"Se fosse Marcelo contra o tio Mário, votaria Marcelo"
Eduardo Barroso, cirurgião, sobrinho de Mário Soares e amigo de infância de Marcelo Rebelo de Sousa, é o entrevistado de hoje do Vozes ao Minuto.
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País Eduardo Barroso
Os olhos ficam marejados de lágrimas quando se recorda das palavras do avô: "Um dia vais perceber que isto era o paraíso". A reminiscência reporta-se às férias que passava na companhia dos irmãos e dos avós nas praias então despovoadas do Algarve.
Mas esta é apenas uma das memórias que se avivam na lembrança de Eduardo Barroso à medida que a conversa com o Notícias ao Minuto se delonga, perdida nas recordações de uma vida passada entre a sala de operações, a família e os amigos.
Memórias estas que serão eternizadas nas páginas de um livro - uma obra que coroará a despedida do Serviço Nacional de Saúde que está para breve. Ainda não descalçou as luvas de cirurgião, mas no seu semblante já são notórias as saudades que terá das longas horas no bloco a dar uma nova vida a um paciente que esperava um transplante hepático. Saudades daquela que foi, ao longo dos últimos anos, a sua segunda casa, o Hospital Curry Cabral.
Sempre comprou os jornais desportivos, um hábito que mantém ainda hoje, ou não fosse o "querido Sporting" o clube do coração. Aliás, o verde e o branco marcaram a sua juventude, sendo disso prova as fotos que guarda de quando envergava a camisola do Sporting de Cuba do Alentejo.
Mais do que memórias, as fotos a preto e branco que traz consigo documentam a história de uma vida, pautada por conquistas e desafios. E é lá também que guarda com carinho a mensagem que, um dia, os pais de Marcelo Rebelo de Sousa lhe escreveram.
Marcelo tem, aliás, direito a um capítulo dedicado não no livro que Eduardo Barroso escreverá, mas na sua vida, ou não fosse o atual Presidente da República o amigo de infância que conheceu aos 16 meses e com quem partilhou os bancos de escola. E foi por Marcelo que votou, pela primeira - e única - vez longe da sua ideologia partidária.
Recorda com saudade o tio Mário Soares, trata por tu Jorge Sampaio, tem em Marcelo o melhor amigo.
Deixou o tabaco e o Cutty Sark que bebericava à noite antes do charuto, e faz agora planos para a reforma, onde vestirá "a camisola" de uma instituição de saúde privada.
Este ano anunciou que está para breve a sua saída do Serviço Nacional de Saúde (SNS), já tem data?
Na Função Pública, a reforma aos 70 anos é obrigatória. E, por isso, está na minha altura. Tal como diz o meu amigo cirurgião cardiotorácico de Coimbra, Manuel Antunes, que completa 70 anos no próximo dia 21, gostava de continuar, mas é obrigado a sair, tal como eu. Embora gostasse de cá ficar [no Hospital Curry Cabral], tenho plena consciência de que é preciso renovar.
O caminho agora passará pelo setor privado?
Manuel Antunes, por quem tenho estima e admiração, irá agora passar a trabalhar no privado, coisa que nunca fez até então. Nesse aspeto ele foi de uma coerência absoluta porque sempre achou que a promiscuidade entre o público e o privado era um aspeto negativo. E em parte tem razão.
Mas eu sempre defini que essa promiscuidade não era negativa se fosse desempenhada com inteira separação, por exemplo como exerci no Amadora-Sintra, onde fazia o meu horário público e, a partir das 16h00, no mesmo local, dedicava-me à parte privada, sem colidir com os horários do público.
Há alguns [médicos] que dão mais ao privado do que ao público, isso é uma vergonhaQual era a vantagem desse regime?
A vantagem é que, estando lá, estava disponível para os meus colaboradores do público quando precisassem de mim. Agora há alguns que dão mais ao privado do que ao público, isso é uma vergonha. Isso passa-se até mesmo aqui no Centro Hospitalar de Lisboa Central e com pessoas com responsabilidades de chefia.
Já eu farei 70 anos no dia 26 de janeiro de 2019 e, teoricamente, tenho 26 dias úteis de férias. Portanto, a partir de 1 de janeiro teria de meter férias para as gozar e já não trabalharia a partir da altura do Natal. Mas talvez saia um mês ou dois mais cedo.
Tenciono, porém, começar o ano letivo em setembro porque assim poderei continuar a ser o regente de uma cadeira do 3.º ano.
