vai correr normalmente e que as restrições que houveram em anos anteriores não voltarão a acontecer nos próximos anos. Isto é um processo gradual e, para os festivais atingirem um patamar de sucesso económico, vão ser precisos quatro ou cinco anos.
Acho que as pessoas estão ansiosas para se divertirem e desejam que os festivais cheguem o mais rapidamente possívelSendo o NOS Primavera Sound o primeiro dos grandes festivais a regressar, quão importante é abrir a época dos festivais de uma boa maneira?
É indiferente. Fazemos o Primavera Sound e o Paredes de Coura, e o Paredes de Coura está com as melhores vendas de sempre - é uma coisa recorrente, digo isto todos os anos, mas a verdade é que todos os anos aquele festival tem mais vendas que no ano anterior. Acho que as pessoas estão ansiosas para se divertirem, desejam que os festivais cheguem o mais rapidamente possível, mas ser o primeiro ou o último é indiferente, até porque temos o primeiro e um dos últimos. Em ambos os casos, as vendas estão a correr muito bem.
Tanto no Primavera como no Paredes de Coura, há mais nomes, ou, aliás, há uma estabilização da presença de artistas do mundo do hip-hop nos festivais de verão nos últimos anos. Esta é uma tendência que faz parte dos festivais tidos tradicionalmente como festivais de rock ou de alternativa?
Sim, o critério é: desde que tenha qualidade, tem espaço nos festivais. O hip-hop é um estilo musical que tem ganho imensa qualidade. Aliás, vais ver os artistas mais vendidos e que melhores espetáculos dão e, provavelmente, nos 10 primeiros, metade são de hip-hop. Portanto é uma tendência natural e, nos nossos festivais, o que tiver qualidade, cabe.
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Não é só no nosso, vais a qualquer festival, aos Coachellas desta vida, ao Lollapalooza, aos festivais mais 'indie' ou menos 'indie', e todos têm uma programação de hip-hop. É uma tendência natural, os tempos mudaram e também hoje faz-se cada vez menos rock. Cada vez se vendem menos guitarras, cada vez há menos bandas de rock, e portanto é normal que surjam mais desses estilos de música.
Qual é o concerto em vai mesmo desligar o telemóvel e focar em ver o espetáculo?
Tenho vários, mas o obrigatório é Nick Cave! Ainda hoje, é dos concertos mais marcantes que eu vi, em 2018, que foi absolutamente marcante. Até a chuva, que normalmente é uma chatice, foi abençoada e fazia parte do cenário, e veres 30 mil pessoas à chuva, onde as lágrimas se confundiam porque foi um concerto emocionante, esse é um concerto que não quero perder, obrigatoriamente.
E depois há uma série de coisas pequeninas que nunca vi e quero ver, porque sou uma pessoa que gosta da descoberta. Eu vou a qualquer festival e as bandas que eu prefiro ver são sempre as bandas mais pequenas, eu gosto de ser surpreendido.
Com os festivais cancelados durante dois anos, houve pessoas a pedir reembolsos dos bilhetes e dos passes gerais. No Primavera Sound, isso foi um opção adotada por muitos compradores e houve um impacto nesse sentido?
Não, não foram assim tantos, nós estávamos à espera que fossem mais. A ilação que eu faço é que as pessoas confiam que o cartaz do ano a seguir ia ser igualmente bom. Nós também estivemos empenhados em fazer um cartaz ainda melhor: saíram alguns nomes, mas acrescentamos outros e acho que o festival melhorou. Sei de alguns casos de pessoas que pediram o reembolso e que agora estão arrependidas porque querem comprar e os bilhetes esgotaram.
João Carvalho é um dos fundadores do Paredes de Coura, que em agosto terá a sua 28.ª edição© Notícias ao Minuto/Hélio Carvalho
Nós também temos esse respeito pelo público e sabíamos que, a partir do momento em que determinadas bandas cancelaram tournée, como Lana Del Rey ou outros artistas, e não viriam, tínhamos de os substituir por algo igualmente grande.
Se queres que eu seja honesto, prefiro muito mais o cartaz deste ano do que o anterior, que estava programado. Quer dizer, muitas bandas mantêm-se, mas estou muito mais feliz com o cartaz de agora.
A empresa foi apoiada financeiramente durante este interregno?
O que aconteceu este ano, além de viveres sem apoios governamentais - e tu tens casos como em Espanha e em outros países, onde há um voucher para a cultura, que foi mais uma vez esquecida -, em termos de subsídios não tem acontecido nada de mais, estamos insistentemente à espera mas não me parece que vá acontecer. Além disso, com a pandemia também perdeste alguns patrocínios, que é normal.
As empresas também passaram por dificuldades, também tiveram de cortar gorduras, e daí a dificuldade ser essa: fazer um festival de grandes dimensões, que contribui muito para o turismo e para a economia das cidades, fazê-lo com um cartaz mais caro, com menos patrocínios e sem aumentar o preço dos bilhetes.
