Emprego por SMS? "Burla, mas há casos de aliciamento para tráfico humano"
A comissário Sónia Martins, chefe do Núcleo de Cibercrime do Departamento de Investigação Criminal da Polícia Segurança Pública, é a convidada do Vozes ao Minuto desta segunda-feira.
© Sónia Martins /PSP/ Notícias ao Minuto
País Burlas
A comissário Sónia Martins lidera o Núcleo de Cibercriminalidade da Polícia De Segurança Pública (PSP), que completa quatro anos em novembro e que foi criado para apoiar as investigações em que o recurso ao ciberespaço e aos meios informáticos e tecnológicos têm um carácter instrumental para a prática de crimes.
Já lá vão os tempos em que os burlões enfrentavam as vítimas para levar a cabo os crimes ou em que as burlas informáticas se traduziam no conhecido caso das 'Cartas da Nigéria'. Se por um lado o recurso às novas tecnologias veio facilitar a vida da população de forma genérica, por outro, têm sido usadas pelo criminosos para explorar as suas "potencialidades para cometerem crimes com mais facilidade, com menos riscos, e atingido o maior número de pessoas".
Ao Notícias ao Minuto, a comissário Sónia Martins, que colaborou também com a Europol, fala-nos sobre as burlas informáticas e nas comunicações, nomeadamente os novos fenómenos que vão surgindo, como o 'Pig Butchering', que "surgiu em força" e "preocupa" a PSP, já com 654 casos denunciados só em 2024. Por sua vez, o ‘Olá mãe, Olá pai’ continua a ser aquele com maior expressão, com 1.278 denúncias.
Sobre as mensagens com ofertas de emprego enviadas no WhatsApp, a responsável admite que, além de serem burla, estão também a ser usadas como "aliciamento para o tráfico de seres humanos". Refere que a Inteligência Artificial ajuda "a massificar ainda mais a criminalidade" e dá conta de conselhos e principais sinais de alerta naquele que "um crime de difícil investigação", pedindo que "os vários atores da sociedade se juntem e colaborem entre si".
Sobre os burlões, alerta: "Não é necessário ter conhecimentos, só se tem de pagar por isso".
É óbvio que o recurso às novas tecnologias veio facilitar-nos a vida a todos, mas essas facilidades também acabam por ser aproveitadas por quem tem intenções maliciosas
Nos últimos tempos, são várias as situações e os alertas que surgem associados a burlas online ou que recorrem a determinada tecnologia para atingir o seu objetivo. O facto de ouvirmos falar cada vez mais neste tipo de caso significa que houve um aumento deste crime?
Tudo o que são evoluções, sejam tecnológicas, seja outro tipo de evolução, trazem sempre vantagens e alguns problemas associados. É óbvio que o recurso às novas tecnologias veio facilitar-nos a vida a todos, mas essas facilidades também acabam por ser um bocadinho aproveitadas por quem tem intenções maliciosas. Da mesma forma que nos beneficiam no nosso dia a dia, também têm algumas características que fazem com que os criminosos utilizem essas potencialidades para cometerem crimes com mais facilidade, com menos riscos, e atingido o maior número de pessoas, às vezes, com uma única ação. Por exemplo, uma mensagem de ‘phishing’: atingimos um grande número de vítimas e não há uma exposição do criminoso. O criminoso não tem de enfrentar a vítima. Antigamente, as burlas eram cometidas cara a cara, havia um contacto entre o burlão e a vítima. Hoje em dia, isso acaba por estar muito facilitado. A pessoa não tem contacto, não tem de mostrar a cara, muitas vezes não têm sequer de mostrar voz, porque pode reconhecer a espécie de robôs para fazer as comunicações, muitas vezes não é própria pessoa a fazer chamada, trazendo muitas vantagens aos criminosos e diminuindo o risco de eles serem identificados.
Ou seja, podemos concluir que houve um aumento?