Não tenho falsas modéstias, na área do cancro do pâncreas e do fígado construímos, aqui no Curry Cabral, o maior centro ao nível nacionalE na vertente clínica, onde poderemos encontrá-lo a partir dessa altura?
Já tenho um part-time na Fundação Champalimaud há quatro ou cinco anos. E é lá que, juntamente com alguns elementos da minha equipa, me dedico à vertente cirúrgica do cancro do fígado e do pâncreas.
E mais recentemente tive a felicidade de a Fundação me ter desafiado para, depois da minha saída, transformar esse part-time num full-time, ao qual me dedicarei enquanto tiver saúde e a cabeça estiver bem.
Não tenho falsas modéstias, na área do cancro do pâncreas e do fígado construímos, aqui no Curry Cabral, o maior centro ao nível nacional. O segundo será, em termos de volume e forma de trabalhar, o Hospital de São João no Porto.
Costumo dizer, no bom sentido, que criei um monstro porque temos doentes a mais E quais são os pilares de diferenciação do Serviço do Curry Cabral?
Fomos pioneiros porque implementámos um modelo assente em equipas multidisciplinares de decisão que traduz a minha visão. Fomos nós que começámos a fazer esta abordagem a este tipo de doenças e já lá vão quase 30 anos. Costumo dizer, no bom sentido, que criei um monstro porque temos doentes a mais.
Aliás, este é o melhor centro de radiologia de intervenção do país. E vamos inaugurar brevemente o melhor aparelho de radiologia de intervenção, único no país. Revelo-o com grande orgulho, em primeiro lugar, porque lutei por ele, juntamente com a minha administração, e depois porque a sua aplicação manter-se-á após a minha saída.
Eu visto camisolas. Em part-time vestem-se t-shirts. E a minha camisola principal era esta. Agora vou tentar, com a minha experiência, preparar a Fundação Champalimaud para o futuro, vestindo essa camisola.
Quando sair e olhar para trás, ficará satisfeito com o estado do SNS?
Quando comecei a minha vida hospitalar não havia Serviço Nacional de Saúde, era uma tragédia; as pessoas morriam sem assistência médica. Sou do tempo em que uma das patologias mais frequentes dos bancos de hospital eram as hérnias estranguladas que, como não eram operadas antes, apareciam às catadupas. E os tumores surgiam em oclusão intestinal muito mais do que aparecem hoje porque não eram detetados a tempo.
Fui um dos mentores do Serviço Médico à Periferia e é uma das coisas que mais me orgulho de ter feito e de ter contribuído, juntamente com os colegas da minha geração. Íamos para a província auscultar doentes que nunca tinham tirado a roupa para serem vistos por um médico. As senhoras olhavam para nós assustadas por termos de pôr o estetoscópio junto à pele.
No Hospital de São José, onde fiz as primeiras operações, o cenário era tão mau que uma vez, estava eu com o chefe Câmara Pestana, e entra um senhor com um cão. Quando foi interpelado justificou que passava por ali para cortar caminho. Para passarem do Martim Moniz para o Campo dos Mártires da Pátria, muitas vezes as pessoas passavam pelo interior do hospital; não havia controlo.
Recordo-me, inclusive, que o senhor que vendia jornais, entrava e deixava os desportivos, que sempre comprei, em cima de instrumentos esterilizados. “Dr., fica aqui o jornal e depois paga”, dizia.
Mas a realidade hoje é bem diferente, aqui no Curry Cabral, a sala de cirurgia e os cuidados intensivos estão equipados ao nível dos privados. Não tem os luxos nem as palmeiras, mas temos condições infraestruturais para tratar os doentes. Aliás, e agora teremos um equipamento de radiologia de intervenção que nem os privados têm. Mas em termos humanos e científicos, é impossível reproduzir o que fazemos aqui.
Considerando o que encontrei quando cá cheguei com o que deixo, é como comparar um Rolls-Royce com um Fiat 600
E quanto ao Centro Hepato-bilio-pancreático e Transplantação do Hospital Curry Cabral, ficará em boas mãos?
Fica, tem de ficar, a responsabilidade é minha. Há um ditado português que diz que atrás de mim virá quem bom de mim fará. É uma forma de dizer que o valor só será reconhecido quando se sente falta. Mas eu costumo dizer que atrás de mim virá quem melhor fará. Todavia, não sou falso modesto. Considerando o que encontrei quando cá cheguei com o que deixo, é como comparar um Rolls-Royce com um Fiat 600. Porém, esta não é nenhuma crítica ao meu antecessor. Aliás, cheguei a prestar uma homenagem - ‘Valeu a Pena’ -, ao meu querido amigo e mestre João Pena.
