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"Hoje em dia, qualquer cão e gato pode ser encarregado de educação"

O Presidente da Associação Nacional de Diretores de Agrupamentos e Escolas, Filinto Lima, é o entrevistado de hoje do Vozes ao Minuto, a poucas semanas do início do novo ano letivo.

"Hoje em dia, qualquer cão e gato pode ser encarregado de educação"
Notícias ao Minuto

08:30 - 22/08/17 por Goreti Pera

País Filinto Lima

A poucas semanas do regresso às aulas, ouvem-se queixas da parte dos docentes e encarregados de educação em relação ao sistema de ensino público em Portugal. Falámos com o Presidente da Associação Nacional de Diretores de Agrupamentos e Escolas (ANDAEP) para perceber o que vai bem ou mal na Educação.

Em entrevista ao Notícias ao Minuto, Filinto Lima garantiu que as situações de ‘moradas falsas’ evidenciam uma necessidade de mudança da lei e que a transição plena para os manuais escolares digitais é uma realidade relativamente distante, tendo em conta as necessidades das escolas.

O docente que representa os diretos de escolas atira farpas aos sindicatos do setor da educação por terem convocado greve em período de exames nacionais e incita o ministro Tiago Brandão Rodrigues a não entrar no segundo semestre como vencedor.

A Inspeção-Geral de Educação e Ciência (IGAE) abriu um inquérito para apurar eventuais irregularidades no processo de matrícula dos alunos nas escolas. O uso de ‘moradas falsas’ é uma irregularidade de que os diretores tenham conhecimento?

Nós não podemos dizer que há ‘moradas falsas’, o nome não pode ser esse, mas o que está a acontecer é que os encarregados de educação delegam essa função numa pessoa que more perto da escola onde os filhos estudam. Por esse motivo, a morada passa a ser a desse novo encarregado de educação. Ao que parece, o aluno não viverá com essa pessoa mas viverá com os pais. Isto é uma prática que me parece legal, mas é imoral. Aqui o que está em causa é um abuso nítido da lei. Deveríamos modificar a lei para que não se banalizasse a figura do encarregado de educação. Dá ideia de que, hoje em dia, qualquer cão e gato pode ser encarregado de educação.

A solução que nós temos para isto, já a contar com o próximo ano letivo, é que a delegação de funções do encarregado de educação passe a ser um ato solene, validado e autorizado por uma entidade superior à escola, como o notário ou uma entidade judicial, e com motivo justificado. Atualmente, os pais vêm à escola com a pessoa a quem querem delegar a função, preenchem um papel muito simples e não têm de apontar motivo algum.

Para efeitos de matrícula, a escola não tem em conta a morada fiscal do novo aluno?

Nós temos simplesmente de pedir uma fatura da luz, telefone ou água, onde conste o nome do encarregado de educação e a morada. Exigimos ao novo encarregado de educação o mesmo que exigimos àqueles que são pais das crianças. Poderia ser tida em conta a morada fiscal do aluno, por exemplo, mas a lei não obriga a isso. Essa seria outra das soluções, mas não é isso que as escolas estão a exigir.

'Moradas falsas' são em número residual e um dos efeitos perversos dos rankings

Um pai ou mãe que quer matricular o seu filho pode nomear qualquer pessoa para ser encarregada de educação, independentemente de existir ou não grau de parentesco com o estudante?

É isso mesmo. E pode até ter motivos justificativos, como seria o facto de o pai e a mãe irem emigrar e quererem deixar o filho em Portugal. Podem escolher alguém da sua confiança para ter essa função, mas não é isso que se passa. Percebeu-se que os pais estão cá em Portugal e delegam essas funções para que o filho fique naquela escola. Falo dos casos que foram noticiados e que são relativos a duas escolas em Lisboa (D. Filipa de Lencastre e Pedro Nunes). Porém, devo referir que é um número residual de escolas e percebe-se que são aquelas que estão mais bem posicionadas nos rankings. Este é um dos efeitos perversos dos rankings.

O que é que está a ser feito em relação às notícias que vieram a público sobre estas duas escolas?

Aquilo que nós sabemos é que a Inspeção-Geral da Educação, a mando do Ministério da Educação, abriu um inquérito no sentido de perceber se os critérios de matrícula foram respeitados. Independentemente das conclusões da inspeção, não me parece que isto chegue. Temos de ir ao fundo da questão e mudar a lei que permite estes abusos. Há que tomar medidas e há que dar dignidade à figura do encarregado de educação. Não pode ser por dá cá aquela palha que eu, pai, passo a função para o meu amigo Joaquim que mora em frente à escola para onde quero que o meu filho vá estudar. Além disso, há uma questão de falta de ética. Que exemplo dá um pai ao seu filho quando está a mentir? É um mau exemplo.

Se não temos computadores nem tablets nas salas de aula, como é que vamos usar manuais digitais?

Foi promulgado por Marcelo Rebelo de Sousa o diploma que fomenta a transição para os manuais escolares digitais. Quando é que as escolas e os alunos estarão efetivamente preparados para esta mudança?

