"Há muito 'azeite' a passar nas rádios portuguesas"
Tem uma carreira extensa mas só agora lançou o seu primeiro álbum a solo. DJ Glue é entrevistado do Vozes ao Minuto.
© Global Imagens
Cultura DJ Glue
Durante anos foi um dos rostos dos Da Weasel, um dos grupos de maior sucesso na história do hip-hop nacional. Com uma carreira de 20 anos como DJ, Miguel Negretti mais conhecido como DJ Glue, que esta semana atuará no NOS ALIVE, lançou recentemente o seu primeiro álbum a solo, à procura do reconhecimento que a indústria só parece dar depois de se editar um trabalho.
‘Goodies’ é o nome do álbum que apresenta sonoridades distintas e que conta com várias colaborações.
Mas para lá do prazer que tem em fazer música, também tem uma faceta empresarial. Já detinha a Montana, uma loja/café e pouco depois de lançar o álbum abriu o Café de Finca. Os dois espaços refletem o gosto que o DJ Glue tem pelo café de especialidade e que pretende incutir aos portugueses.
Foi no Café de Finca que o Notícias ao Minuto se sentou para saber mais sobre ‘Goodies’ mas também sobre o momento da música nacional.
Este álbum era o passo que faltava na sua carreira?
Sim, eu fiz este EP em parte devido a uma imposição da indústria, pois dão-nos mais crédito se tivermos lançado algum trabalho, embora eu já tenha uma carreira de 20 anos como DJ. Agora, como as coisas acontecem tão rapidamente, a primeira coisa que perguntam é ‘Onde é que podemos ver o teu trabalho?’. E sem ser ‘mixtapes’ e alguns sets que tenho online, eu não tinha nenhum original. Só produções para outros artistas. Por isso é que resolvi fazer este EP. Para mais tarde conseguir chegar a um público maior como DJ e assim já posso dizer que tenho um trabalho.
Já tinha algumas ideias para um álbum original ou foi algo que surgiu no momento de produção?
Comecei a trabalhar e o processo foi um pouco mais lento porque a Montana [um café/loja do qual é proprietário] mudou de local e cresceu um pouco mais para passar a ter uma cafetaria. Também fui pai. Isso foi atrasando o processo de fazer o álbum. Mas foi tudo muito natural. Foi começar a compor. Depois quando já tinha as bases feitas falei com as pessoas que gostava que colaborassem comigo neste álbum. Com o Karlon, Dino D’Santiago, Beatriz Pessoa. Falei com eles, enviei-lhes as coisas e depois fluiu tudo a partir daí.
As pessoas devem perceber que os produtores têm um papel tão importante como os rappers, e por vezes isso cai um bocado no esquecimento
O álbum conta com várias colaborações. Já tinha pensado nalgumas destas colaborações anteriormente?
Cada uma delas tem a sua história. O Carlão obviamente ando com ele na estrada e já temos o historial de Da Weasel e era fácil fazermos alguma coisa juntos. O Karlon, dos Nigga Poison, também é uma pessoa que eu já admiro há muito tempo. A Beatriz é uma artista da mesma agência que eu, a Arruada. E eu procurava uma voz mais doce para aquele beat especificamente. A Rita Vian também foi por motivos semelhantes para um beat que era meio indie e ela era a pessoa indicada porque faz parte de um projeto que são os Beautify Junkyards, de música indie. O Scratch é um amigo de há muitos anos e que está no rap português há muito e não edita nada há vários anos. O Dino D’Santiago é o meu ‘bro’ desde há muito tempo e aquele beat já estava demasiado pesado e eu queria uma voz para contrabalançar. Ele fez-me o refrão na hora por isso foi tudo muito rápido.
O ‘Goodies’ tem sonoridades muito distintas. Nota-se isso nas músicas. Tem a ver com a sua personalidade?
Tem a ver com o meu ADN desde sempre. De música eletrónica, soul, jazz, muitas coisas. Obviamente o hip-hop. Mas não é rap chapado com rimas e beat.
Como é que define o ‘Goodies’?
É isso mesmo um pack de ‘goodies’ (guloseimas, coisas boas) . Cada música tem a sua ‘vibe’, o seu convidado. A última música do EP é só instrumental. São coisas boas para o pessoal ouvir e sentir.
Acho que estamos a chegar a uma fase de peneirar (...) Vão ficar os que têm qualidade e vão cair aqueles que não têm
Vai ter um verão muito preenchido com concertos para promover o álbum?
Sim, as coisas vão começar a acontecer. Se calhar o timing de lançamento não foi o perfeito, porque para aproveitar os concertos no verão os álbuns costumam ser lançados um pouco antes. Mas já tenho algumas coisas marcadas. Dos mais importantes, tenho a curadoria no NOS Alive no Palco Coreto no dia 12 de julho [próxima quinta-feira]. Vou fazer uma batalha de produção, só de coisas nacionais.
