"Quando o futebol acaba, não acaba o mundo. Mas acaba muita coisa"
Em entrevista exclusiva ao Desporto ao Minuto, Gaizka Mendieta dá a conhecer a Player4Player, um projeto que tem como objetivo garantir uma transição tranquila aos jogadores que se preparam para 'pendurar as chuteiras', e que tem o 'dedo' do português Pedro Pinto, antigo diretor de comunicação da UEFA.
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Desporto Exclusivo
O que é que um jogador faz quando termina a carreira? Estará preparado para o mundo pós-futebol? E será que tem uma "almofada" suficientemente confortável para que esta transição seja feita sem percalços? Foi para responder a questões como estas que nasceu a Player4Player, um projeto com o 'dedo' de Pedro Pinto, antigo diretor de comunicação da UEFA, e formado por um 'plantel' invejável.
Dele fazem parte os antigos jogadores Emile Heskey, Stiliyan Petrov, Gareth Farrelly, Michael Johnson e Gaizka Mendieta. E foi, precisamente, junto deste último que o Desporto ao Minuto procurou conhecer um pouco mais sobre a importância desta iniciativa, que conta ainda com poucos meses de existência.
O ex-internacional espanhol passou por 'colossos' como Valencia, Barcelona ou Lazio, e quer usar alguma dessa experiência para fazer a diferença num mundo do futebol rico em "pessoas jovens, com dinheiro, o que atrai muitos interesses que nem sempre vão ao encontro dos do jogador".
O antigo médio, agora com 46 anos, assume que a sua própria transição de final de carreira não correu da melhor maneira e aborda o papel dos empresários que, não esconde, muitas vezes deixa a desejar do ponto de vista do bem-estar dos atletas. Tudo isto sem esquecer, claro está, a atual situação do Valencia, clube que representou entre 1992 e 2001.
Na Premier League, entre 30 a 40% dos jogadores retirados, dentro de cinco anos, estão na falência
Como surgiu a ideia de se juntarem cinco jogadores para criar um projeto como este?
Nasceu a partir do Mestrado da UEFA que fizemos os quatro e que o Emile [Heskey] está a fazer agora. Durante este período de tempo, pensámos em como melhorar o futebol, em como devolver aquilo que nos deu. Havia muitos temas comuns, sendo este um deles. Eu, o Stiliyan [Petrov], o Michael Johnson e o Gareth [Farrelly] discutimos a ideia e contactámos o Emile. Demo-nos conta de que, no mundo do futebol, há muitas empresas que se dedicam a fazer muitas coisas, mas, na verdade, não há nenhuma que ataque este tema. Sobretudo, da transição de jogador para ex-jogador. Foi algo que sentimos na pele e em que tínhamos muito interesse.
Tentámos a perceber como é que, com a nossa experiência, com diferentes origens, vivências dentro e fora de campo e formas de lidar com a carreira e o pós-carreira, poderíamos ajudar os jogadores atuais. Pensámos se conseguiríamos criar uma empresa que se dedicasse a isso. Todos temos uma reputação no mundo do futebol, por aquilo que fomos enquanto jogadores e no pós-carreira. Acreditámos que seria importante num mundo, que, como sabe, é fechado, um pouco hermético a pessoas de fora. Queríamos que as pessoas confiassem nos profissionais, porque o futebol tem sempre pessoas jovens, com dinheiro, o que atrai muitos interesses que nem sempre vão ao encontro dos do jogador.
Como explicaria, sucintamente, este projeto?
É um serviço de 100% de confiança, de profissionais com especialidade. O objetivo é ajudar do ponto de vista legal, de educação, do ‘branding’. Aquilo que rodeia o jogador, mas que tem que ser fomentado. Queremos, também, pensar na pessoa em si. Por vezes, um jogador muda de país e tem problemas com impostos, porque não teve gente ao seu lado que o tenha sabido aconselhar. Quando parte para um país, o ideal é ter aprendido o idioma antes, que saiba onde vai viver, que conheça as escolas… Todo o tipo de coisas que, de uma maneira ou de outra, afetam o bem-estar do jogador, e que o podem impedir de se dedicar a 100% a jogar. O jogador tem que saber que tudo aquilo que o rodeia está em boas mãos. Tem que saber que, quando chegar o momento de pendurar as chuteiras, fez investimentos e juntou algum dinheiro para ele próprio. Isso permite ao jogador abordar o futebol de forma mais tranquila. Quando o futebol acaba, não acaba o mundo, mas acaba muita coisa. Especialmente as receitas. Por isso, o jogador tem de ter a tranquilidade de pensar ‘Tenho aqui uma segurança que me vai permitir explorar certas profissões, para decidir o que quero fazer’.