Sim. Também acredito que, com todas as campanhas que vão sendo feitas, ao nível da prevenção e também ao nível da literacia digital, as pessoas acabam por estar um bocadinho mais despertas. Isso é bom porque estou em crer que diminuiu a probabilidade de as pessoas se tornarem vítimas. Além disso, estando mais despertas também mais facilmente podem identificar um crime e reportá-lo às autoridades. Isso também pode levar a que vá aumentando de ano para ano o número destes casos denunciados, mas isso é bom sinal, porque é sinal que eles existiam e que as pessoas agora os conseguem identificar e os reportam. Termos menos números não quer dizer que não existam, até porque os números, apesar de altos, eu acredito que não sejam os reais, porque há muitas cifras negras, continua a haver muitas pessoas que não apresentam denúncia.
‘Pig Butchering’ surgiu em força. Em 2024, já estamos com 654 casos denunciados à PSP
Há números? Quantas denúncias de burlas online já recebeu a PSP em 2024?
As burlas informáticas e nas comunicações, na PSP, elas têm estado a aumentar desde 2018 e até ao final de 2023. Este ano ainda não conseguimos ter uma noção exata sobre se elas vão aumentar face ao ano anterior ou não. Mas de qualquer das maneiras, tendo em consideração os fenómenos que nós vamos acompanhando, verificamos aqui que há alguns que continuam altos e que há uma grande possibilidade dos números serem semelhantes aos do ano passado.
Nomeadamente, as burlas do ‘Olá mãe, Olá pai’, os falsos arrendamentos, as burlas por MBWay, compra e venda de artigos em geral online e também a compra e venda de viaturas. E, depois, temos um fenómeno novo que surgiu este ano, - o ano passado houve um número de casos muito residuais já no final do ano, mas este ano surgiu em força - e é o ‘Pig Butchering’. Eu penso que a PSP também já fez alguns comunicados sobre isto e este ano nós já estamos com 654 casos denunciados à PSP.
Do ‘Olá mãe, Olá pai’, temos 1.278 já este ano.
Fenómeno com maior expressão é ainda o ‘Olá mãe, Olá pai’, com 1.278 denúncias
E qual é que é a ocorrência com mais incidência?
Dos fenómenos que a PSP acompanha, porque também acompanhamos aqueles que afetam mais diretamente o cidadão e que nós vemos um crescimento muito rápido, tentamos atacá-los logo em duas vias, com a prevenção e com a investigação, e vamos tendo analistas que acompanham diariamente as denúncias que são feitas na PSP. Qual é o trabalho desses analistas? É ver o expediente, que é feito diariamente, tentar identificar fenómenos que estão a crescer e recolher desses fenómenos os elementos essenciais de informação que vão ajudar quer a investigação criminal, quer a criar depois campanhas de prevenção. Nós utilizamos principalmente as campanhas de prevenção.
E, destes fenómenos que nós acompanhamos, maioritariamente, os que estão já com maior expressão este ano, 2024, é ainda o ‘Olá mãe, Olá pai’. Apesar das campanhas que têm vindo a ser feitas, já estamos com 1.278 denúncias. Temos o ‘Pig Butchering’, com 654, os falsos arrendamentos através da utilização de plataformas na Internet, com 587, e temos o MBWay, com 540. A compra e venda de artigos online regista 349 e, depois, em específico, compra e venda de viaturas online, com 263.
E tem ideia do valor estimado dos prejuízos só este ano?
Ainda não temos esses dados, mas posso dizer, por exemplo, que relativamente ao 'Olá Mãe Olá Pai', os prejuízos do ano 2022 e 2023, até agora o início de janeiro de 2024, já ultrapassaram os sete milhões de euros.
À medida informação vai sendo divulgada ou vai sendo tornada pública, os criminosos também vão inovando e vão criando variantes na forma de atuação
Há pouco falávamos aqui destas novas burlas a serem identificadas, especificamente o ‘Pig Butchering’, que burla é esta? Já têm também identificados outros novos tipos de burla que a própria PSP ainda esteja a estudar?
