II Guerra Mundial: "Condições externas ajudaram Salazar a manter o poder"
O entrevistado de hoje do Vozes ao Minuto é Arnaldo Madureira, que escreveu um novo livro sobre o Estado Novo, desta vez debruçando-se sobre o período da Segunda Guerra Mundial.
© Arnaldo Madureira
País Arnaldo Madureira
O professor universitário Arnaldo Madureira é um dos maiores investigadores sobre o período do Estado Novo. Autor de vários livros sobre o regime que vigorou em Portugal de 1933 até 1974, Arnaldo Madureira voltou a escrever um livro sobre o Estado Novo, mas sob uma nova perspetiva.
Em 'Salazar e a II Guerra Mundial', Madureira foca-se na forma como António de Oliveira Salazar geriu os efeitos do conflito, equilibrou os diferentes interesses das forças beligerantes e resistiu à crescente oposição interna à medida que a Segunda Guerra Mundial se aproximava do fim.
Nesta entrevista ao Notícias ao Minuto, o autor aborda alguns dos pontos essenciais desta obra, como, por exemplo, a neutralidade portuguesa, a importância estratégica dos Açores e a questão do volfrâmio, um minério muito cobiçado pelas nações envolvidas na guerra.
Arnaldo Madureira incide ainda luz sobre a forma como Salazar e o Estado Novo sobreviveram ao conflito, quando a Segunda Guerra Mundial terminou e o mundo caminhou para a Guerra Fria.
'Salazar e a II Guerra Mundial' foi publicado no passado mês de maio e é um livro com a chancela da editora Clube do Autor.
Qual era o panorama em Portugal antes da Segunda Guerra Mundial?
Um ano antes do início da Segunda Guerra Mundial o governo não a previa. Inclusivamente, o governo constituiu uma série de comissões que iam preparar e executar as célebres Comemorações Centenárias que se realizariam em todo o território nacional, isto incluía as ilhas adjacentes e as colónias em África. Preparou-as de tal maneira, que o objetivo era trazer o maior número possível de visitantes estrangeiros ao país.
Mas quatro meses antes, em maio, num discurso Oliveira Salazar informava a nação de que o país em caso de conflito se manteria neutral, indicando até três razões. Uma dessas razões era o facto de Portugal não ter qualquer contencioso com qualquer nação. Não disse, e isso era uma das suas preocupações, é que se Portugal se envolvesse no conflito dificilmente o regime sobreviveria.
Portanto, é este quadro em que ele projeta grandes realizações e quer trazer o maior número de estrangeiros ao país, para mostrar como o regime o tinha desenvolvido, que precede o início da Segunda Guerra Mundial.
A partir de certa altura, as partes litigantes na guerra pagam qualquer preço para ter o volfrâmioSalazar resistiu e protelou até onde pôde, mas a dada altura teve de ceder os Açores aos Aliados. Pode-se dizer que tentou adiar ao máximo o inevitável?
A questão dos Açores esteve em cima da mesa desde o início. Por um lado, porque a determinada altura se pensou que os alemães invadiriam os Açores e Cabo Verde para os tomar. E se isso tivesse acontecido, naquela ocasião os ingleses não teriam qualquer necessidade de nos vir ajudar. Em segundo lugar, Salazar também sabia que os Estados Unidos durante a Primeira Guerra Mundial chegaram a equacionar a possibilidade de ocuparem os Açores. Por último, havia a própria pressão inglesa.
Relativamente às questões das ilhas e de Cabo Verde, Salazar teve sempre presente que em qualquer momento esse facto podia ter-se verificado. Pode-se dizer que a política externa ocupou a maior parte do tempo que ele tinha disponível, e Salazar conseguiu protelar o máximo que podia essa ocupação. Os ingleses só o conseguem ‘convencer’ (ele já não tinha qualquer alternativa) quando já não havia possibilidade de os alemães retaliarem.
Outro dos pontos em que Portugal ganhou protagonismo na Segunda Guerra Mundial foi devido ao volfrâmio. Que importância teve a exportação deste minério no decurso do conflito?
