"Vou sempre por um caminho mais espinhoso e pago o preço por isso"
Janita Salomé acaba de lançar o seu 15.º álbum, 'Valsa dos Poetas', e é o entrevistado de hoje do Vozes ao Minuto, falando do seu último trabalho, das suas memórias e até do estado da cultura em Portugal.
© António Laureano
Cultura Janita Salomé
Quase a completar 71 anos, Janita Salomé está longe de se reformar da música e dos palcos. O músico, irmão de Vitorino, acaba de lançar o seu 15.º álbum, ‘Valsa dos Poetas’ e já está a compor o próximo.
Ao Notícias ao Minuto, o compositor e cantautor de música popular portuguesa, com mais de 40 anos de carreira, revela que paga um preço por se manter fiel ao seu registo e não ceder à tentação de fazer ”músicas de fácil audição”, mas que prefere ir pelo “caminho mais espinhoso” do que ceder a certos padrões estéticos nos quais não se enquadra. E não sente mágoa por isso.
Por isso mesmo, decidiu homenagear neste novo álbum os poetas e escritores, portugueses e estrangeiros, que deram palavra e alma às suas composições, dando musicalidade a poemas, algo que confessa nem sempre ser fácil. Das 12 músicas do álbum ‘Valsa dos Poetas’, Janita compôs nove - das restantes três, duas foram escritas pelo pianista Filipe Raposo e uma pelo falecido e eterno amigo Zeca Afonso - e ainda arriscou fazer algo inédito: cantar uma música em inglês.
Desta viagem antológica fazem parte, ainda, poemas de Carlos Mota de Oliveira, Charles Bukowski, José Jorge Letria, Luís Andrade e Luís Vaz de Camões.
O espetáculo de apresentação do novo álbum está agendado para o dia 5 de junho no Teatro da Trindade, em Lisboa. Com Janita Salomé estarão todos os músicos que participaram no disco, nomeadamente o pianista Filipe Raposo, o guitarrista Mário Delgado e as cantoras Luanda Cozetti e Catarina Molder, que o músico faz questão de relembrar sempre que fala do novo álbum.
Lançou o seu último álbum há quatro anos. Estava a compor o álbum ‘Valsa dos Poetas’ desde 2014 ou decidiu fazer uma pausa?
Estive a compor e fui tendo espetáculos. A gravação do disco sofreu sucessivas interrupções porque, durante o inverno, apanhei constipações, e isso atrasou a saída do álbum em vários meses. A ‘Valsa dos Poetas’ já podia estar cá fora há quatro ou cinco meses, mas, entretanto, fui esticando ‘O Nome da Rosa’ [anterior trabalho] até poder.
E quanto tempo demorou a compor a ‘Valsa dos Poetas’?
Demorou cerca de um ano.
Um poema escrito não é feito necessariamente para ser musicado, apesar de tudo se poder musicar, até as páginas amarelas Este álbum é uma clara homenagem aos poetas que o inspiram. Em que medida é que estes artistas influenciaram a sua carreira?
Os poetas influenciam a composição. A palavra poeta torna tudo mais complicado e exigente. Porque musicar uma poesia não é o mesmo que musicar letras para músicas que estão ali muito certinhas, muito organizadas. Um poema escrito não é feito necessariamente para ser musicado, apesar de tudo se poder musicar, até as páginas amarelas. Musicar nunca é fácil, mas quando se trata de poesia, que não foi feita expressamente para ser musicada, as coisas tornam-se mais complicadas. As melodias saem menos regulares. A exigência da palavra exige que a melodia seja digna dessa palavra. E muitas vezes as linhas melódicas são também menos fáceis de ouvir para o ouvinte comum que está habituado à facilidade e à procura generalizada de músicas de fácil audição.
Eu vou por outro caminho. Vou sempre por um caminho espinhoso e mais difícil, mas também mais aliciante. Por outro lado, pago o preço por issoMas eu vou por outro caminho. Vou sempre por um caminho espinhoso e mais difícil, mas também mais aliciante. Por outro lado, pago o preço por isso. Acabo por ter menos concertos, por vender menos discos e na rádio não me aceitam como se tivessem encontrado uma fórmula mágica e não a largassem.
Por exemplo, este disco não foi disco Antena 1 porque, segundo o que me disseram, apesar de o considerarem um grande trabalho, não se insere no público a que eles se dirigem. Mas não há problema. Quando o fiz, estava consciente deste risco, sabia que isto podia acontecer e aconteceu, mas não me queixo, vou por outros caminhos. Isto é como a acupuntura, se o circuito não se processa por ali, vai-se à volta. E estou disposto a pagar este preço.