Pessoalmente, o que traz para este projeto?
Todos trazemos mais ou menos o mesmo. Temos dois ingleses, um irlandês, um búlgaro e um espanhol. Todos acrescentamos a nossa experiência. De uma maneira ou outra, temos muito em comum, porque, no final, no futebol, todos temos os mesmos objetivos, os mesmos problemas e as mesmas dificuldades. A minha experiência é de ter jogado em diferentes países, o que me obrigou a adaptar a diferentes tipos de futebol e culturas. Talvez não tenha sabido perceber que, em cada uma dessas experiências, poderia ter investido de outra maneira. Não o fiz, apenas investi em Espanha e Inglaterra. São coisas que alguém com experiência poderá ajudar. O Stylian tem a experiência incrível de ter superado um cancro. O Garreth é advogado. O Michael é treinador, acabou o curso e está a trabalhar na seleção sub-21 inglesa. No meu caso, talvez me tenha dedicado mais a investir em diferentes coisas, desde restaurantes a ser DJ. Com estas experiências juntas, abarcamos 85% das coisas que um jogador pode precisar durante a carreira. Nesse sentido, temos bastante confiança de que podemos ajudar um jogador que trabalhe connosco a que seja ainda melhor.
Quem precisa de mais aconselhamento e ajuda? Um jogador que esteja a começar a carreira ou um que esteja a terminá-la?
Do ponto de vista do tempo, sem dúvida aquele que está a terminar a carreira. Veem que a carreira está a chegar ao fim e talvez não tenham planeado o passo seguinte. Isso pode criar ansiedade e problemas. Para um jovem, quanto mais cedo começar a planear, melhor, porque pode começar a gerir a imagem, os negócios em que investir, os países que podem interessar… Quando pensamos num jogador, pensamos num multimilionário, mas desses há poucos. Há muitos mais que não ganham milhões, onde esse stress e pressão é muito maior. Tiveram menos receitas e têm de começar a pensar nisso muito antes. Devem tentar descobrir aquilo de que gostam. Se querem ser treinadores, comentadores, dirigentes, empresários, investidores… Isso passou-se com todos nós.
Eu, quando terminei a carreira, tinha, felizmente, uns negócios que me permitiram continuar com a vida que tinha quando tinha trabalho assegurado. Mas não sabia o que queria fazer. Passados três anos, quando comecei a trabalhar na comunicação social, não estava preparado. Não tinha o vocabulário, a forma de falar, de me comportar na televisão. São coisas que é preciso aprender para quem quer trabalhar nessa indústria. Todos nós tirámos o curso de treinador quatro, cinco ou seis anos mais tarde do que devíamos. Tirámos o mestrado seis, sete ou oito anos mais tarde do que devíamos. Se todos o fizessem antes, muitos mais jogadores que se retiraram poderiam fazê-lo com mais tranquilidade. Ter-se-ião evitado muitas tragédias e problemas que esta falta de planeamento provoca a muitas pessoas. Na Premier League, entre 30 a 40% dos jogadores retirados, dentro de cinco anos, estão na falência. Não têm dinheiro para sobreviver. É uma percentagem muito alta, e na NBA e na NFL é ainda maior.
Sentiu, durante a carreira, a falta de uma ajuda deste género?
Sim, sem dúvida. Talvez não quando era jogador, mas sim. Um tema muito presente nesta geração são as redes sociais. Hoje em dia, as redes sociais são fundamentais para muitas coisas, podem abrir-te muitas portas. Como jogador, a nossa geração viu o início disso, Eu poderia ter tirado muito mais proveito disso. Também é preciso ter atenção aos investimentos. Tive a sorte de a minha mãe ser uma empresária com conhecimentos de tudo isso, e ajudou-me muito. O meu pai foi jogador, pelo que tive a sorte de ter uma orientação nos dois sentidos. Mas é claro que a ajuda de um profissional ter-me-ia facilitado muito na planificação financeira.
Um jogador quer continuar, pensa que pode continuar, mas não há ofertas. O futebol rejeita-te, e tive de o aceitar
Recorda-se do momento em que teve a noção de que a carreira estaria a terminar, pelo que teria de pensar noutros projetos?
