"A minha condenação foi para travar as forças de segurança"
Foi há precisamente 10 anos que Hugo Ernano disparou a sua arma de fogo para travar uma carrinha, acabando por tirar a vida a uma criança de 13 anos. O militar da GNR é o entrevistado de hoje do Vozes ao Minuto.
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País Hugo Ernano
O dia 11 de agosto entrou para a memória coletiva em 2008, data em que Hugo Ernano disparou uma arma de fogo para travar uma carrinha conduzida por um assaltante. O que o militar da GNR não sabia é que no interior da viatura estava um menino de 13 anos, filho do assaltante que havia sido levado pelo pai para a concretização do crime.
Muita coisa aconteceu desde então.
Hugo Ernano foi condenado, suspenso de funções e viu a sua vida mudar radicalmente. Houve quem lhe tivesse virado as costas e quem lhe tivesse negado apoio, mas também houve quem não o conhecesse e, mesmo assim, lhe demonstrasse toda a sua solidariedade.
Condenado pelo Tribunal de Loures a nove anos de prisão efetiva, uma pena nunca antes aplicada a um elemento da autoridade policial, Hugo Ernano vê essa decisão como uma medida para “travar as forças de segurança”.
Agora, depois de ter recorrido e de ter visto a sua sentença ser reduzida para quatro anos de prisão com pena suspensa e uma indemnização de 55 mil euros aos pais da criança, o militar da GNR diz que saiu “ileso disto tudo” e que não se arrepende de nada, pois, garante, agiu profissionalmente. A culpa, sublinha, é de “quem não parou a carrinha”.
Lembra-se do dia 11 de agosto de 2008?
Claro. É uma data que nunca esquecerei, nem a hora, nem o local ou qualquer segundo dos minutos que marcaram a minha vida para sempre. Começou com a entrada ao serviço no posto de Santo Antão do Tojal, em Loures, às 16h00, e parece que nunca acabou. É como uma ferida profunda no corpo que nunca irá sarar.
Estava a trabalhar há quantas horas?
À hora da ocorrência estava a trabalhar há pouco mais de uma hora.
Tentei todos os meios ao meu dispor antes de usar a arma de fogo... Foi impossível outra solução. InfelizmenteO que é que o levou a disparar?
Antes de receber a comunicação tinha estado no local a ajudar uns autocarros da filarmónica da Casa do Gaiato a estacionar. Sabia que, no mínimo, cerca de 50 a 70 pessoas se encontravam no largo. Se o indivíduo me tinha tentado atropelar a mim, agente de autoridade devidamente uniformizado, nunca iria parar vendo aquelas crianças e idosos no largo. Tinha de parar a viatura. Tentei todos os meios ao meu dispor antes de usar a arma de fogo... Foi impossível outra solução. Infelizmente.
Como é que reagiu quando soube que as balas tinham atingido uma criança?
Quando verificámos que uma munição tinha acertado num dos ocupantes da viatura, acionámos de imediato os serviços de emergência médica e tentei ao máximo confortar a vítima e estancar a ferida. Tentei e consegui ser o máximo profissional possível.
Foi como se o chão me tivesse saído dos pés e estivesse em queda livreMas percebeu logo que se tratava de um menor?
Não dava para perceber devido à fisionomia. Era muito alto, aliás, era mais alto do que eu.
Como é que se sentiu quando foi condenado?
Foi como se o chão me tivesse saído dos pés e estivesse em queda livre. Nunca chorei tanto na vida.
Chorou na sala de audiências?
Não na presença das juízas, aguentei até saírem da sala. Quis ficar sozinho. Foi uma decisão demasiado injusta para quem sempre deu tudo e tanto pelos outros e pela justiça. Foi muito difícil dizer à minha esposa. Ainda hoje ninguém me justificou ou me disse como é que uma decisão tão aberrante pôde ser tomada.
Quem me deveria ter dado apoio ou, no mínimo, não me dificultar a vida, não o fez A GNR prestou o apoio necessário ou sentiu-se de alguma forma abandonado pelo comando?
Em 2008, quando tudo aconteceu, quem me deveria ter dado apoio ou, no mínimo, não me dificultar a vida, não o fez.
De quem está a falar?
Do comando da GNR de Lisboa, que era onde eu pertencia. Devia-me ter garantido ajuda, mas nunca o fez.
Não teve apoio jurídico?
Não tive apoio em nada mesmo. Mas nem quero tecer muito sobre isso porque vou estar a dar importância a quem não a merece, quero só dizer que no Grupo de Intervenção de Ordem Pública (GIOP) nunca me faltou apoio em todos os campos. Guardarei para a vida, no meu coração, tudo o que fizeram por mim.
E dos seus colegas do comando? Teve apoio ou afastaram-se de si?
Em 2008 fiquei muito isolado pela maior parte dos meus camaradas, mas é como digo: nos momentos difíceis é que se vê quem são os verdadeiros amigos. E uns meses mais tarde, quando me transferiram para o pelotão de intervenção de Sintra, ganhei uma nova família.
A minha condenação foi uma motivação pessoal e não uma decisão judicialAcredita que a mediatização em torno do caso pressionou de alguma forma o juiz a condená-lo?
Não, aquando da condenação, em outubro de 2013, não se falava muito da minha situação. Nem se sabia quem eu era. Para mim, foi uma motivação pessoal e não uma decisão judicial.
Uma motivação pessoal?
