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"Não compro essa tese de pedir desculpa por 500 anos de colonialismo"

Raquel Varela analisa os principais acontecimentos que marcaram o século XX e questiona o futuro da Europa. A ascensão da extrema-direita, as prioridades da esquerda e o passado colonial português são alguns dos temas abordados pela autora nesta entrevista.

"Não compro essa tese de pedir desculpa por 500 anos de colonialismo"
Notícias ao Minuto

16/08/18 por Pedro Bastos Reis

País Raquel Varela

A historiadora e professora na Universidade Nova de Lisboa Raquel Varela lançou recentemente, pela Bertrand Editora, o livro ‘Breve História da Europa. Da Grande Guerra aos Nossos Dias’, uma obra que, de acordo com o professor Manuel Carlos Silva, deveria ser estudada nas escolas, em particular no ensino secundário.

Neste livro, que começa por abordar os anos da Primeira Guerra Mundial e termina com questões relativas aos dias de hoje, Raquel Varela faz uma síntese dos principais acontecimentos que marcaram o século XX e questiona o futuro da Europa, numa obra que, segundo a própria, é "uma ponte entre o trabalho científico e o trabalho de divulgação científica” que pode ser lido pelo “público em geral”.

Este ‘Breve História da Europa’ foi o ponto de partida para uma entrevista da historiadora ao Notícias ao Minuto, numa conversa que vai desde o estudo que recentemente coordenou sobre o desgaste dos professores, passando pelos mitos existentes sobre a história da Europa e pelas prioridades da esquerda, até às críticas da autora a uma “agenda académica muito restrita que não corresponde aos desafios da sociedade portuguesa” que exige “um pedido de desculpas por 500 de colonialismo”.

Para Raquel Varela, que considera a ascensão da extrema-direita na Europa uma consequência do falhanço da esquerda, o capitalismo “está condenado a falhar”, mas dificilmente a colapsar. A historiadora destaca a segurança no emprego e a luta por salários decentes como os principais desafios da sociedade atual, pelo que considera necessário “questionar os alicerces da acumulação capitalista”.

Os professores não estão só a lutar por eles, estão a lutar por toda uma escola públicaRecentemente, coordenou um estudo sobre a profissão docente e chegou à conclusão de que mais de metade dos professores apresentam níveis de exaustão emocional muito preocupantes. O que podemos retirar desta conclusão?

Fundamentalmente, que as escolas estão a trabalhar com uma força de trabalho em estado de adoecimento. A exaustão emocional está intimamente ligada à depressão e as razões essenciais que explicam isso são o fim da gestão democrática, uma gestão hierárquica, a ausência de capacidade de iniciativa, criação e autonomia dos professores, que conheceram outra escola, uma escola do 25 de Abril em que tinham outra autonomia, onde não trabalhavam, necessariamente, menos horas, mas trabalhavam com mais autonomia, com mais capacidade de influenciar as decisões. Hoje, estão cada vez mais proletarizados, são cada vez mais executores das decisões de outrem. O que é particularmente violento, porque a profissão deles é estar com alunos, portanto, fica uma separação brutal entre o trabalho pensado e o trabalho executado. Depois, há outros fenómenos muito importantes, como a indisciplina, a burocracia, a intensificação de tarefas administrativas que deveriam ser executados por outros profissionais. Tudo isso está intimamente ligado com a exaustão emocional dos professores.

Como tem acompanhado o braço de ferro entre o Governo e os sindicatos dos professores?

Acho que a luta dos professores faz todo o sentido e deve ser consequente. Deve ser muito determinada, porque os professores não estão só a lutar por eles, estão a lutar por toda uma escola pública, por uma visão de uma escola que não seja uma escola reduzida, encapsulada, no chamado capital humano e no mercado de trabalho, que retira toda a capacidade de conhecimento universal aos alunos, ou deixa isso a uma elite.