No meu caso, infelizmente, vi esse momento a chegar. Não planifiquei a minha segunda etapa, mas vi-a a chegar. Fui-me preparando mentalmente para esse momento. Optei por não sair para jogar noutros lugares onde poderia ter jogado, mas não me preparei para o que viria depois. Nunca pensei trabalhar no âmbito mediático, e foi a primeira coisa que fiz. Um jogador quer continuar, pensa que pode continuar, mas não há ofertas. O futebol rejeita-te, e tive de o aceitar. Mentalmente, passamos de estar no foco mediático por tudo o que dizemos e fazemos para, quando não somos jogadores, perdermos essa importância. Aceitar que aquilo que dizes não tem repercussão também é muito duro. De repente, a atenção que temos, por sermos jogadores, desaparece.
E lembra-se do que fez no dia imediatamente a seguir a terminar a carreira de jogador?
Exatamente não. Mas lembro-me que, ao início, tinha uma sensação boa, porque foi uma decisão minha. De repente, tinha tempo para me dedicar à família, aos amigos, a viajar… Tinha essa sensação de alegria, mas, ao mesmo tempo, não sabia o que ia fazer depois. Sabia que, durante um tempo, podia não fazer nada, porque tinha feito investimentos e poupanças. Tinha uma boa almofada, mas, ao mesmo tempo, pensava no que iria fazer a seguir. É uma espécie de batalha psicológica entre fazer o que queria fazer, e não saber o que vinha a seguir. Jamais pensei que trabalharia na imprensa, mas foi o que aconteceu, e surpreendeu-me. Mas, ao início, distanciei-me do mundo do futebol. Durante uns seis meses não vi um único jogo. Não queria nada disso. Se me tivessem perguntado o que se estava a passar com uma equipa, não sabia. E depois tive o ressalto [risos]. Agora, vejo mais jogos de jovens, futebol feminino e masculino do que quando jogava.
Mas o que sentia nessa altura de indefinição? Era medo? Ansiedade?
Ansiedade não, porque tive a sorte de ter quem me ajudasse a tomar essa decisão e de encontrar algo rapidamente. Mas conheço situações em que isso cria ansiedade e stress. As pessoas pensam sempre no jogador de topo, que ganha milhões por ano, mas há jogadores que não ganham, sequer, um milhão por ano, e que, no dia a seguir a retirarem-se, ainda estão a pensar no que vão fazer. Não têm carreira nem estudos. Conheço situações de jogadores que assumiram o negócio familiar. Aprendem a caminhar caminhando, trabalham em algo que não conhecem, mas é a primeira oportunidade que têm. Uns viraram treinadores ou trabalharam nas academias com os jovens, mas outros não têm nada.
E com que idade é que esse planeamento deve começar a ser feito?
O quanto antes. Hoje em dia é muito difícil, porque, se perguntar a um jogador quando é que se vai retirar, há muito poucos que o sabem. Os jogadores acreditam sempre que podem jogar por toda a vida. Mas a verdade é que, quando chegam aos 30, já estão na última etapa. Há jogadores que jogam até aos 38 ou 40 anos, mas são poucos. A partir dos 30, é uma boa altura para começar a pensar ‘Bem, tenho mais cinco anos, resta-me um bom contrato, ou talvez dois’. E, com esse dinheiro, é possível construir algo que te traga tranquilidade. Mesmo se quiser ser treinador. Se o jogador tiver sido internacional, consegue o curso em três ou cinco anos, caso contrário demora mais. Por isso até nesses casos é preciso começar a pensar com cinco ou seis anos de antecedência.
Viver com aquilo que se ganhou enquanto treinador é só para os Ronaldos e os Messis?
Sim, há poucos mais. Sempre me ensinaram usando uma régua. Durante quantos anos vais viver? 80? Há jogadores que aos 16 anos já são profissionais, por isso vamos descontar os 15 primeiros anos de vida. Agora acrescentemos dez anos enquanto profissionais. Essa curta medida, comparada aos anos de vida que te restam, não é nada. Quanto terias de ganhar para que o dinheiro te dure 60 anos? É muito dinheiro. Não temos a consciência de que a segunda etapa é muito maior e mais importante do que a primeira. Se não perceberes de marketing, de investimentos, de liderança ou de recursos humanos porque não estudaste, isso não te serve de nada. Entras num mundo laboral para o qual não estás preparado. Aquilo que aprendeste enquanto jogador pode ajudar-te a dar boas palestras, mas de resto não vai ser fácil encontrar um bom trabalho.
Num mundo em que os jovens jogadores recebem cada vez mais dinheiro, é fácil explicar-lhes quão importante é esse planeamento?