Não, assim com expressão grande, ainda não temos outra. Agora estamos um bocado preocupados com isto porque os números já estão elevados. Além disso, quando surgem novos fenómenos, há sempre uma necessidade das polícias e do Ministério Público se organizarem relativamente às competências de investigação. E a nossa preocupação, agora, também é essa.
Mas este fenómeno é feito através das redes sociais, em grande parte pelo TikTok, pelo que temos visto, consiste no estabelecimento de uma relação de confiança com a vítima, uma aproximação do criminoso face à vítima. Isto depois tem algumas modalidades. E o que acontece quando todos estes tipos de crimes são cometidos através de plataformas ou online é que, à medida que a informação vai sendo divulgada ou vai sendo tornada pública, os criminosos também vão inovando um bocadinho e vão criando variantes na forma de atuação.
Mas, neste caso em concreto, há uma tentativa de ganho de confiança por parte do burlão, estabelecendo conversa com a vítima. Por vezes, é enviada uma mensagem como se fosse um engano, - que não é um engano, estas mensagens são enviadas em massa para várias pessoas - procurando que a pessoa responda à mensagem. Outra vez é simulado que alguém conhece uma pessoa conhecida da vítima. E é assim que é iniciada a tentativa de comunicação com as vítimas.
Depois, para ganho de confiança, é sugerido à pessoa que participe num negócio, que lhe vai trazer lucros, levando-a a realizar contribuições consideráveis. Depois, é apresentada uma promessa de dividendos através da realização de tarefas simples, como a visualização de músicas no YouTube, avaliações de alguns sites, a colocação de ‘likes’. É sugerido isso à vítima, realizar essas pequenas tarefas, sempre com a perspetiva de a pessoa ganhar algum dinheiro. O que é que acontece? As primeiras vezes que a pessoa faz esse investimento, ou que faz o que lhe é sugerido pelo burlão, realmente há um retorno económico, a pessoa recebe algum dinheiro de volta. Isto para quê? Para aliciar a pessoa a continuar a investir, a continuar a desempenhar essas atitudes. Depois de a pessoa começar a receber estes pequenos investimentos, estes pequenos retornos e ir aumentando os seus investimentos, chega a uma altura em que o burlão desaparece. Pronto. Deixa de haver contacto, a vítima deixa de receber qualquer resposta do burlão e perde o dinheiro todo que acabou por investir.
Ofertas de emprego no WhasApp? É burla, mas pode ser utilizado para aliciamento para o tráfico de seres humanos
Também têm surgido muitos relatos de pessoas que estão a receber mensagens no WhatsApp, muitas vezes com promessas de contrato de trabalho. Estas mensagens também se inserem neste método ou são outro tipo de burla?
Também é burla, mas as mensagens do WhatsApp e este aliciamento pode ter diferentes repercussões ou diferentes consequências ou pode ser utilizado para diferentes fins, porque pode se tratar apenas de uma burla, mas depois também existem casos em que há um aliciamento efetivo para o tráfico de seres humanos. Mas isto depois depende do que estivermos a falar.
Mas a PSP tem reportes destes casos? Ou seja, em que as pessoas receberam realmente esse tipo de mensagens?
Sim, as mensagens de falsas ofertas de emprego. Também temos alguns casos.
Mas estão associadas a tráfico de seres humanos?
Podem estar em outras situações e já começa a ter alguma expressão a nível europeu e, normalmente, quando começam em outros países europeus, depois acabam por chegar aqui a Portugal, mas levam o seu tempo. Mas é uma coisa que também temos de estar alerta, porque realmente há um aliciamento das pessoas, através das redes sociais, com esse fim.
Há casos desses em que a pessoa realmente reporta que o número de onde recebeu uma chamada era o número legítimo, até aparece o nome da entidade
Não sei se também é da competência da PSP, mas outros relatos muito recorrentes têm sido as chamadas constantes e os burlões até já conseguem, por exemplo, fazer-se passar por o número de uma determinada entidade para contactar uma pessoa.