Deixa o Serviço com uma marca importante: Mais de 2 mil transplantes hepáticos realizados.
Sim, mas inicialmente o Dr. Pena não concordava muito com esta conceção do Centro Hepato-bilio-pancreático. Tinha receio que eu descurasse a parte da transplantação que era os olhos da cara dele, uma vez que ele foi pioneiro. O Dr. Pena receou que, ao englobar também esta ambição, a parte da patologia do pâncreas e da vias biliares, descuidasse os transplantes.
Mas quando olhou para os valores da transplantação, que duplicaram, ficou muito orgulhoso. Aliás, referiu esse aspeto no capítulo de um livro que escreveu agora. No fundo, percebeu que se não fosse o Eduardo a ter também expandido a ambição para lá da vertente do transplante, este tinha caído. Reconhece que criámos um monstro, no bom sentido, e que agora somos indestrutíveis. Não há ninguém que, mesmo que por maldade política, consiga acabar com o Centro. Mas se nos tivéssemos dedicado apenas ao transplante já estaríamos mais vulneráveis. Nós blindámos isto.
Mas já tem um nome para o seu sucessor?
Neste momento a Faculdade está a fazer algumas pressões para que o meu substituto tenha forçosamente de ser doutorado. O que não é grave porque tenho cá quatro, mas o meu número dois atual, que seria o meu sucessor natural, não o é, nunca sentiu essa necessidade. Penso que não é uma boa ideia comprarmos essa guerra, até porque ele só quer ficar um ano e quatro meses depois de eu sair. Irrita-me um bocadinho que seja feita esta pressão para que o sucessor seja doutorado, ainda por cima exercida por pessoas que não nos querem bem. Querem introduzir aqui areia na engrenagem, mas vão enganar-se, porque vamos conseguir compatibilizar a posição do doutorado com o meu número dois, fazendo a transição de forma a que ninguém se sinta humilhado.
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Recorda-se do primeiro transplante que realizou?
Como se fosse hoje, do primeiro e do segundo. Estávamos em setembro de 1992.
O Dr. Pena foi precursor na área dos transplantes. Lutou pela legislação, foi para Cambridge aprender e tinha muita experiência sobretudo no transplante renal, mas nunca se interessou por fazer cirurgia do fígado. Foi um dos cirurgiões que ajudou a realizar o primeiro transplante hepático na Europa, em 1968 – o primeiro a ser feito foi nos EUA em 1963. Mas desde que regressou, até se dar início ao programa, nunca mais abordou a cirurgia de fígado.
E, por isso, quando chegou a altura de fazermos o primeiro transplante hepático, começámos por combinar em pormenor como iríamos proceder. Perguntei-lhe se queria começar e depois trocávamos. Respondeu-me que não. Que deveria ser eu a fazer a cirurgia e ele estaria lá para me ajudar. Optou por aproveitar o facto de eu ter vindo da Europa onde tive oportunidade de ajudar a realizar cerca de 70 transplantes hepáticos.
E os cirurgiões do Serviço estão aptos a continuar o percurso sem a sua colaboração?
Eles já não precisam de mim na parte técnica. Aliás, às vezes até são mais agressivos. Mas precisam de mim para saberem quando devem operar.
Os internos precisam de cinco anos comigo para estarem aptos na parte técnica, mas precisam de uma vida toda para saberem quando não devem operar. E aqui é que eu sou um ‘input’ importante.
A vida amolece-nos no bom sentido. Mas se em cima disso nos põem a luta como um cancro, perdemos o critério do rigorO Curry Cabral é um centro de referência para o transplante hepático. Esta foi uma reforma introduzida pelo ministro Paulo Macedo. É, no seu entendimento, uma das mais importantes do SNS?
Ninguém defendeu os centros de referência em Portugal mais do que eu. Esta é a reforma estrutural mais importante que há, mas pecou por um defeito enorme. Quando as leis são boas, se não forem cumpridas, é pior do que se não existissem.