É muito difícil. E isso passou-se comigo. Lembro-me que, quando estava no Valencia, vinham pessoas falar-nos do quão importante era ter um seguro, para o caso de termos uma lesão. Eu considero que era bastante responsável, mas não tinha consciência. Por isso é que criámos a Player4Player. Não queremos que o jogador perceba, porque sabemos que isso é muito difícil. O que queremos é que alguém que o rodeie, neste caso a Player4Player, tenha esse trabalho. Para que, quando ele tiver 40 anos, poder dizer ‘Eles tinham razão’. Quando és um jovem jogador, pensas que vais envelhecer, ter filhos, formar família, mas não tens a consciência do que isso significa. Vais precisar de ter dinheiro ao fim do mês para pagar a universidade, os médicos, a roupa, o carro, o seguro do carro… São coisas que existem, mas que, enquanto jogador, não quantificas. Queres um carro e dizes ‘Quero aquele carro. Mas acrescenta as jantes’. Isto porque tens muito dinheiro, mas não tens consciência das consequências. E é importante que esse aconselhamento venha de jogadores que passaram pelo mesmo, que saibam do que falam.
Esse trabalho de olhar pelo bem dos jogadores não deveria também passar um pouco pelos empresários?
Alguns fazem-no, mas são muito poucos. No geral, estão mais preocupados em conseguir um bom contrato, que renove para receber mais dinheiro. Porque cada vez que se renova, eles ganham uma comissão. Cada vez que se muda de equipa, eles ganham uma comissão. É normal que queiram ganhar dinheiro, porque sabem que o jogador vai-lhes durar uns cinco ou dez anos. Não estão tão concentrados no bem-estar dos jogadores ou que se eduquem para ter essa tranquilidade. Há muito poucos empresários que olham para um jogador e pensam ‘O que tenho que fazer para que dure muito?’. É aí que entra a Player4Player. Aconselham-no bem, tratam-lhe da imagem, das redes sociais, do marketing, arranjam um cozinheiro para que coma bem… Isto para que, em vez de durar até aos 32 anos, dure até aos 38. Mais seis anos são mais dois contratos. Mas o geral é pensar em usar o jogador durante oito anos no topo até que rebente. O conceito deveria ser o contrário, fazer com que dure mais tempo e que, quando terminar a carreira, tenha quatro marcas para ser embaixador, uma direção de um clube que o queira… Aí, estás a tratar da carreira, não só do jogador, como também da pessoa. Em vez de uma carreira de oito, dez ou doze anos, garantes uma de 30. Há mil carreiras em que um jogador pode render, mas a mentalidade tem que mudar.
Gaizka Mendieta ao serviço do Valencia© Getty Images
Custa-me ver o Valencia numa situação de instabilidade, insegurança…
Como tem acompanhado a situação que vive o Valencia?
Com um pouco de pena. Custa-me ver o Valencia numa situação de instabilidade, insegurança… Não é ideal para um clube com tanta história. Claro que gostava de ver o Valencia lá em cima, a jogar a Liga dos Campeões e a lutar por títulos, mas, infelizmente, não é o caso. Estamos a ver um clube que vende jogadores continuamente, que não tem projeto nem ideia de futuro. Não se sabe se o dono atual quer vender o clube ou não. Isso causa uma grande insegurança, desde os adeptos até aos próprios jogadores e treinadores. O clube não está onde deveria estar.
Podemos encarar como um aviso para outros clubes que se possam deixar ‘seduzir’ por investidores com muito dinheiro?
Tem de se encontrar uma forma de garantir que quem quer investir num clube seja investigado com profundidade, para assegurar que tem uma ideia de futuro para beneficiar o clube e a cidade. Quem compra um clube tem que ter um projeto. O Valencia teve-o numa certa etapa, em que teve um treinador, um diretor desportivo e uma identidade. Nesse período, jogou na Liga dos Campeões e conquistou a Taça do Rei. Quando se trabalha assim, o futebol dá frutos. Não conhecemos os planos do dono, mas quando se especula tanto não é bom.
Consegue vislumbrar uma solução para a situação do Valencia?
Pela minha experiência e pelo que sei, era necessário alguém no clube com um projeto. O futebol também é negócio, mas há que ter um plano económico e financeiro e conjugá-lo com o desportivo. Há um orçamento e tem que se construir uma equipa com o que há. E, se não há dinheiro, que se jogue com os jogadores das camadas jovens, com um treinador adequado a essa ideia. O Valencia sempre teve sucesso na formação de jogadores. Deve trabalhar-se nessa linha para que surja um equilíbrio económico e desportivo. Acima de tudo, importa ter uma ideia e dizer ‘Durante dois ou três anos, o clube vai ser isto’. É importante informar e comunicar.
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