É curioso que logo que a guerra se inicia, o executivo toma um conjunto de medidas tendo em atenção o que aprenderam relativamente ao conflito anterior, que tinha terminado 21 anos antes. Logo em setembro de 1939, o governo decreta que a exportação de volfrâmio ficava sujeita a uma licença prévia, e em novembro aprova o plano geral mineiro, cuja intenção era controlar a exportação de volfrâmio.
Mas as intenções são uma coisa e a realidade outra. A verdade é que rapidamente a procura pelo volfrâmio é tal, que ultrapassa todas as expetativas. No Centro e no Norte do país há populações que abandonam completamente os trabalhos rurais e dedicam-se a esgravatar a terra à procura do volfrâmio, na convicção de que assim enriqueceriam. Há situações como a dos célebres ‘pilhas’, que eram indivíduos a quem os proprietários das terras onde estavam as minas permitiam que procurassem o minério, sob a condição de venderem o que encontrassem aos proprietários pelo preço combinado. E há tal pressão na procura do volfrâmio, que às tantas eles não respeitam os acordos, e há motins. Nos portos há constantemente roubos. Há um contrabando de volfrâmio na fronteira com Espanha que assume contornos impressionantes, e há mesmo pessoas bem posicionadas na vida que entram nestes negócios escuros do volfrâmio. A partir de certa altura, as partes litigantes na guerra pagam qualquer preço para ter o volfrâmio.
Se este negócio enriqueceu uns quantos, também conduziu ao empobrecimento de muitos. Repare que numa altura em que o governo lutava com uma falta louca de bens alimentares para a sua população, uma parte dela resolveu não trabalhar no campo.
Os ingleses portaram-se muito mal connosco. Connosco e com os outros países neutrais
Como descreve a gestão da neutralidade que Salazar fez tendo em conta os interesses ingleses e alemães?
A questão da neutralidade é uma questão que se espalha a todos os campos. Logo que a guerra se inicia o país declara uma neutralidade colaborante, pois alega que tem aliança inglesa e que é possível, em alguns casos, resvalar para a posição inglesa. Nessa questão, o governo, inclusivamente logo no início do conflito, dá ordens à censura para que não deixe os jornais se inclinarem mais para um lado do que para o outro. Se Portugal era neutral, as notícias que deviam sair nos jornais deviam contemplar os dois lados. O governo tentou combater a propaganda alemã e a propaganda dita aliada que se verifica no país.
Aliás, a questão do volfrâmio de certa maneira aparece ligada à espionagem, em que o país era o centro da espionagem mundial e o governo é incapaz de a combater com sucesso. Ouvimos falar muito da espionagem nos hotéis, e no Hotel Palácio no Estoril, mas a espionagem que abrange o país é muito mais do que isso. Por exemplo, as partes beligerantes contratam desempregados, principalmente se sabiam inglês, para andarem pelos cais a conversarem e a tentarem obter informações. Há legionários que trabalham para os ingleses, outros para os alemães, alguns para ambos os lados.
O mais recente livro de Arnaldo Madureira ajuda a compreender como Portugal geriu os diferentes interesses das partes envolvidas no conflito© Clube do Autor/Facebook
Embora Portugal tenha mantido a neutralidade, não escapou às consequências económicas que o conflito teve. De uma forma geral, que impacto teve a Segunda Guerra Mundial na economia portuguesa?
Os ingleses portaram-se muito mal connosco. Connosco e com os outros países neutrais. Assim que a guerra se iniciou, os ingleses lançaram os chamados navicerts, que nada mais eram do que um certificado de origem que os ingleses tinham que passar. Por exemplo, Portugal precisava de uma certa quantidade de petróleo, carvão, o que quer que fosse. Indicava a quantidade e os ingleses diminuíam substancialmente a parte que deixavam entrar. Como naquela altura era pelo mar que as coisas vinham, a via ferroviária praticamente não funcionava, a economia do país estava muito dependente daquilo que os ingleses quisessem. Houve alturas em que as fábricas pararam porque as matérias-primas não chegaram ou não chegaram em quantidade suficiente porque os ingleses não quiseram. Inicialmente, a marinha francesa aliou-se aos ingleses, e desviava barcos nossos para os portos franceses e só os deixava sair depois de descarregarem parte da carga.