Quem foi nomeado para presidente da Comissão Nacional para os Centros de Referência, com a minha opinião positiva, foi o professor João Lobo Antunes, e tinha tudo para ser um presidente fantástico, como aliás foi. Uma figura prestigiante, muito inteligente, sensível, muito a favor dos centros de referência, em suma um homem muito culto. Tinha todo o perfil. Mas depois teve um cancro da pele que parecia que estava controlado até que infelizmente voltou a aparecer. E quando isso aconteceu notou-se ali uma certa permissividade na atribuição dos últimos centros de referência. Não é nenhuma crítica. Eu, aos 69 anos, também não sou tão radical como era aos 50. No lugar dele, aos 50, chumbaria dois terços, hoje só chumbaria um terço dos centros. A vida amolece-nos no bom sentido. Mas se em cima disso nos põem a luta como um cancro, perdemos o critério do rigor, somos mais permissivos.
Agora, temos à frente dos centros de referência alguém que corta a direito. O professor António Ferreira, que esteve mais de uma década a dirigir um dos maiores hospitais do país, o Hospital de São João, é um homem que já apreciava a partir das suas intervenções públicas. E eu fui, aliás, nomeado para integrar as primeiras comissões de gestão, mas não fazia sentido porque eu era um dos mais implicados e mais fervorosos.
Deixei de fumar por uma promessa que fiz aos meus netos. Não podendo fumar, não me apetece beber o habitual Cutty Sark, à noite. Aquilo já não me sabe bem Costuma dizer que “a saúde é um estado transitório que não augura nada de bom”. Já apanhou um susto. Ainda fuma?
Deixei de fumar por uma promessa que fiz aos meus netos, até porque a minha irmã morreu de cancro do pulmão. E não podendo fumar, não me apetece beber o habitual Cutty Sark, à noite, o que fazia antes do charuto. Aquilo já não me sabe bem.
A sua saída do SNS será coroada com o lançamento de um livro. Tratar-se-á de uma autobiografia?
Sim, estou a escrever um livro. Não será um livro autobiográfico, mas terá muito que ver com o meu percurso hospitalar.
O meu avô dizia-me na altura: Um dia vais perceber que isto era um paraíso. Sabe o que é a Praia dos Três Irmãos vazia? Reparo que tem em cima da sua secretária o último livro lançado por Miguel Sousa Tavares, ‘Cebola Crua com Sal e Broa’. Será algo do género?
Gostei imenso. Aliás, até lhe enviei uma mensagem. E a forma como acaba, com o último capítulo dedicado ao Algarve - ‘O Verão, o Algarve e a descoberta do paraíso’ -, chegou a emocionar-me. Chorei porque tive a mesma experiência, talvez um bocadinho mais cedo.
A ida para o Sul do país, atravessar de barco para o Barreiro. E quando lá chegava aquilo era uma pasmaceira. O meu avô dizia-me na altura: Um dia vais perceber que isto era um paraíso. Não havia ninguém na praia. Sabe o que é a Praia dos Três Irmãos vazia? E hoje para irmos ao banho é preciso pedir licença para passar. Só estávamos nós e a minha avó que batia com uma colher para nos chamar.
E no livro que escreverá haverá um lugar especial para o amigo de infância, Marcelo Rebelo de Sousa?
Claro. Tenho de falar do Lar da Criança, onde o conheci com 16 meses. É o meu meu melhor e mais antigo amigo. Crescemos juntos.
E falarei também da D. Bertinha, a dona do Colégio. Éramos três filhos, o meu pai era médico e a minha mãe engenheira química. A determinada altura separaram-se, o meu pai foi para fora e sofri imenso com isso. E a escola, como todas aliás, era um bocadinho cara. E a certa altura a minha mãe terá dito à diretora que teria de tirar os três meninos da escola porque não conseguia pagar as mensalidades. Dizia a minha mãe que se fossem dois ainda fazia um esforço, mas três não conseguia. Então a D. Bertinha disse que eu não pagaria e pediu-me que nunca contasse essa história. Mas acabei por ‘quebrar o segredo’ há uns anos numa comemoração do Colégio e ela ficou muito aborrecida comigo. Justificou que o meu pai, quando voltou, lhe trouxe um presente e que isso era, de certa forma, um pagamento também.
Costuma dizer que todos os planos que fazia, em criança, incluíam Marcelo.
Sim, não sei se os planos dele também me incluíam. Mas, sim, ele estava sempre presente. Aliás, conheço também muito bem os pais dele, que já não estão cá. Tenho, inclusive, boas memórias deles também. Um dia, depois de um jantar, estava a vestir o sobretudo ao pai de Marcelo. Era levezinho, de caxemira. E diz a mãe dele prontamente: “Foi o Marcelo que lho ofereceu porque o outro era muito pesado”. Marcelo é assim, muito generoso na vida.