Escrever este ‘Breve História da Europa’, que começa no século XX e ainda passa pelo século XXI, em tão poucas páginas [328], foi um grande desafio?

Foi um desafio muito importante, mas que também se baseou em muitos anos de trabalho, de preparação de aulas e seminários, que me permitiram estudar muito, sintetizar, perceber quais eram os principais acontecimentos. Portanto, isto é um livro que pode ser lido, e creio que deve ser lido, pelo público em geral. Não é um livro académico. O professor Manuel Carlos Silva, quando o apresentou, disse que o livro devia ser estudado nas escolas. É um livro que pode ser estudado numa escola secundária. Há aqui uma ponte entre o trabalho científico e o trabalho de divulgação científica que procurei fazer.

A ideia de que o nazismo é a obra de um louco é um mito da Guerra Fria. Não é obra de um louco, é uma resposta à crise de 1929No livro, tenta desvendar alguns dos mitos que temos em relação à história da Europa.

Sim, por exemplo a ideia de que o nazismo é a obra de um louco. Isso é um mito da Guerra Fria. As grandes empresas alemãs, muitas delas são hoje conhecidas, como a Bayer, entre outras, apoiaram o partido nazi e apoiaram a militarização da sociedade e o expansionismo nazi. A Alemanha nazi não é obra de um louco, é uma resposta à crise de 1929, e ao medo da revolução do operariado alemão. Outro mito é a associação entre União Europeia e Estado Social. O Estado Social nasce em 1945-47, com políticas universais, e a União Europeia consolida-se a partir da década de 1970. Mesmo o projeto europeu, que nasce no início dos anos de 1950, é muito incipiente.

Começa o livro pelo ano de 1917. Se não fosse a Revolução Russa existiria o Estado Social?

O Estado Social é de 1945. O que a Revolução Russa provocou imediatamente foi a ampliação do sufrágio universal na maioria dos países europeus. Estes países não fizeram a revolução, mas devem isso à Revolução Russa. Fundamentalmente, no imediato, teve esse efeito, mas o efeito duradouro politicamente mais importante é que a Revolução Russa deu, pela primeira vez, a esperança aos trabalhadores de que eles se podiam organizar e tomar o poder. É um processo que degenera a partir de 1927-28, o Leninismo não tem nada a ver com o Estalinismo, hoje sabemos isso devido à abertura dos arquivos soviéticos, mas é um processo que no seu início foi do mais desenvolvido, vanguardista e que ampliou os direitos sociais. Não o Estado Social, porque isso só nasce em 1945.

Os efeitos da crise económica de 2008 ainda hoje se sentem. Acha que a Europa já a ultrapassou?

Não, pelo contrário, a Europa enfiou a cabeça na areia e aumentou os esqueletos no armário com o fundo de estabilização europeu. Na verdade, as medidas em relação a 2008, que foram aumentar a dívida pública da periferia e esvair os recursos de países como Portugal da sua força de trabalho qualificada, no médio prazo, só vão tornar as crises piores.

Tendo em conta a mutação na política na União Europeia, nomeadamente com ascensão da extrema-direita e do euroceticismo, acha que a Europa conseguirá sobreviver a uma crise da dimensão de 2008?

Duvido. Até porque neste momento não há política monetária. As taxas de juro reais são zero. Até estão negativas, se descontarmos a inflação. Duvido muito.

A vaga migratória a que estamos a assistir é a maior desde a Segunda Guerra Mundial. A União Europeia tem sido acusada de falhar na resposta aos refugiados que tentam encontrar aqui asilo. Isto é sintomático do falhanço do conceito da União Europeia?

É sintomático do falhanço do capitalismo a nível mundial. África e os países periféricos do chamado Sul Global, como o Brasil e a Índia, são cada vez mais pilhados e dependentes, nomeadamente através dos mecanismos da dívida, entre outros, e restam a muitos destes povos como única esperança ir trabalhar para os países centrais e abandonar as suas famílias. Isso é uma demonstração de que o capitalismo é um modo de produção incapaz de garantir o bem estar da humanidade.