O NOS Alive é um palco interessante, até se pensarmos no nome que o festival já tem lá fora.
E ter uma curadoria é muito bom. Fui eu que escolhi todas as pessoas que vão lá e é muito bom ter essa oportunidade para mostrar outros sons portugueses bons. Esta batalha de produção vai ser algo essencial no momento em que estamos para as pessoas perceberem que os produtores têm um papel tão importante como os rappers, e por vezes isso cai um bocado no esquecimento. As pessoas centram-se no rapper que está a debitar letras e esquecem-se um bocado da produção, e a ideia é mostrar boa produção ao nível do que se faz lá fora.
A cena musical em Portugal está mais interessante, mais diversificada. No caso particular dos DJs temos vários que estão a ter sucesso cá mas também lá fora. Acha que em Portugal ainda não há muito reconhecimento para o trabalho de DJ?
Há mais coisas com qualidade e isso deve-se ao facto de ser cada vez mais fácil produzir música. Acho que estamos a chegar a uma fase de peneirar, como se faz para se encontrar ouro na areia. Ou seja, tens muitas coisas e agora está na altura de peneirar. Vão ficar os que têm qualidade e vão cair aqueles que não têm qualidade. O mesmo acontece com os DJs. Surgiram tantos que agora, como os níveis de exigência vão subir um bocado, as pessoas vão ver o que tem qualidade e o que não tem. Estamos num ponto bom de mudança nesse aspeto.
As pessoas não se devem deixar enganar por uma opinião. Há muito ‘azeite’ a passar nas rádios
Já tem bastantes anos de experiência. Como é que tem acompanhado esta evolução da música e o surgimento de outros estilos?
Eu tenho é dificuldade em acompanhar tudo. Porque há tanta coisa a aparecer e tão rapidamente. Isto é bom para nós. A música faz parte da minha vida e eu costumo procurar música nova diariamente mas é difícil estar a par de tudo.
Atualmente há uma facilidade de acesso à música muito maior. Com plataformas como o Spotify, por exemplo. Como há tanta quantidade, parece que muitas músicas passam despercebidas ou então são sucessos cada vez mais instantâneos.
A música fica mais descartável. Sai um álbum agora e se não for muito falada, se calhar as pessoas passam faixa a faixa e ouvem só um bocado. A triagem é mais rápida e pode perder-se música de qualidade. Eu faço a minha música. Continuo a incentivar as pessoas a tentarem procurar coisas de qualidade e… não se deixem enganar, pesquisem bem. Na rádio faz-se uma seleção aleatória da música que deve passar e as pessoas por vezes são levadas por isso. As pessoas podem encontrar tanta música boa. Devem ter a mente aberta.
Acha que esse é outro dos problemas. As rádios principais passarem mais música 'mainstream' e não apostarem tanto em sons mais alternativos?
Sim, porque nesta era onde temos tanta música disponível uma rádio grande é uma influência para muitas pessoas. Quem é que decide a playlist de uma rádio? É a opinião de poucas pessoas. As pessoas não se devem deixar enganar por uma opinião. Há muito ‘azeite’ a passar nas rádios.
Só tenho pena que esse percurso, e não só dos Da Weasel mas também de outras bandas que eram grandes nessa altura, não seja respeitado pelo pessoal mais novo
A Arruada, a Príncipe, têm feito esse trabalho de apostar em estilos e sonoridades diferentes. Em DJs, em música com influência africana. Quão importante tem sido essa aposta?
Lisboa dá as coordenadas para o resto do país e depois este estilo, esta fusão nossa com a música africana, no fundo, é a afirmação do universo dos PALOP, da música negra. É uma influência que nós temos, que está a revelar-se e a passar muito bem lá para fora. Editoras como a Príncipe que têm noites em Lisboa também já têm noites lá fora. O mesmo se passa com a Enchufada. E eu quero fazer o mesmo com o hip-hop com as noites C.R.E.A.M, quero levar essa sonoridade para fora.
Teve durante bastante tempo com os Da Weasel, uma das grandes referências do hip-hop português, e num dos períodos mais marcantes com os concertos que encheram o Pavilhão Atlântico (agora Altice Arena). Como é que foi a experiência de fazer parte daquele grupo?
Todo o percurso com os Da Weasel foi o que me fez crescer e me tornou no que sou hoje. Só tenho pena que esse percurso, e não só dos Da Weasel mas também de outras bandas que eram grandes nessa altura, não seja respeitado pelo pessoal mais novo agora, que eles não queiram conhecer a história. O hip-hop cá não tem uma cena assim tão grande e quem está dentro do hip-hop devia conhecer um pouco mais, como eu fiz antes de começar. Os que estão agora a fazer rap e se tornaram famosos, estão a consegui-lo porque alguém antes lhes abriu as portas.