Não é da nossa competência, mas como recebemos as denúncias a nível nacional, recebemos todo o tipo de denúncias, e também há casos desses em que a pessoa realmente reporta que o número de onde recebeu a chamada era o número legítimo, até aparece o nome da entidade. É uma técnica chamada de ‘Spoofing’ que permite fazer isso. Realmente existe e é algo que as pessoas também têm de ter cuidado, porque as técnicas estão a ficar cada vez mais realistas. As pessoas necessitam de ter cuidados redobrados quando recebem este tipo de chamadas, nomeadamente desligar a chamada e contactar diretamente a entidade para ver se, efetivamente, estão com algum tipo de campanha, se estão a contactar os clientes ou não, se aquele contacto foi real. É claro que isso torna a nossa vida pessoal também um bocadinho mais difícil, a desconfiar de tudo. Mas é um facto que as técnicas estão a inovar e são cada vez mais sofisticadas. E, neste caso, é mesmo possível simular o número de telefone de uma entidade fidedigna e é um cuidado adicional que temos que ter. Existem já alguns casos.
E se uma pessoa ficar mesmo na dúvida, há algum sinal do outro lado que à partida nos pode levar logo a desconfiar?
A pessoa deve fazer algumas perguntas que tenham a ver com o motivo do contacto que está a receber e não deve responder a perguntas que lhe são feitas porque, normalmente, a técnica é essa. Do outro lado, é que há sempre alguém a dar indicações ou a fazer perguntas, mas deve-se fazer ao contrário, ser a própria pessoa a colocar as questões.
As agências bancárias e outras entidades não pedem às pessoas que revelem os seus códigos secretos e os seus dados de acesso às contas. Isto é logo um motivo para desconfiar
E, geralmente, nesse tipo de telefonemas, há logo uma tentativa para pedir determinados dados pessoais, certo? Por exemplo, se for um banco não nos vai pedir dados pessoais por chamada…
Exatamente. Nunca são pedidos dados pessoais, nem códigos por chamada. As agências bancárias e outras entidades não fazem isso, não pedem às pessoas que revelem os seus códigos secretos e os seus dados de acesso às suas contas. Isto é logo um motivo para desconfiar. O meu conselho, mesmo no caso de mínima dúvida, é desligar a chamada e contactar diretamente. Dizer que não pode falar naquele momento e que vai contactar a entidade mais tarde e fazer ela a chamada e confirmar se realmente estava a receber algumas chamadas dessa entidade. Porque é, realmente, de desconfiar quando alguém liga de uma entidade bancária que não tenha o hábito de fazer esse tipo de chamadas e que os canais que se utilizam para as pessoas realizarem determinadas operações é outro. Recebermos esse tipo de chamada, a solicitar os nossos dados... A pessoa deve sempre desconfiar.
Aconselhamos sempre as pessoas a evitarem fazer qualquer pagamento ou transferência para contas de números de IBAN estrangeiros. É muito utilizado para atividades ilícitas e para o cometimento de burlas, mesmo porque traz uma dificuldade acrescida
Muitas vezes, estas burlas que recorrem a entidades acabam por pedir pagamentos, fornecendo referências bancárias. Esta semana, vários meios noticiaram que Portugal não consegue travar estas burlas pelo multibanco. Qual é a dificuldade assente neste método? Por que é que é tão difícil?
Às vezes, os pagamentos ou as transferências são feitas para contas estrangeiras. Isto traz logo uma dificuldade acrescida, porque é necessário que haja cooperação internacional. E sempre que precisamos de cooperação transfronteiriça, os procedimentos são mais demorados e também, dependendo dos países envolvidos, pode não haver essa cooperação, pois também há esse risco.
Os acordos de cooperação entre os países da Europa são uns, com países fora, países terceiros, já são outros. E, por vezes, corre-se o risco de nem sequer ser possível obter resposta. Essa é uma dificuldade que temos também, que se coloca à investigação. E, por esse motivo, também aconselhamos sempre as pessoas a evitarem fazer qualquer pagamento ou transferência para contas de números de IBAN estrangeiros. Porque isso, realmente, é muito utilizado para atividades ilícitas e para o cometimento de burlas, mesmo porque traz essa dificuldade acrescida.