Tenho muito apreço pelo Presidente da República e ele é uma pessoa visionária, mas não podemos começar a construir uma casa pelo telhado. A ideia é positiva, já existem manuais escolares digitais desde 2013, mas penso que as escolas neste momento têm instrumentos obsoletos para usar essa nova ferramenta. Se não temos computadores suficientes nas salas de aula, se não temos tablets, como é que vamos usar os manuais digitais? O Ministério da Educação tem de criar um programa semelhante ao Plano Tecnológico da Educação (PTE), que no tempo de Sócrates fez chegar às escolas dezenas de computadores. Mas isso foi há uns anos e as máquinas já estão obsoletas.

A aquisição de material informático é a necessidade mais óbvia. De quem deve ser a responsabilidade de adquirir este material, dos alunos ou das escolas?

Quem compra os livros hoje em dia são os alunos. Eu penso que a competência deve ser dos alunos, embora – até porque a Constituição diz que o ensino tem de ser tendencialmente gratuito – o ideal seria ser o Governo a facultar os manuais digitais aos alunos. Para os pais não é comportável, porque os manuais digitais são bem mais caros do que os manuais em papel. O que acho é que podemos ser progressivos. Não estou a ver esta medida a entrar do 1.º ao 12.º ano de uma vez só, mas sim de forma gradual, por anos de escolaridade ou ciclos de ensino. Os pais poderão entrar com algum dinheiro em função do seu escalão na ação social, porque, se a despesa for totalmente do Ministério, parece-me que a fatia seria exorbitante.

A ser dos pais esta responsabilidade, há o risco de a transição para suporte digital não se traduzir numa poupança para as famílias?

Quando há uma inovação, correm-se sempre riscos. Mas são riscos calculados. Se formos a um café, por exemplo, oito em cada dez pessoas estão ligadas à internet através de dispositivos móveis. A escola não se pode deixar ultrapassar pelo que é o dia adia em sociedade. Os nossos alunos dominam como ninguém as novas tecnologias, além de que o sucesso escolar poderá aumentar se o aluno estiver mais motivado. E estará mais motivado, com certeza, se usar um tablet ou computador na sala de aula.

Esta mudança vai requerer alguma preparação por parte dos professores?

Sim, aliado a tudo isto é preciso dar formação aos professores. O nosso país está estagnado há alguns anos no que toca à formação de docentes. É preciso que o Ministério da Educação dê formação aos professores a nível das novas tecnologias, disso não há dúvida.

Transição para semestres não acrescenta um cêntimo que seja ao erário público

Defendeu recentemente a transição do ensino obrigatório para um modelo semelhante ao do ensino universitário, em que o ano letivo é dividido em dois semestres. Que vantagens se retirariam desta alteração?

Essa é uma ideia que foi apresentada há alguns anos ao anterior ministro, Nuno Crato, e entretanto também ao atual ministro, Tiago Brandão Rodrigues. No último ano, tivemos 68 dias de aulas no 1.º período, 66 dias no 2.º período e 33 dias no 3.º período (a que temos de descontar as greves e a tolerância de ponto pela visita do Papa). O 3.º período foi menos de metade da duração dos períodos anteriores, porque o nosso calendário está refém de um feriado móvel que é a Páscoa (que ocorre ora em março, ora em abril). Pergunto se um aluno que tenha negativa no 1.º e 2.º períodos alguma vez vai ter positiva no 3.º. É muito difícil. Da mesma forma, dificilmente um aluno com nota 4 nos primeiros períodos terá uma negativa no último. Assim sendo, o grau de motivação no 3.º período é reduzido.

Na promoção do sucesso escolar, a transição para semestres era muito importante. Um aluno não entraria no segundo semestre (que começaria em fevereiro) derrotado nem vencedor, o que o deixaria mais motivado para o estudo. Além disso, contribuiria para o Simplex da Educação porque passaria a haver duas reuniões intercalares e duas reuniões de avaliação ao invés de três. A concretizar-se esta proposta, a duração dos dois semestres seria igual e manter-se-iam as pausas do Natal, do Carnaval e da Páscoa.

Que respostas recebeu às propostas feitas ao Ministério da Educação?

Para já, o Ministério está com outro tipo de preocupações que não estas. Mas, se a tutela não quer avançar de uma forma generalizada com esta medida, que dê às escolas autonomia para avançarem, nem que seja a título experimental, para este calendário escolar. Esta proposta não colide em nada com o número de dias de aulas, com a matéria lecionada ou com o número de professores e funcionários. Não acrescenta um cêntimo que seja ao erário público.

Greve nos exames? Sindicatos perderam uma oportunidade para estarem calados

Os exames nacionais ficaram marcados por uma greve de professores. Fazem sentido as reivindicações dos docentes?

Fazem todo o sentido as reivindicações dos docentes, mas penso que a greve foi uma carta muito mal jogada pelos sindicatos. Diria mesmo que os sindicatos perderam uma oportunidade para estarem calados. Aliás, têm estado calados durante todo o ano e abriram a boca de uma forma negativa com esta greve. Estou convencido de que, se fosse hoje, os nossos sindicatos não iriam avançar com este tipo de greve, embora reconheça a legitimidade das reivindicações.