Compôs nove das 12 canções do álbum. Foi fácil ter inspiração para todas as músicas ou passou por alguns momentos menos inspirados durante o processo de produção?
Passo muitas vezes. Às vezes ando semanas atrás de um tema e depois aquilo não me agrada. E muitas vezes faço uma parte da melodia, depois já não mexo mais nesse dia e entretanto esqueço-me. No outro dia ouço para ver se me surpreende e aí analiso: disto gosto, não gosto, surpreendeu-me, não me surpreendeu. Tem de surpreender a mim primeiro, antes de mostrar ao público.
Sou nado e criado no Redondo e tenho lá todas as minhas referências. Volto lá muitas vezes para me equilibrar e às vezes para me desequilibrarE costuma compor no Redondo, de onde é natural, ou no Sobral, onde vive atualmente?
Na casa onde vivo neste momento. Eu vivo numa aldeia agora, há cinco anos, próxima do Sobral. E é na casa onde vivo que componho. Mas volto muitas vezes ao Redondo, tenho lá família, amigos, tenho muitas memórias. Foi lá que cresci, só saí de lá com mais de 30 anos, sou nado e criado no Redondo e tenho lá todas as minhas referências. Volto lá muitas vezes para me equilibrar e às vezes para me desequilibrar, também acontece.
A escolha dos poetas que homenageou neste álbum foi difícil ou para si já era claro quais os artistas que queria homenagear?
Não foi difícil. Tinha já pensado nisso e tinha já dois poemas do José Jorge Letria - as duas primeiras músicas do álbum - a aguardarem uma ideia. E como eu dou grande relevo à palavra e às palavras dos poetas, especialmente, acho que chegou a altura de os homenagear. Quero com este álbum lembrar a importância da palavra para mim e os poetas, os que já musiquei e aqueles que ainda hei-de musicar.
Qual a música de que mais gosta da ‘Valsa dos Poetas’ e qual a que tem um valor mais sentimental para si? E porquê?
São várias, mas uma delas, curiosamente, é em inglês, é a Bluebird. Este poema de Charles Bukowski é lindíssimo e foi feito por um homem que, à primeira vista, segundo descrições da sua personalidade e comparando com outros poemas dele, nem parece de Bukowski. Este poema é de um homem de uma sensibilidade extrema e, ao mesmo tempo, de uma grande fragilidade.
Toda esta história por detrás do poeta e a beleza do poema conquistou-me e levou-me a cantar em inglêsCharles Bukowski é da ‘Beat Generation’, aquela geração contestatária que surgiu depois da II Guerra Mundial, que deu asas ao movimento artístico e literário contra o conservadorismo e capitalismo americano da época. Desta geração fizeram parte outros artistas como Jack Kerouac, o autor de ‘On The Road’, e os Beatles. Toda esta história por detrás do poeta e a beleza do poema conquistou-me e levou-me a cantar em inglês.
Algo inédito na sua carreira, não é verdade?
Sim, não tinha o mesmo sentido se cantasse esta música em português, quer dizer… o mesmo sentido teria, mas a beleza do poema está na língua original não se consegue traduzir nem transmitir noutra língua.
E o que pretende transmitir ou dar ao seu público com este álbum?
Que há poesia para a música, é essencialmente isso. Há palavras para musicar. É isso que sinto e que quero transmitir. E que a poesia venha para a rua!
Faz também neste álbum uma homenagem a Zeca Afonso de quem era amigo e com quem partilhou muitos palcos. Porque escolheu ‘Era um Redondo Vocábulo’?
‘Era um Redondo Vocábulo’ é das mais belas canções da música portuguesa de sempre. Tenho muitas recordações do Zeca e dele a cantar este tema. É uma música que faz parte das minhas memórias e do meu reportório e é daqueles temas que me emociono a cantar. Quase sempre que a canto cai uma lagrimazinha...
Não sei como é que isso acontece, mas interiorizei, até involuntariamente, muito daquilo que o Zeca fazia e era e isso reflete-se nas minhas composições Quais as melhores memórias que tem dessa amizade e de que forma é que Zeca Afonso influenciou a sua vida?
Para já, o seu sentido de humor, as histórias que ele contava quando estávamos em momentos de lazer, nas viagens que fizemos pela Europa. Ele era um contador de histórias inato. E o prazer de estar no palco com ele. Às vezes dou comigo, nas composições, a encontrar frases ou fragmentos de frases melódicas idênticas às do Zeca, não sei como é que isso acontece, mas interiorizei, até involuntariamente, muito daquilo que ele fazia e era e isso reflete-se nas minhas composições.