O ‘phishing’ ou o ‘ransomware’ já são serviços que um criminoso pode adquirir, prestação de serviços de outros criminosos. A pessoa pode adquirir os serviços e não é necessário ter conhecimentos, só tem de pagar por isso
Já aqui referimos que as tecnologias estão a desenvolver-se e permitem que surjam novas burlas. Mas, será que os próprios burlões também estão a ficar mais profissionais? Não sei se há até um perfil. Por exemplo, agora que há recurso a Inteligência Artificial (IA), isso não quer dizer que também é necessário um determinado conhecimento sobre como estas tecnologias funcionam?
É e não é. Depende do tipo de crime que estivermos a falar, porque há determinados tipos de crime que não é preciso a pessoa ter muitos conhecimentos para os cometer. Porque nós temos a questão da criação dos falsos sites, das falsas páginas na Internet ou dos anúncios que são colocados em plataformas, que acontecem com os falsos arrendamentos ou com a compra e venda de produtos online, que, muitas vezes, o site que é criado são até cópias grosseiras do site original.
A imagem é a mesma, é utilizada a imagem do site, mas depois há muitos sinais de alerta, que as pessoas até conseguiam identificar se estivessem um pouco mais atentas. E, muitas vezes, o que vemos que acontece é um bocadinho de efeito túnel da pessoa, porque se no site são anunciadas grandes promoções, ou black fridays, ou promoções de 70%, a pessoa já não toma grande atenção ao resto dos detalhes que estão no site. Aconteceu-nos isso já com sites a copiarem algumas marcas conhecidas, de roupa e outras, em que realmente até o próprio endereço do site - se a pessoa estivesse com um bocadinho de atenção e não visse apenas o nome do site, nem o nome da marca - se estivesse com um bocadinho de atenção ao URL, que é o endereço que aparece no topo, ia ver que aquele não era o endereço do site. Assim como outros detalhes, que aparecem nos próprios sites, por exemplo, os canais de comunicação, os canais de redes sociais, por vezes as imagens até são estáticas. Se a pessoa passar com o cursor do rato por cima, nem sequer obtém a reatividade. Ou seja, é uma cópia, uma imagem estática, não tem ligação para lado nenhum. Os métodos de pagamento também são muito mais limitados. Por norma, quando se trata de um site falso quase sempre eles pedem para se fazer uma transferência, para fazer um pagamento de serviços para uma determinada referência, onde não aparecem todos aqueles métodos alternativos que nós estamos habituados, como o PayPal, o Multibanco ou processos diferentes. E, para este tipo de crime, até não é preciso superar os conhecimentos, porque facilmente se cria um site com recurso à Internet. Existem, infelizmente, conteúdos disponíveis na Internet, que ensinam a fazer este tipo de coisas. E também é possível as pessoas comprarem este tipo de serviços. Por exemplo, o ‘phishing’ ou o ‘ransomware’, já são serviços que um criminoso pode adquirir, prestação de serviços de outros criminosos. A pessoa pode adquirir os serviços e não é necessário ter conhecimentos, só tem de pagar por isso.
E, depois, o recurso à inteligência artificial, claro que vem fazer o quê? Vem ajudar a massificar ainda mais a criminalidade. Facilita também, quer a dispersão, quer a forma de atingir as vítimas, com muito mais rapidez e número muito superior.
Com alguma atenção, é possível ver detalhes na imagem ou na voz que permitem verificar que foram utilizadas ferramentas de inteligência artificial, mas é preciso estar desperto para essa realidade e ter algum cuidado na análise
Já é possível fazer uma chamada e aparece a voz de alguém que nos é familiar ou conhecido.