Queriam travar as forças de segurança, queriam dar um exemplo, até porque pelos factos provados dava bem para sustentar a tese da viabilidade de os disparos terem sido feitos, mas não o fizeram. E depois não contavam com a reprovação por parte do procurador-adjunto no Tribunal da Relação, que disse que era uma decisão errada que chegava mesmo a ser aberrante.
Passei pelo inferno, mas com a ajuda dos meus camaradas e da pessoa mais importante – a minha esposa – saí disto tudo ilesoO que é que mudou na sua vida após a condenação?
Mudou tudo. Por causa das ameaças tive que mudar de casa e de carro por motivos de segurança. Passei a ser reconhecido na rua… Passei pelo inferno, mas com a ajuda das pessoas, dos meus camaradas e da pessoa mais importante – a minha esposa – saí disto tudo ileso.
Alguma vez se sentiu inseguro? Foi ameaçado? Perseguido?
Muitas vezes sim. Recebi tantas ameaças... umas eram infundadas, mas outras não e tive de as levar a sério. A verdade é que tentaram fazer-me mal, mas felizmente nunca tiveram sucesso.
Como é que a sua família lidou com o sucedido?
A minha família sofreu tanto com isto tudo… A minha esposa foi o meu pilar, foi quem me segurou e me conseguiu levantar quando ia desistir. A minha família sempre me ajudou, todos adaptaram a sua vida à minha… devo-lhes tanto.
Precisou de ter acompanhamento psicológico?
Claro, teve de ser. Mas foi particular, não foi através da GNR, nunca foi contactado por ninguém nesse sentido.
A minha filha diz que sente um orgulho enorme no pai e que também quer ser polícia Como explicou aos seus filhos o que tinha acontecido?
O meu filho mais velho não se apercebeu bem do que aconteceu, sempre o tentei proteger o máximo possível, até das notícias em si. A menina era nova demais na época. Agora quando me vê na televisão nem sequer percebe bem o porquê, mas diz que sente um orgulho enorme no pai e que também quer ser polícia.
Como foi o regresso ao trabalho após a suspensão?
Foi como tinha de ser... tinha de me manter igual a mim mesmo e defender aquilo em que acredito. Não podia ser de outro modo, tinha de provar a quem me condenou que estava enganado.
Qual é a função que desempenha hoje?
Hoje faço parte de uma força especializada na vertente de ordem pública que é o Grupo de Intervenção de Ordem Pública da unidade de intervenção da GNR. A nível profissional não podia ascender mais, estou no topo.
O Hugo Ernano de agora é o mesmo de há 10 anos?
Depois de tudo era impossível ser o mesmo. Até mesmo a parte física. Devido ao desgaste psicológico, fiquei mais velho [risos]. Mas mesmo a personalidade mudou, claro. Agora sou sem dúvida alguma um ser humano melhor, aprendi uma grande lição de vida.
Que lição foi essa?
Aprendi que, ao contrário do que eu pensava, não consigo mudar o mundo sozinho. E também aprendi que ninguém é forte e feliz sozinho. Agora sou mais grato, aprendi a valorizar melhor tudo. Sou um novo homem, sem dúvida alguma.
É claro que nunca quis que houvesse uma vítima mortal, nem nunca me conformei com issoVoltaria a atuar da forma como atuou naquela situação?
A pergunta de sempre e para sempre. Claro que sim. Não o podia fazer de outra maneira, não teria sido profissional se não assumisse a mesma postura. É claro que nunca quis que houvesse uma vítima mortal, nem nunca me conformei com isso. Eu usei a arma de fogo para prevenir que alguém se magoasse, fosse quem fosse. Mas sei que o maior responsável foi quem não parou a carrinha, porque ele ia, sem qualquer dúvida, atingir as pessoas naquele largo.... tenho a consciência tranquila de que fiz tudo da melhor forma possível. Infelizmente não correu como eu realmente queria.
Que conselhos dá aos jovens militares ou a quem quer ingressar na GNR?
Os conselhos não são apenas para os mais novos, são também para os mais velhos, para aqueles que comandam, para todos os que fazem parte desta maravilhosa instituição. O que posso dizer é que trabalhem e deem o vosso melhor todos os dias, olhando para as ocorrências como se fossem salvar alguém da vossa família. Usem o coração para serem o melhor possível no exercício das funções e assim serão grandes profissionais.
Já passou uma década…
Sim… mas isto ainda mexe muito comigo. Demasiado mesmo. Sempre que a data se aproxima deixo de conseguir dormir.
O que é que fica destes 10 anos?
Olhando para trás vejo que perdi muito. Perdi a minha casa, que tinha desde os 17 anos, perdi o meu carro, tive de me endividar para me poder defender, perdi qualidade de vida, perdi saúde…
Alguma vez lhe passou pela cabeça tirar a própria vida?
Não, isso nunca. Mas tive muitos ataques de pânico, andei sem dormir… mas felizmente tive médicos que me ajudaram – externos à GNR – e que o fizeram por solidariedade, a custo zero.
Houve pessoas que eu não conhecia e que não me conheciam e que, ainda assim, lutaram por mimHá algum ponto positivo?
Sim, tive a maior manifestação de apoio por parte do povo português, maior só no ano passado com os incêndios. Houve pessoas que eu não conhecia e que não me conheciam e que, ainda assim, lutaram por mim. E ao fim destes dez anos consegui reverter a situação quase na totalidade.
O que é que falta?
Falta cumprirem o que prometeram que foi rever a minha situação profissional, pois dentro da normalidade da minha carreira e sem esta situação toda já podia ter ido para a promoção a cabo. Mas não. Continuo com a mesma patente desde que entrei para a GNR há 18 anos.
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