DJ Glue durante a sua atuação no Caparica Primavera Surf Fest© Global Imagens
O hip-hop agora já é um estilo com uma aceitação maior em Portugal. Quando entrou para os Da Weasel ainda não era assim?
Sempre fomos um país onde as coisas chegaram com um atraso grande. Felizmente, chegámos a este ponto. Mas isso aconteceu porque muitas pessoas batalharam para isso. Houve muitos concertos sem ninguém ou com pouca gente, mas continuámos. Eu continuo a fazer coisas que fazia há 20 anos. Eu tenho perfeita noção de que bandas como os Da Weasel, e eu próprio, abrimos as portas. Antigamente não havia tantos miúdos nos bairros a quererem fazer música e isso aconteceu por algum motivo, porque houve um crescimento grande deste estilo.
Vocês costumam falar sobre um regresso dos Da Weasel?
Estão sempre a fazer-me essa pergunta e a percentagem com que digo que a banda vai voltar é exatamente a mesma com que digo que a banda não vai voltar. Podem ligar-me agora e dizerem ‘Vamos ensaiar porque vamos começar a tocar outra vez’ ou não acontecer isso. A probabilidade é a mesma. Nós damo-nos todos muito bem e é só querermos.
Em Portugal as coisas, se calhar, são mais complicadas mas eu vou continuar a fazer o meu trabalho cá, a espalhar a minha mensagem
A acontecer será algo do momento?
Sim, é tão simples como isso. Mas se não acontecer também está tudo bem porque estamos todos com outros projetos agora.
Lançou agora o álbum e vai promovê-lo. Que outros planos tem a médio/longo prazo?
Eu sou DJ e quero continuar a ser DJ, a crescer como DJ, a aprender mais coisas, a tocar mais. Esse é o meu objetivo, tocar mais, principalmente lá fora. Aqui as coisas, se calhar, são mais complicadas mas eu vou continuar a fazer o meu trabalho cá, a espalhar a minha mensagem. Este ano já concretizei bastantes coisas que queria concretizar e vou continuar com esta missão.
Além da música, tem esta faceta empresarial. Já tinha a Montana e agora abriu este novo espaço, o Café de Finca. De onde vem este interesse pelo café, particularmente pelo café de especialidade?
Já tinha a Montana há nove anos. Inicialmente estava no Bairro Alto e há dois anos mudei o espaço para o Cais do Sodré e senti a necessidade de ter uma cafetaria porque o espaço assim pedia e também foi uma forma de potenciar mais o negócio. Como tinha uns amigos meus em Barcelona que tinham uma torrefação começámos a trabalhar na Montana com cafés de especialidade. São cafés de altas altitudes, que têm menos cafeína, são colhidos à mão e a forma de prepará-los é totalmente diferente do que se faz numa pastelaria normal. Então, o intuito é que vejam o café mais como um vinho. Antigamente as pessoas iam a um restaurante e tinham só vinho branco, tinto ou verde. Agora têm castas e vários tipos de sabores. Têm casas de vinho. E quero levar o café nesse sentido. O café não é só uma dose de cafeína diária, é algo que se pode degustar.
Comecei a fazer esse trabalho na Montana e em conjunto com os meus sócios pensámos que devíamos aprofundar mais a aposta no café de especialidade em Lisboa. Na Montana já tínhamos café de especialidade, mas como o espaço funciona numa parceria com a Underdogs também é uma art store, vendemos material de pintura e depois há a cafetaria. As pessoas veem aquilo como um espaço fixe, mas não como uma cafetaria. O café não recebe toda a atenção apesar de ser um produto premium. Então, a ideia foi abrir só uma cafetaria de especialidade em Lisboa. A direção de alguns espaços que abriram na cidade foi um pouco com a ideia de terem apenas pratos bonitos para o Instagram. Têm o café mas ele não tem essa força. Aqui queremos dar-lhe essa importância. Tanto que um dos nossos slogans é ‘Make coffee great again’ (‘Faz o café grande de novo’).
O objetivo era também aproveitar esta onda de turismo em Lisboa, com vários espaços de restauração a abrirem em vários locais da cidade?
Sim, a nossa intenção era essa. Aqui em Alcântara também havia poucas coisas. É um dos poucos bairros perto do centro de Lisboa onde ainda é possível aos jovens arrendarem casa. É o único bairro de Lisboa que não tem a EMEL. Não tem estacionamento pago e é um bairro super interessante, que tem crescido imenso e nós também queremos contribuir para esse crescimento. É muito bom os bairros terem espaços de autor e não só espaços como a Padaria Portuguesa, que rapidamente se tornou num franchise que há em todo o lado e os produtos perdem rapidamente a qualidade. São preços baratos para estarem sempre cheios mas há pouca qualidade. E nós queremos apresentar um produto de qualidade e oferecer outra opção às pessoas. Contribuir para a vida da cidade.
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