Sim, é possível também colocar figuras públicas ou outras pessoas a fazer vídeos a dizer coisas que elas nunca disseram. E, nestes casos, algumas reproduções têm qualidades diferentes, porque isso também depende do recurso e do pagamento que a pessoa faz para utilizar as ferramentas que existem disponíveis. Mas, também é possível, com alguma atenção, ver detalhes ou na voz, ou nas expressões faciais, ou na cor da imagem, que permitem também verificar que foram utilizadas as ferramentas de inteligência artificial. Mas é preciso estar desperto para essa realidade e ter algum cuidado na análise.
Mas neste tipo de caso, os burlões que recorrem a estes métodos, possivelmente, já têm um conhecimento bem diferente, não?
Pode ser ou pode não ser, era o que estávamos a falar. Conseguimos encontrar explicações para tudo e até conseguimos encontrar quem nos faça aquilo que nós precisamos de ser feito. Depende do que as pessoas estão dispostas a pagar e da curiosidade das pessoas. Há também algumas ferramentas que estão disponíveis. Claro que as que estão disponíveis a preços baixos ou até gratuitas, a qualidade é diferente. Pronto, aí já é, se calhar, mais facilmente detetável a olho nu a transformação, ou que está ali uma falsidade envolvida. Há outras que já são mais sofisticadas, mas estas também são muito mais raras e já não é o comum dos burlões que pagam para ter acesso a esses serviços. Estamos a falar de outros tipos de crimes.
No caso do 'Pig Butcherin', dados mostram que os criminosos estão a operar, sobretudo, a partir de call centers situados na Ásia
Neste tipo de situações, os burlões atuam sozinhos ou falamos aqui de redes?
Podemos também ter as duas situações. Existem, enfim, outros que claramente são praticados em rede. Nós ainda não temos muitos dados, mas, nomeadamente, esta questão que lhe falei há pouco do ‘Pig Butchering’, existem já alguns relatórios. Como falamos, normalmente estes tipos de crimes vão surgindo noutros países e depois demoram algum tempo a chegar aqui a Portugal. Portanto, nós vamos recolhendo a informação que também já existe noutros países e as análises que vão sendo feitas. E a indicação que temos é de um relatório que foi recentemente elaborado por uma agência de cooperação policial internacional e que indica que os criminosos estão a operar, sobretudo, a partir de call centers situados na Ásia - e foi lá que começou este fenómeno, ainda em 2019, há já há algum tempo. Veja as dificuldades que isto também coloca depois à investigação criminal. Isto requer muita cooperação internacional e requer que sejam colmatadas também algumas lacunas que ainda existem ao nível da cooperação policial internacional.
Isto é um crime de difícil investigação e é mesmo necessário que os vários atores da sociedade se juntem e colaborem entre si
Já percebemos que o desenvolvimento de novas tecnologias e da inteligência artificial acaba por facilitar este tipo de crime e dificultar não só a vida aos utilizadores, mas também à própria polícia. De que forma é que a PSP também se tem adaptado a estes fenómenos?
Temos desenvolvido várias estratégias porque temos que apontar em diferentes direções para conseguir fazer o melhor possível com o nosso trabalho. Isto é um crime de difícil investigação e é mesmo necessário que os vários atores da sociedade se juntem e colaborem entre si. Não estou a falar só das polícias, têm um trabalho a fazer, mas o setor académico também tem um trabalho a fazer, os investigadores e os técnicos têm um trabalho a fazer, as empresas de cibersegurança têm um trabalho a fazer, as operadoras de comunicações têm um trabalho a fazer. Aqui tudo o que precisamos é de cooperar. A nível nacional e depois a nível internacional também.
Também temos apostado muito na prevenção, não só dirigida às vítimas, mas também a criminosos ou potenciais criminosos
O que é que a PSP tem feito?
Tem criado parcerias. Temos apostado muito nas parcerias, quer nacionais com alguns atores importantes do setor académico e privado, mas também temos participado em grupos de trabalho internacionais, de cooperação policial, não só com vista à investigação criminal, mas também com vista à prevenção criminal.