Não tenho dúvida nenhuma de que o capitalismo está condenado a falhar. A colapsar, tenho dúvidas

O capitalismo está condenado a falhar e a colapsar?

Não tenho dúvida nenhuma de que está condenado a falhar. A colapsar, tenho dúvidas. Penso que os capitalistas preferirão uma terceira guerra mundial a abdicar das suas propriedades, nas formas mais importantes que elas hoje têm, em que 200 famílias concentram o principal da riqueza da humanidade, segundo o Credit Suisse.

Na questão da imigração, os partidos sociais-democratas, e até os conservadores, tinham um discurso mais tolerante...

Porque querem mão-de-obra barata.

A Alemanha nunca teve vontade de acolher refugiados. Teve vontade de recolher refugiados que se adaptavam às necessidades do mercado de trabalho... mas, hoje em dia, esse discurso está a mudar. Temos até o caso da Alemanha, que demonstrou vontade de acolher refugiados, mas que mudou o discurso.

A Alemanha nunca teve vontade de acolher refugiados. A Alemanha teve vontade de recolher refugiados que se adaptavam às necessidades do seu mercado de trabalho. Certo tipo de mão-de-obra qualificada para a indústria e mão-de-obra muito qualificada nos setores académico, médico, físico, etc. Portanto, sempre houve uma política nos Estados nacionais europeus de acolher refugiados ou imigrantes de acordo com as necessidades de regular o preço da força de trabalho, nunca foi uma política humanitária, sempre foi uma política que tinha a ver com o mercado de trabalho. A resposta a isso também não é sermos a favor da liberalização do mercado de trabalho, que é a livre circulação de pessoas. A resposta a isso é haver solidariedade entre os sindicatos europeus e os sindicatos indianos, brasileiros e africanos.

A vaga migratória que chega à Europa tem a sua origem, sobretudo, no Norte de África e no Médio Oriente, e as pessoas fogem de guerras que, em muitos casos, foram fomentadas pelo Ocidente. É legítimo os países europeus recusarem a entrada destas pessoas?

O que é legítimo, urgente e absolutamente necessário é a Europa não ser uma espécie de usurpador dos recursos naturais destas populações. Elas têm direito a viver dos seus recursos naturais e é muito importante que a Europa não fomente guerras, nomeadamente através da venda de armas, mas não só. Por exemplo, hoje, a exploração de petróleo no Médio Oriente está totalmente dependente do ponto de vista científico e tecnológico das empresas europeias e norte-americanas. Os governos europeus são parte do problema, mas isso não quer dizer que todos os europeus são parte do problema. Uma parte dos europeus é parte da solução, porque procura políticas de solidariedade. É verdade que o ponto de vista da liderança de esquerda tem falhado redondamente, porque não tem um programa alternativo. O programa é humanitário, de livre circulação, e isso não é um programa socialista. Um programa socialista é um programa que devolva recursos essenciais para as pessoas viverem nos seus países, e isso implica questionar as nossas empresas aqui.

 A extrema-direita que existe em Portugal está envergonhada e escondida dentro dos partidos de direita

O crescimento da extrema-direita, na Europa, é consequência do falhanço da Esquerda?

Não tenho dúvidas nenhumas disso. A extrema-direita não cresceu como organização, cresceu do ponto de vista eleitoral. Tem muito apoio eleitoral mas não tem influência organizativa de massas. Não é possível que políticas absolutamente essenciais como a defesa do emprego, a defesa da segurança do emprego, mesmo políticas de família, sejam só faladas pela direita. Sou absolutamente a favor do casamento entre homossexuais, como sou a favor da adoção de crianças por casais homossexuais, mas acho que temos de ter políticas familiares para todas as famílias. As creches, o trabalho doméstico, a exaustão dos casais, a distância a que vivem do local do trabalho, a dificuldade que é hoje criar filhos numa sociedade urbana... só a direita é que fala de família?