Era mais fácil ser músico nessa altura ou agora?
Era um pouco mais difícil, as exigências talvez fossem maiores, mas também depende do género de música a que nos dedicamos. Não quero menosprezar ninguém, cada um tem a sua realidade, há música que exige mais de nós, há músicas para público menos exigente, mas há espaço para todos e para todos os géneros. Eu tenho as minhas escolhas, tenho os meus padrões estéticos e é segundo eles que me oriento, mas sei que há outra boa música e muito mais fácil.
Quais os desafios que os artistas enfrentavam nessa altura? Eram diferentes dos desafios de hoje em dia?
Agora, a diversidade é maior, o nível de exigência baixou infelizmente. É um sinal dos tempos, estamos num tempo de grande superficialidade e de falta de reflexão e de formação. Inclusivamente, os meios de comunicação tornam mais ou menos fácil o aparecimento desse público em detrimento de outras abordagens da música.
O alentejano é cantor por excelência e a região do Alentejo deve ser a região do país onde há maior número de cantores por metro quadradoComo é que é a vida de um cantor de música tradicional portuguesa hoje em dia? Como é que este tipo de música é recebido pelo público?
Tenho o meu lado tradicional e tenho também, como comprova este trabalho, o meu lado urbano. Vivo na urbe há muitos, mas mesmo muitos anos e sou influenciado pelo facto de estar na urbe. A música tradicional vivo-a como alentejano que sou e o alentejano preza muito as suas origens e o seu modo de estar na vida, no seu cante. O alentejano é cantor por excelência e a região do Alentejo deve ser a região do país onde há maior número de cantores por metro quadrado.
Acha que o Governo devia apoiar mais os autores portugueses?
Penso que sim, penso que devia apoiar. Penso que devia até ajudar-nos na exportação da nossa música. Fá-lo com o fado - e eu até gosto de fado e gosto de cantar fados, até já cantei em casas de fado em Lisboa quando era mais novo, já gravei inclusivamente um disco com canções de Coimbra, - e com alguns fadistas, mas curiosamente sempre no feminino.
Não estou de acordo que se faça do fado uma canção nacional como no tempo da outra senhora, o fado é da região de Lisboa
De qualquer modo, eu não estou é de acordo que se faça do fado uma canção nacional como no tempo da outra senhora, o fado é da região de Lisboa. Sei perfeitamente que não há nenhum português que não cante um fadinho, mas também sei que não há português nenhum que não cante uma música do Zeca, porque este país é tão pequeno mas é tão rico na sua diversidade cultural que se podia ir mais longe. Mas isso tinha de ter uma política própria e dirigida nesse sentido, o que não existe.
O ministro da Cultura é meu amigo de adolescência. Não acredito que o Luís Filipe fizesse isto, se isto não lhe fosse impostoE o que pensa da polémica com a DGArtes?
Tenho uma grande dificuldade em falar desse assunto, sabe porquê? O ministro da Cultura é meu amigo de adolescência, andamos juntos a estudar e conhecemo-nos desde miúdos. Ele viveu uns anos no Redondo e está muito ligado à minha terra, há até fotografias publicadas dessa altura. Ele era muito tímido, lembro-me perfeitamente mas era uma mente brilhante, já na altura era um miúdo excecional, por isso mesmo, acredito que estas na restrições na pasta da Cultura podem ter sido até impostas pelo ministro das Finanças ou da Economia. Eu não acredito que o Luís Filipe fizesse isto, se isto não lhe fosse imposto.
Mas considera que o Governo devia apoiar mais a Cultura, as artes e, mais especificamente, a música portuguesa?
Sem dúvida que sim e há orçamento para isso. Se há uma folga como dizem e tem sido sugerido, nomeadamente pelo Bloco de Esquerda e Partido Comunista, que esta folga sirva para se investir na Saúde, na Educação e na Cultura porque se há dinheiro, ele devia ser canalizado e favorecer mais estes setores da vida pública, da vida portuguesa.
A ‘Valsa dos Poetas’ foi lançado a 20 de abril, mas quando será apresentado ao público?
Tenho vários concertos agendados, um pouco por todo o país, mas o espetáculo de apresentação do novo álbum está marcado para o dia 5 de junho no Teatro da Trindade, em Lisboa.
E já tem em mente o próximo trabalho?
Estou a começar a pensar nisso. Como decorreu tanto tempo entre terminar de compor a ‘Valsa dos Poetas’ e ser lançado, comecei logo a magicar outro, mas ainda não tem data de publicação.
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