"Somos um choco que tem uma cabeça grande, mas não tem perninhas"
No dia em que se assinala uma importante efeméride a nível internacional contra o consumo e o tráfico de droga, o presidente do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências é o entrevistado do Vozes ao Minuto.
© Blas Manuel / Notícias ao Minuto
País João Goulão
João Goulão formou-se em Medicina e, desde muito cedo, começou o seu trabalho ligado à toxicodependência. À frente do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD) – antigo Instituto de Droga e da Toxicodependência – desde 2012 (quando foi criado), o especialista diz ao Notícias ao Minuto que todos os dias surgem desafios no âmbito das dependências.
Os mais preocupantes prendem-se com os consumidores de estupefacientes de há muitos anos, pois muitos sofreram recaídas durante a crise.
Preocupante é também o modelo de combate à toxicodependência que está atualmente em vigor. João Goulão garante que com a mudança de "instituto" para "direção-geral" perdeu-se a "proximidade" com aqueles que mais precisam de apoio.
Estas questões, e não só, estão em debate desde ontem no III Congresso do SICAD, que se está a realizar no Centro Cultural de Belém, em Lisboa.
Hoje assinala-se o Dia Internacional Contra o Abuso e o Tráfico Ilícito de Droga. Qual é o panorama português nesta área?
Há uns anos vivemos uma situação calamitosa, mas foram desenvolvidas políticas que têm sido globalmente bem sucedidas. A evolução global da problemática da droga em Portugal tem sido positiva, mas não é um problema resolvido na nossa sociedade e há novos desafios.
Que novos desafios são estes?
O surgimento de novas drogas e também o envelhecimento da nossa população antiga utilizadora de drogas que, nos últimos anos, foi particularmente atingida pelas consequências da crise económica e social que nos afetou.
A crise potenciou o regresso ao consumo de estupefacientes?
Sim, assistimos nessa altura a um número muito significativo de recaídas de antigos utilizadores de heroína que tinham organizado as suas vidas em moldes novos e que nessa altura tiveram recaídas. E isso coloca-nos novos desafios porque, além de terem retomado o consumo, são pessoas menos recetivas à intervenção, razão pela qual se coloca agora em cima da mesa novas respostas, como são as salas de consumo assistido.
Hoje temos um mandato alargado para além das substâncias ilícitas. Trabalhamos com outro tipo de comportamentos aditivos, como álcool ou jogo Porque é que o Instituto da Droga e Toxicodependência (IDT) é agora o o Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD)?
Foi uma decisão inovadora, pois hoje temos um mandato alargado para além das substâncias ilícitas. Trabalhamos com outro tipo de comportamentos aditivos, como o álcool, o jogo, entre outros.
Foi por isso que mudou de nome?
É um dos motivos. Deixámos cair a questão da droga por causa do estigma ligado à palavra. Quando passámos a lidar com o alcoolismo era difícil para as pessoas com problemas ligados ao álcool deslocarem-se aos centros de atendimento para toxicodependentes.
Qual é então a diferença entre o IDT e o SICAD?
O IDT era um instituto, o SICAD é uma direção-geral e, por isso, tem características diferentes do primeiro. O IDT era um instituto público com a capacidade de pensar as políticas e de as operacionalizar no terreno através de unidades próprias. Hoje as coisas são diferentes: o SICAD não tem unidades, tudo o que é intervenção direta no terreno passou para a dependência das Administrações Regionais de Saúde (ARS). O IDT tinha 1.800 profissionais, o SICAD tem 80, pois todo o pessoal das equipas de atendimento que estão no terreno passou para as equipas das ARS.
E isto prejudica ou facilita o acompanhamento à comunidade dependente?
Do meu ponto de vista não facilita. As coisas tornaram-se muito mais mediadas quando antigamente era muito mais ágil a interação entre as pessoas e os órgãos com responsabilidade de pensar e desenhar as políticas e a sua execução no terreno. Agora há muitos intermediários e a harmonização entre as cinco regiões é bem mais complicada.
Governo anterior tinha uma sanha assassina contra fundações e institutos que eram tidos como gastadoresEntão porquê passar de instituto a direção-geral?
Isto foi decidido pelo governo anterior que tinha uma sanha assassina contra fundações e institutos que eram tidos como gastadores. Inclusivamente estive com o então ministro Paulo Macedo que me perguntou o que eu gostaria que acontecesse e eu disse que o que gostaria era que o IDT se transformasse no ID – Instituto das Dependências… Fomos surpreendidos com a extinção do IDT e com este novo formato cujo objetivo seria o de facilitar a interpenetração com o Serviço Nacional de Saúde no seu conjunto, um maior envolvimento de médicos de família, uma maior acessibilidade a respostas até de âmbito hospitalar…
Teoricamente soa bem…
Sim, mas na prática, até agora, não funcionou e tenho defendido publicamente, não necessariamente um regresso ao modelo IDT, mas a recriação de uma entidade com capacidade de pensar as políticas e executá-las diretamente e que tenha uma agilidade que hoje não temos de acorrer às necessidades das populações.
Este modelo está a colocar em causa o apoio a quem precisa?
Há dificuldades na articulação entre as estruturas de redução de danos e as estruturas de tratamento, há dificuldades na referenciação de doentes para respostas de outros tipos nomeadamente a nível hospitalar... O que teoricamente parecia um capital de ganho possível na prática não tem acontecido.
Em meados de 90 tínhamos 100 mil utilizadores problemáticos de droga, especialmente de heroína. Hoje em dia temos metadeA toxicodependência deixou de preocupar a sociedade?
Em meados dos anos 90 tínhamos 100 mil utilizadores problemáticos de droga, especialmente de heroína. Hoje em dia temos metade e a maior parte está em tratamento, está a ser acompanhada. Ou seja, o impacto público do fenómeno baixou muito significativamente e com ele o impacto político. Fizemos bem demais o nosso trabalho [risos].
É quase um problema escondido?
É, porque ele está cá e temos algum recrudescimento de alguns aspetos do fenómeno. A nossa grande preocupação hoje, no campo das drogas ilícitas, é o envelhecimento da população, bem como as questões relacionadas com a canábis e as novas substâncias psicoativas. No campo das lícitas é o álcool, que é um problema de enorme dimensão na nossa sociedade, e depois problemas como a dependência do jogo, de um ecrã, etc.
O IDT era um polvo, tinha uma cabeça pequenita mas pernas compridas; o SICAD é um choco, tem uma grande cabeça mas não tem perninhasComo se faz frente a estas questões?
Para fazermos face a isto precisamos de alguma renovação nos nossos quadros profissionais. Grande parte dos profissionais está a sair e há toda uma cultura, que foi entretanto desenvolvida e que teve bons frutos, que não vai ser transmitida porque não existe nenhum mecanismo de recrutamento de novos profissionais.
Tendo em conta o panorama que está a revelar, qual é então o papel do SICAD atualmente?
Neste momento, o SICAD, enquanto direção-geral, tem um papel que podemos comparar um bocadinho à Direção-Geral da Saúde, relativamente a outras áreas de intervenção. Em poucas palavras, nós desenhamos as políticas e os planos de intervenção, mas depois a sua execução prática compete a outros. O SICAD é a cabeça do monstro. O IDT era um polvo, tinha uma cabeça pequenita mas pernas muito compridas; o SICAD é um choco, tem uma grande cabeça mas não tem perninhas. Perdemos eficácia nestas respostas de proximidade e na agilidade que essa proximidade acarreta. É isto que sentimos.
*Pode ler a segunda parte desta entrevista aqui.
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