Portanto, o país começou-se a debater com um desemprego cada vez maior, com falta de matérias-primas e com a escassez de bens alimentares, porque havia este controlo que os ingleses faziam pelos mares. Os navicerts só terminaram quase dois anos depois do fim da Segunda Guerra Mundial. Os ingleses faziam isto porque tinham medo de ser enganados nas quantidades dos produtos que os países indicavam e que esse excesso fosse para os alemães. E como eles procuravam estrangular a economia alemã, subjugavam os países neutrais desta maneira.
Uma das primeiras medidas que o governo de Salazar tomou na Segunda Guerra Mundial foi relativamente ao açambarcamento e à especulação. O governo sabia que durante a Primeira Guerra Mundial a falta de bens tinha originado assaltos a estabelecimentos e motins, e logo no início da Segunda Guerra Mundial aprova uma legislação muito precisa de combate ao açambarcamento e à especulação. Mas uma coisa é legislar e outra coisa é a realidade. Todos esses comerciantes e armazenistas procuravam especular para ganhar cada vez mais dinheiro ou açambarcar os bens, não os colocando no mercado. O executivo cria em todos os distritos brigadas especiais da polícia para combater isso, toma medidas muito energéticas. Um comerciante que fosse apanhado via os seus bens serem imediatamente apreendidos.
O governo para controlar bem os preços decreta o preço tabelado, ou seja era tabelado um preço máximo que de tempos a tempos era corrigido ou não. Até quando vem o 25 de Abril havia um conjunto de preços tabelados. Um café tinha o mesmo preço em qualquer estabelecimento.
Como é que o governo de Salazar combateu o contrabando?
Ainda havia o problema do contrabando. O contrabando que se dirigia para Espanha e o contrabando que se dirigia para Gibraltar, onde pagavam muito melhor. Para combater o contrabando, as brigadas especiais vão às grandes estações para ver o que as pessoas trazem, verificavam o que as camionetas transportavam. Obrigatoriamente quando uma pessoa transportava algo de um sítio para outro tinha de levar uma guia consigo a justificar porque levava aquela quantidade. Chegou ao ponto de se criar uma linha imaginária nos concelhos fronteiriços em que era indicado aos habitantes dessas populações os locais onde se podiam abastecer e as quantidades que podiam levar. Sempre que alguém desses concelhos fronteiriços era apanhado com uma quantidade maior, esse extra era considerado como sendo para contrabando e essa pessoa era punida.
Para as grandes nações, nomeadamente os Estados Unidos, Salazar é fundamental, porque Portugal não podia cair no que estavam a assistir noutros países. As condições externas vão ajudar e muito Salazar a manter-se no poder
Ao mesmo tempo, Salazar teve de gerir a oposição interna, que aumentou com o aproximar do fim da guerra e uma eventual situação que permitisse a mudança de regime. No entanto, a sua imagem internacional permaneceu inalterada.
À medida que internamente a imagem dele vai-se degradando, o externamente o prestígio dele é cada vez maior. Repare que, salvo um erro foi em 1942 ou 43, veio cá uma representação inglesa para lhe atribuir o doutoramento honoris causa. Nesse período, Salazar recebe um número de condecorações tão elevado que eu não sei se alguma vez houve um governante português que fosse condecorado dessa maneira. Os ingleses e os americanos reconhecem o trabalho dele. Esta gestão do conflito que ele teve é uma coisa notável.
Enquanto que em Portugal é frisante para muita gente que ele não vai sobreviver, há até muita gente dentro do regime que acha que ele deve ser afastado, externamente mantém o seu prestígio. Ele acaba a guerra a fazer parte do lado vencedor, não do lado vencido. Porque ao fim e ao cabo no final da guerra ele fez tudo aquilo que os ingleses e os americanos queriam. Agora, a questão que se pode colocar é porque é que ele está tão fragilizado e não cai.
Caminhamos para um novo confronto de Guerra Fria mas com novos atores e abarcando outros objetivos e instrumentos
Mas para isso também contribuiu o facto de que após a Segunda Guerra Mundial começamos a entrar naquele período de quase Guerra Fria e existe o receio entre as potências aliadas de que Portugal se torne um regime comunista, estalinista.