Diagnosticou a hérnia umbilical que ele tinha através da capa de uma revista. Foi mesmo assim?
Eu e a minha equipa que, aliás, me criticou por ter um amigo com uma hérnia daquelas e não o ter aconselhado a fazer uma cirurgia. Aquilo era uma coisa terceiro-mundista. Mas eu não sabia porque não sou médico dele e ele nunca se queixou. Aliás, nem o médico dele, Daniel de Matos, tinha conhecimento.
As 'guidelines' das hérnias umbilicais obrigam à intervenção cirúrgica porque há elevado risco de estrangulamento. E, por isso, quando vi mandei-lhe uma mensagem e ele respondeu-me: “Hérnia há seis anos estável e feliz”.
Mas, tendo ele algo cirúrgico, era ofensivo que não ouvisse a minha opinião e aconselhei-o a tratar-se. Além de feia, aquela hérnia era perigosa. Convenci-o que seria operado aqui no ambulatório, pela minha coordenadora dessa área, a Dra. Paula Tavares. Estivemos reunidos aqui no meu gabinete, juntamente com a anestesista e o enfermeiro chefe. Acabei por deixá-los a sós porque não seria eu a fazer a cirurgia, não só por ser um amigo chegado, mas porque não é o tipo de procedimento cirúrgico que habitualmente eu faça. Era quarta-feira e combinámos que na quinta da semana seguinte ele seria operado.
Porém, no dia seguinte, estava ele a falar com um diplomata, e começou a sentir-se mal. A hérnia tinha estrangulado. Cheguei lá e constatei que não havia nada a fazer a não ser operá-lo de urgência. E assim foi, liguei à minha colega e estabelecemos que seria eu a fazer a cirurgia e ela me ajudaria. Já operei vários VIPs e, para mim, o Marcelo seria um paciente de 68 anos com uma hérnia. Para ela, apesar de ser extremamente competente, seria o Presidente da República; isso tem um peso acrescido.
Infelizmente tive razão antes do tempo, mas correu tudo bem e ao terceiro dia de pós-operatório já fazia visitas aos doentes e à meia-noite andava aí de quarto em quarto a dar uma palavrinha às pessoas internadas. As selfies tiravam-se no quarto dele a um ritmo alucinante. Mas esta foi também uma lição para os doentes, que perceberam que perante uma hérnia umbilical devem ir ao médico e qualquer clínico competente fará o que eu fiz, aconselhar a cirurgia. Depois desse episódio, já operei mais 18 hérnias umbilicais.
Depois tirei-lhe os pontos e só consegui ver a cicatriz um dia quando lá fui jantar.
Quando Marcelo se candidatou à Presidência da República, votou PSD?
Não votei PSD, votei Marcelo Rebelo de Sousa.
Foi a primeira vez que votou fora da sua área partidária?
Foi. Nunca votei no PSD, mas, por exemplo, apesar de nunca o ter feito, estive presente numa sessão de homenagens às transplantações da iniciativa de Cavaco. Homenageou, na mesma sessão, aqueles que já tinham condecoração e os que não tinham. E escolheu-me para responder em nome dos que não tinham condecoração. Se fosse o Mário Soares, Marcelo ou Sampaio seria estranho. Mas foi o Cavaco que me escolheu, e nunca votei nele.
Quando fui agradecer, comecei por dizer: “Sr. Presidente, desculpe mas não estou de acordo com esta homenagem”. A plateia gelou. Mas logo depois acrescentei: “Esta homenagem não é só merecida, é muito merecida. Um bem-haja”.
Tratou-se de uma homenagem muito justa porque, de facto, a transplantação em Portugal é algo que cresceu e que se fez contra tudo e contra todos.
Chegou, inclusive, a apoiar Marcelo enquanto candidato.
Quando ele resolveu apresentar a candidatura à Presidência não teve nenhum amigo ou familiar presente. Avisou-me horas antes porque sabia que eu ia ficar furioso, com uma crise de ciúmes enorme. “Eduardo, vou candidatar-me em Celorico, mas não há amigos, nem família, só jornalistas”, disse-me.
Mas mais no final da fase de campanha, fui convidado a discursar num dos seus comícios. Fui o único. Perguntei-lhe o que queria que dissesse. Respondeu-me que dissesse o que quisesse. Estava aflito, com medo que pudesse dizer alguma coisa que o pudesse prejudicar.