Também temos apostado muito na prevenção. E não só a prevenção dirigida às vítimas, mas também, o que é agora uma modalidade nova, em prevenção dirigida a criminosos ou potenciais criminosos. Porque também existem estudos - isto advém da da cooperação com o setor académico - que nos indicam que há ali uma faixa etária em que os jovens começam a forçar as barreiras da legalidade e começam a enveredar por caminhos menos lícitos, quando falamos aqui destas questões da cibercriminalidade. É uma faixa etária específica em que nós estamos a tentar atuar também para prevenir e para redirecionar os jovens. Ou seja, naquela idade em que há um risco maior, tentar mostrar-lhes que alguns tipos de comportamento podem realmente resultar em crime e em consequências, não só para eles, mas para outras pessoas. E tentar mostrar-lhes caminhos alternativos. Já que as pessoas têm essas competências, tentar que elas apliquem as suas competência e o seu gosto em alternativas lícitas e legais. Mostrando quer o mercado de trabalho existente, quer sítios e desafios onde podem aplicar os seus conhecimentos e desenvolver ainda mais. E caminhos que podem seguir licitamente e até ganhar dinheiro com isso. Porque também, por vezes, sabemos que a motivação de cibercriminosos, parte dela, também é económica. As pessoas fazendo bem também podem ganhar dinheiro, e muito, aplicando bem os seus conhecimentos e as capacidades que têm.
Há casos de jovens a começar por volta dos 11, 12, 13 anos
E essa faixa etária situa-se entre que idades?
Começam muito novos. Há casos de jovens a começar por volta dos 11, 12, 13 anos, até aos 18, 21. Este grupo é maioritariamente aquele em que o maior número de casos se verificam. Até aos 21 anos e a começar nos 11, 12, 13.
Estamos focados, principalmente, nas faixas entre os 15 e os 18 anos. Claro que nas faixas um bocadinho mais cedo é mais um trabalho de sensibilização e de esclarecimento. Nestas faixas já dos 15 aos 18, além da sensibilização e do esclarecimento, uma vez que as pessoas já têm muitos conhecimentos sobre estas áreas, é já também uma questão de redirecionamento.
Enquanto chefe do Núcleo de Cibercrime DIC/PSP recorda algum caso em que a própria se tenha sentido impressionada com o método usado pelos burlões?
Não consigo dizer assim um em particular, mas os burlões são criativos. O que nós vamos vendo é que estão constantemente a inovar as formas de atuação. Agora não lhe consigo assim precisar nenhum em concreto. Isto é diariamente.
Vamos vendo que qualquer pessoa pode ser vítima
É possível dizer que o perfil das vítimas também diverge consoante a burla ou não há um perfil para cada tipo de burla?
Nós vamos vendo que qualquer pessoa pode ser vítima, independentemente de terem mais ou menos habilitações literárias, acaba por ser um bocadinho transversal.
Por exemplo, com o caso do ‘Olá mãe, Olá pai, aí sim verificamos que a maioria das vítimas eram mulheres e também a faixa etária era, em média, acima dos 70 anos.
O que também faz sentido tendo em conta o método que é usado para a burla, não é?
Sim. Nestas burlas há sempre o sentimento de urgência que é impresso pelos criminosos, há sempre o sentimento de urgência que impõem às vítimas. E, depois, é uma questão de relação parental, não é? E talvez por instinto maternal, ou seja o que for, as mães, se calhar, acabam por ter uma tendência para ir logo em socorro dos filhos. Também não sabemos se houve mais mulheres a receberem mensagens do que homens, o que sabemos é que houve mais mulheres a responder positivamente à solicitação das transferências de dinheiro.
Devemos desconfiar daquilo que parece muito fácil ou muito vantajoso - sabemos que não existem negócios gratuitos
Certamente, serão muitos os conselhos a deixar à população, já foi, aliás, deixando alguns ao longo desta entrevista. Mas quais são os essenciais?
O principal conselho é todos nós termos parte ativa na nossa segurança online. As pessoas estarem despertas e terem sempre atenção antes de efetuarem qualquer transação, seja por telefone, seja para um contacto de telefone, seja pela Internet, estarem sempre atentas.