Exatamente. Há razões externas e internas para Salazar não cair. Em primeiro lugar, há o mérito de Salazar que consegue dar a volta por cima. Ele prepara eleições que no fundo servem para ficar tudo na mesma, mas dizendo que vai haver tanta liberdade como havia em Inglaterra. Há uma habilidade dele para se adaptar. Em segundo lugar, há a desunião das oposições. Seja como for, até 1947 há todas as condições militares para derrubar Salazar. Mas há muitas hesitações, muitos avanços e recuos, e a polícia política começa a fazer umas detenções e faz desmoronar aquilo.
Por último, há as condições externas. Rapidamente se avança para a Guerra Fria. Os Aliados, incluindo a União Soviética, estão unidos com um objetivo que é derrotar Hitler. A partir do momento que esse objetivo é atingido eles passam a estar divididos por ideias e modelos económicos opostos, e entra-se rapidamente na Guerra Fria. Quando isso acontece, para as grandes nações, nomeadamente os Estados Unidos, o Salazar é fundamental, porque Portugal não podia cair no que eles estavam a assistir noutros países. Portanto, as condições externas vão ajudar e muito Salazar a manter-se no poder.
Deixe-me só acrescentar uma coisa. Com todas as carências, com todos estes problemas, a sensação que se tem é que o país está em festa. Permanentemente em festa. São as festas religiosas em número incomparavelmente superior ao que há hoje, são os inúmeros clubes populares que aproveitam todas as ocasiões para fazer festas. O número de bandas de música naquela altura era assustador.
Atualmente, fala-se muitas vezes numa possível nova Guerra Fria entre os Estados Unidos e a China. De que forma é que podemos encontrar paralelismos com aquele período entre o pós-Segunda Guerra Mundial e a Guerra Fria?
Penso que sim, que podemos encontrar. Pode-se estabelecer um paralelismo muito grande em vários cenários. Em primeiro lugar, tal como sucedeu a seguir à Segunda Guerra Mundial a Europa está a perder o papel que teve. Quer dizer, quando acabou a Segunda Guerra Mundial a Europa estava de rastos e, ao contrário do que acontece agora, vivia-se extremamente mal, mas a Europa recuperou e veio a ter um grande papel no mundo, uma voz para ser ouvida. Hoje em dia, cada vez mais a Europa está a perder o seu lugar. Aquilo que Erdogan fez a Ursula von der Leyen só é possível porque a Europa já é vista como um ator menor. Eu não sei se o Reino Unido não foi a ponta do icebergue e se a Europa não se vai lentamente desagregar.
Em segundo lugar, nós caminhamos para um novo confronto de Guerra Fria mas com novos atores e abarcando outros objetivos e instrumentos. O mundo que sai da Segunda Guerra Mundial é um mundo desenhado pelos americanos. São as instituições, como a Organização das Nações Unidas (ONU), que são preparadas antes da guerra, são as descolonizações que também são preparadas antes da guerra. Durante muitos anos, os Estados Unidos foram a grande figura. E eles estão a perder peso no contexto internacional. Essa perda de peso nota-se ao nível do comércio onde os chineses vão ganhando cada vez mais posições, e nota-se ao nível da geoestratégia, onde a China vai conquistando cada vez mais posições e os russos não as querem perder. É preciso não perder de vista que a Rússia, não tendo o poder e o desenvolvimento que a China está a ter, têm meios militares à sua disposição e constantemente estão a mostrar que estão dispostos a usá-los. A estratégia do Putin em relação à Crimeia foi exatamente igual à que o Hitler fez em relação à Checoslováquia e à Polónia.
Portanto, neste momento a questão que se põe é se os Estados Unidos estarão em condições de responder aos chineses de um ponto de vista económico. Atualmente, não é possível qualquer nação ter ambições económicas se não tiver uma força armada, e os chineses estão a apostar enormemente nas suas forças armadas, estão a desenvolvê-las de uma forma notável. Porque não basta ter razão, é preciso ter meios para impor a razão. Vou ser franco, começo a ter algumas dúvidas se os americanos vão conseguir vencer a parada.
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