Esse é o grande desafio.
Aproveitando a questão da economia das cidades para falar sobre Paredes de Coura. São universos diferentes: o Porto não é tão dependente do Primavera Sound, mas o Paredes de Coura tem um impacto muito maior na economia da vila. É natural de Paredes de Coura, portanto como é que a região aguentou estes dois anos sem festival?
Com muita dificuldades. Nestes 30 anos, eu vi abrir muitos cafés e restaurantes, e falei com muita gente que me dizia que o fez pela semana do festival. Nós fazemos o 'Sobe À Vila', que é garantia também de gente no comércio durante mais quatro dias, acrescentando aos cinco dias do festival.
Nós tentamos minorar o impacto, mesmo nós estando a passar também por isto. Fizemos pequenos apontamentos em Paredes de Coura, tanto em 2020 como em 2021. Comemoramos a data, foram milhares de pessoas a Coura que movimentaram o comércio local; depois fizemos o 'Courage', que foi muito importante no inverno.
Mas claro que é completamente diferente. Em Paredes de Coura, temos um comércio quase dependente do sucesso do festival e, sendo nós naturais de lá, apesar de termos uma dimensão nacional, obviamente que sentimos na pele as dificuldades daquelas pessoas que tão bem sabem receber.
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Já disse isto muitas vezes: Paredes de Coura é um milagre, porque é muito difícil fazer um festival fora dos grandes centros, e vai ser também um festival muito mais generoso porque, se no Primavera se sente esse aumento, imagina em Paredes de Coura, para o qual as empresas têm de se deslocar, com a gasolina mais cara e mão de obra mais cara. Tudo encareceu, e Paredes de Coura será igualmente difícil de erguer nesta edição.
Ainda por cima, também investimos mais no cartaz, quisemos dar o nosso contributo à música portuguesa por ser a nossa forma de estar na vida, não há aqui nenhuma medida de marketing, há apenas a nossa preocupação. E quando falamos da ajuda às bandas, temos de falar sobre quem trabalha com as bandas, dos 'runners', dos técnicos de som, portanto achamos que devíamos dar o nosso contributo para a música, e estamo-nos um bocado a substituir ao que devia fazer o Estado.
Fizemos esse dia de música portuguesa, com 20 e tal bandas, sem aumentar o preço do bilhete, com um dia extra de festival, com custos enormes, com infraestruturas, cachês, palcos, recursos humanos, segurança, catering, bilhética, som, luz, e temos um festival muito mais caro em Paredes de Coura. Tentaremos fazer com que toda a gente se divirta e, nesse contentamento, que sobre alguma alegria para nós, para continuarmos a sentir entusiasmo!
Quisemos dar o nosso contributo à música portuguesa por ser a nossa forma de estar na vida; não há aqui nenhuma medida de marketing, há apenas a nossa preocupaçãoEsse aumento dos custos dos bens essenciais e da inflação também afeta diretamente as pessoas, os consumidores, na sua vida quotidiana. Apesar de tudo, houve alguma tentação de subir o preço dos bilhetes tendo em conta as dificuldades no setor da cultura?
A tentação há sempre, mas depois pensas nas pessoas e nós somos pessoas que gostamos de música, que vamos a eventos, que sabemos as dificuldades, sabemos que muitas delas ficaram dois anos sem trabalho, portanto achamos que não era a melhor altura para aumentar o preço dos bilhetes.
Embora te diga que Portugal continua a ser dos países do mundo com os bilhetes mais baratos. Por muito que as pessoas se queixem que os festivais são caros, a verdade é que não são. No outro dia estive a fazer contas, e uma banda em Coura fica por poucos euros, se fores a distribuir o preço do bilhete pelo número de bandas [o bilhete geral custa 120 euros e foram confirmados 62 nomes].
Em qualquer festival na Europa, o bilhete tem um preço de 250, 350, até 500 euros; temos agora o caso de festivais na América Latina, vais ver os preços e são 400 euros; vais aos Estados Unidos e os bilhetes custam 500 dólares; vais a Inglaterra e custam 350 libras... Nós continuamos com estes preços baratos, com poucos patrocinadores e sem apoios do Estado, que eu acho que são essenciais.
No comunicado em que anunciaram o adiamento do Primavera Sound de 2021 para 2022, escreveram: "Ficamos a dever-vos a melhor edição, grandiosa e inesquecível como será a de 2022". Acha que a dívida ficará saldada?
Eu acho, e a prova provada é que os bilhetes esgotaram mais cedo do que em qualquer outro ano, os passes gerais esgotaram há mais de um mês. Eu acho que sim, que é das melhores edições de sempre, senão mesmo a melhor edição de sempre. Acho que saldamos essa dívida com o nosso público.
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