Devemos desconfiar daquilo que parece muito fácil ou muito vantajoso - sabemos que não existem negócios gratuitos. Por exemplo, no caso dos arrendamentos, a pessoa deve sempre desconfiar se há uma casa, seja de férias ou de arrendamento a longo prazo, com um preço muito abaixo daquilo que é praticado na zona. E, nesses casos, as pessoas devem ter sempre atenção aos anúncios semelhantes que existem na área, devem pedir dados adicionais ao anunciante, dados que comprovem que o anunciante é o titular daquele bem que está a disponibilizar, que está a vender, ou que está, no caso das casas, a arrendar. Dados concretos que comprovem isso, um documento, uma fatura de água, de luz, etc, ou fotografias adicionais àquelas que a pessoa já tem publicadas, porque também vemos que as pessoas recorrem a anúncios que já existem na Internet e apropriam-se deles.
Quanto à questão das transferências de dinheiro, a pessoa deve evitar ao máximo fazer transferências ou pagamentos para contas estrangeiras. Até quando se faz uma transferência por multibanco, verificar se o nome que aparece no titular da conta corresponde à pessoa com quem se esteve a falar, com o nome que lhe foi dado inicialmente.
Há pouco falávamos de colaboração. Nesse ponto, sabemos que os bancos estão já a recorrer também a outros métodos para combater este tipo de fraude.
Os bancos estão interessados em colaborar porque isto também mexe com a imagem das instituições, obviamente. Assim como algumas plataformas também colaboram com a polícia e estão interessadas em esclarecer as pessoas. Há o caso da Airbnb, que já por dois anos fizeram campanhas de prevenção e de esclarecimento dos seus utilizadores.
No caso do Airbnb, o que é que nós víamos muito? Que as pessoas começavam os negócios na plataforma e, posteriormente, quando se tratavam de situações criminosas, os burlões sugeriam à pessoa que passasse a utilizar canais alternativos, a troco de baixar o preço porque não tinham de pagar a comissão à plataforma. Ou seja, sugeriam à pessoa que passasse a comunicar através do e-mail ou através do WhatsApp, com a desculpa de que assim não teria de pagar a comissão à plataforma e poderia baixar o preço à pessoa. Era aqui que começavam os problemas, porque, depois, a pessoa executa as transações fora da plataforma, a plataforma já não se responsabiliza, não indemniza a pessoa e a pessoa perde tudo, porque foi à procura de pagar um bocadinho menos e acaba por perder muito mais.
Nós também aconselhamos sempre as pessoas a utilizarem os serviços que são disponibilizados pelas plataformas e a não recorrerem a canais alternativos quando estão a efetuar este tipo de transações. Porque as plataformas são legítimas, têm esse tipo de serviço e são seguras. Por vezes, o que acontece, mas isso também decorre da legislação, é a falta de obrigatoriedade das pessoas terem de fornecer documentos legítimos quando se registam em determinadas plataformas e criam anúncios. Porque na venda de artigos online e com a criação de anúncios, o que vemos é que muitas plataformas não pedem muitos dados às pessoas para se inscreverem e colocarem anúncios. São dados genéricos e alguns nem são verificáveis, uma conta de e-mail, um número de telefone, quando sabemos perfeitamente que os números de telefone podem ser cartões pré-pagos, os e-mails também podem ser criados em e-mails temporários só para este fim, que depois desaparecem e não têm registo. Aqui também há algum trabalho que deveria ser feito ao nível de criar uma obrigatoriedade do registo nas plataformas ser mais exigente, obrigar a que as pessoas forneçam dados que depois são verificáveis.
Talvez o conselho principal seja desconfiar sempre, certo?
Sim. Desconfiar, estar alerta, porque muitas vezes os sinais estão lá, a pessoa é que, com a urgência do dia a dia ou porque viu ali uma boa oportunidade, acaba por descurar um bocadinho a atenção e este fator de estarmos alerta e desconfiarmos um bocadinho daquilo que parece muito bom e muito fácil.
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