Fazer greve aos exames caiu muito mal na opinião pública e pôs os pais contra os professores. Os professores estranham esta passividade de alguns sindicatos que depois decretam uma greve que teve total insucesso. Era mais do que previsível. Então as entidades sindicais não sabiam que na altura de Nuno Crato saiu um despacho que permitia ao Ministério da Educação recorrer aos serviços mínimos quando há exames? Os sindicatos estavam a dormir. Daqui para a frente, nunca mais os sindicatos vão decretar uma greve durante os exames.

Quais os principais motivos de descontentamento por parte dos professores?

É por quase todos reconhecido o desgaste desmesurado imputado à profissão de docente do ensino não superior, sustentado no número anormal de baixas médicas por depressão destes profissionais (principais vítimas do famigerado burnout), nos comentários de diversas pessoas – “Eu nunca seria professor nos dias de hoje!”, “Os alunos não acatam as indicações dos professores!” –, nas referências menos abonatórias de alguns pais e encarregados de educação que desvalorizam a escola e/ou não sabem educar os seus filhos… Mas também pelo trabalho cada vez mais burocrático, realizado pelos professores, pelo número ainda elevado de alunos por turma, pela indistinção de componente letiva (CL) e componente não letiva (CNL), pela necessidade de reorganização do horário de trabalho, pela ausência de incentivos. Isto só para enumerar algumas das inúmeras preocupações que são, cada vez mais, uma constante no dia a dia do professor.

Os processos de colocação dos professores têm sido conturbados nos últimos anos. Há constrangimentos que se mantêm?

Reconheço que as coisas melhoraram um pouco, embora ache inconcebível que muitos professores (falo dos contratados e dos apurados por quadros de zona pedagógica) só saibam no final de agosto onde têm de ser apresentar a 1 de setembro. Isto é uma falta de respeito para com os professores que vão parar a muitos quilómetros de distância das suas casas. Reconheço que este é um ano de muitos concursos (realiza-se o concurso que é feito apenas a cada quatro anos) e não é fácil alterar este prazo. Mas o que nós pedimos ao Ministério da Educação é que estas colocações feitas em finais de agosto sejam antecipadas algumas semanas.

Ministro não deve entrar no segundo semestre como vencedor. Vai ter de dar o litro

Que avaliação faz do trabalho que tem vindo a ser feito pelo ministro Tiago Brandão Rodrigues?

Terá de ser uma avaliação intercalar. Este primeiro semestre de trabalho do Ministério da Educação foi positivo, está muito próximo das escolas, dos professores e dos diretores. Há pessoas que estão no terreno e vão frequentemente às escolas, não se fecham na Avenida 5 de Outubro [sede da Secretaria-Geral da Educação e Inovação]. Também me parece que o Ministério das Finanças poderia ajudar mais o Ministério da Educação. A escassez de funcionários é o eterno problema da escola pública portuguesa e, na minha opinião, a sua resolução compete mais às Finanças do que à Educação. Ainda em relação à avaliação do ministro Tiago Brandão Rodrigues, vale a pena pedir-lhe que não entre no segundo semestre como vencedor. Vai ter que dar o litro, até para que o segundo semestre seja mais positivo do que a nota positiva que lhe demos.

Que diferenças de atuação aponta em relação à anterior composição do Ministério da Educação, tutelado por Nuno Crato?

O ministro Nuno Crato podia ter falado mais com quem está no terreno todos os dias. No último ano de mandato, aproximou-se mais dos diretores e saiu de bem com a Educação. Nos anos anteriores, sentiu-se que o Ministério da Educação não era tão aberto a auscultar quem está no terreno antes de decidir. Mas mais do que avaliar e comparar interessava é que a Direita e a Esquerda se entendessem e não chegassem ao poder e mudassem tudo o que está bem ou mal sem prévia avaliação. Mais do que avaliar os respetivos desempenhos, as escolas pretendem que se entendam e lhes deem tranquilidade para elevar ainda mais a fasquia da enorme qualidade que já possui a escola pública.

Percebo as dificuldades de consenso político e, por isso, usando o bom exemplo da Justiça, também será possível chegar-se a um acordo na Educação, através da celebração de um entendimento, há muitos anos reclamado pelos diferentes intervenientes da área, constituindo, para o efeito, um grupo de trabalho e discutindo abertamente o que separa as forças da Esquerda das forças da Direita.

Fará sentido fazer alterações legislativas e procedimentais ao mesmo ritmo da mudança da cor governativa? Qual a vantagem para um aluno que durante o seu percurso de escolaridade obrigatória está sujeito a exuberantes enredos? É prudente promover modificações a meio dos ciclos de ensino? Proponho o alto patrocínio do Presidente da República para este desiderato vantajoso, sinónimo de interesse superior num dos principais setores de qualquer sociedade moderna: a Educação.

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