Sampaio da Nóvoa tinha, dias antes, dito que votar em Marcelo era como ir à feira tirar uma rifa, podia sair tudo ou não sair nada. Tinha achado aquilo de uma deselegância. As sondagens já davam a vitória a Marcelo com muita probabilidade na primeira volta e como ele me tinha dito que não tinha restrição nenhuma, guardei um momento importante para o final do discurso. Fui ao bolso e tirei uma rifa onde estavam escritas palavras como: sentido de Estado, competência técnica, generosidade. E à medida que ia lendo, a plateia ia-se levantando e apoiando. Senti-me bem a fazer aquilo.
Se fosse contra Cavaco [Mário Soares] teria o meu apoio. Contra Marcelo, não. Se fosse Marcelo contra o tio Mário, votaria Marcelo Como reagiu o seu tio Mário Soares?
Quando o meu tio se lembrou de fazer aquela incursão absurda para a Presidência e perdeu para Cavaco, nas férias anteriores tinha-me dado a notícia da sua candidatura, ao que lhe respondi: Vai candidatar-se agora no fim da vida? Ficou muito aborrecido com o que lhe disse e perguntou se o apoiaria. Fui claro e respondi que achava mal que se candidatasse, mas que se fosse contra Cavaco teria o meu apoio. Mas contra Marcelo, não. Marcelo não avançou e o meu tio ligou-me logo. Se fosse Marcelo contra o tio Mário, votaria Marcelo.
Esteve sempre presente na vida do tio e da tia. E aliás deu o rosto quando estavam próximos da morte.
Quando a minha tia esteve internada, era imensos jornalistas à porta, e achei aquilo o maior elogio à tia, que era querida das pessoas. Pedi aos meus primos para falar à comunicação, já que a família naturalmente se queria resguardar, e disse a verdade. Expliquei que a única coisa que estávamos à espera era de que falecesse. Não ia haver melhoras. E dizer isto era ter respeito pelos jornalistas e pelos portugueses. Já o meu tio, o Presidente da República fazia questão de dar a notícia da morte dele ao país.
Alguma vez ponderou ser ministro da Saúde?
Tinha vagamente combinado que se um dia Marcelo fosse primeiro-ministro se colocaria a hipótese de ele me convidar. Mas não aceitaria.
O meu tio [Mário Soares] um dia perguntou se tinha alguma ambição relativamente a alguma candidatura. Respondi que sim: a presidência do Sporting. Respondeu-me: "Que vergonha"Mário Soares chegou a chatear-se consigo por causa de futebol...
O meu tio achava que eu tinha uma grande notoriedade e um dia perguntou se tinha alguma ambição relativamente a alguma candidatura. Respondi que sim: a presidência do Sporting. A minha sorte foi já ter almoçado, se não creio que me expulsaria da mesa. Respondeu-me: “Que vergonha”.
Mas na altura fazia sentido porque foi antes das SAD. Hoje é impossível. Mas estou convencido que se concorresse à presidência do Sporting, e dissesse que tinha disponibilidade total e que trabalharia com pessoas competentes, tinha grandes possibilidades de ser eleito presidente.
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Só tenho uma experiência de ter ido a eleições e foi contra o meu amigo Rogério Alves. Godinho Lopes ganhou e eu ganhei ao Rogério Alves. Os sportinguistas já me conheciam. Mas sabe o que lhe digo? Transfiram essa confiança e esse carinho para o Frederico Varandas que tem a idade do Macron quando foi eleito presidente de França e que sabe muito de gestão desportiva.
Ao Bruno de Carvalho, que não conhecia de lado nenhum, dei-lhe um cheque em branco. Hoje, não dou um cheque em branco ao Frederico. Porém, considero que tem experiência em futebol, está próximo dos jogadores e tem curso de treinador. Sou um grande gestor de recursos humanos, mas o meu conhecimento não se aplica ao futebol. Se fosse reproduzir a minha forma de gerir esses recursos ao futebol, era um desastre.
Fiz 25 anos de televisão como comentador e tenho uma notoriedade sportinguista muito grande. Os adeptos do clube conhecem os meus defeitos e as minhas virtudes. Aliás, fui eu que introduzi no léxico ‘o meu querido Sporting’. Tenho a presunção de que vou ajudar a eleger o próximo presidente do Sporting porque os sportinguistas (embora não todos) confiam em mim.
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