A esquerda esqueceu esses temas?

Esqueceu completamente! Deixou temas absolutamente fundamentais, que têm a ver com o modo de vida e com sociedades alternativas, na mão da extrema-direita, que não é alternativa. Na verdade, aquilo que a extrema-direita propõe é conflito, é privilegiar um grupo minoritário de pessoas contra o resto da sociedade, defendendo os direitos desse grupo minoritário. Ora, nós temos de ter um programa universalista, pensar a sociedade no bem-estar para todos. O bem-estar implica questionar os alicerces da acumulação capitalista.

Que grupos minoritários são esses em que a esquerda está mais focada e que a levaram a esquecer o tema da família?

A esquerda está muito associada às questões identitárias. Esquece-se de que as mulheres, hoje, em Portugal, têm direito ao aborto, direito aos hospitais, mas não têm liberdade económica, nem segurança no emprego, e isso reduz os direitos afetivos. Se um casal não pode separar-se porque tem de pagar a casa, ou nem sequer pode casar-se porque não tem dinheiro, os direitos essenciais e fundamentais de afetos estão postos em causa. Reduzir tudo a uma questão de igualdade perante a lei é altamente reducionista. Sem segurança no emprego não há ampliação de direitos. O problema das mulheres não é fundamentalmente uma questão identitária, é uma questão de classe e de trabalho, seja nos trabalhos manuais, seja nos intelectuais.

Nesta altura do campeonato, o problema mais importante da sociedade portuguesa é a falta de segurança no emprego e de salários decentes

Não será possível conjugar as duas vertentes, isto é, a questão identitária com o trabalho?

Esse é o argumento que se usa sistematicamente. É preciso perceber o que é mais importante. Nesta altura do campeonato, o problema mais importante da sociedade portuguesa é a falta de segurança no emprego e de salários decentes. É isso que determina o nosso modo de vida. Não é se sou mulher ou se sou homem. Até porque se sou mulher e tenho segurança no emprego, tenho toda a liberdade. A diferença salarial entre um homem e uma mulher, em Portugal, é de 18%. Entre um precário e um fixo é 40%. O problema da sociedade portuguesa é uma diferença geracional e no acesso às condições e relações laborais. Não é uma diferença de género, esse não é o nosso problema mais grave. 

Neste contexto europeu, Portugal é uma exceção, tendo um Governo de centro-esquerda apoiado pela esquerda mais radical. O fenómeno da extrema-direita ainda não chegou cá. A que se deve isto?

Sem dúvida ao 25 de Abril. A extrema-direita foi absolutamente rejeitada pelo processo revolucionário mais radical do pós-guerra na Europa e isso eliminou-a durante muitos anos, e ainda vai impedir durante muitos anos, o nascimento e a organização da extrema-direita em Portugal. A extrema-direita que existe em Portugal está envergonhada e escondida dentro dos partidos de direita e tão cedo não vai ter condições sociais para se organizar.

Não compro essa tese de que todos nós temos de pedir desculpa por 500 anos de colonialismo. Não peço desculpaUm dos capítulos do seu livro é dedicado ao colonialismo e à autodeterminação dos povos. Portugal foi o último país a conceder liberdade às colónias. O que é que isso diz sobre a forma como gerimos o nosso passado colonial?

Diz que somos um país anacrónico, atrasado. Mas nós não concedemos a liberdade às colónias, elas é que a conquistaram através das revoluções anticoloniais e da luta armada baseada nos camponeses e nos trabalhadores forçados. Elas é que nos concederam uma grande ajuda para fazermos o 25 de Abril. Agora, eu não compro essa tese de que todos nós temos de pedir desculpa por 500 anos de colonialismo. Eu não peço desculpa.

É um debate que tem surgido na sociedade portuguesa, que exige que Portugal faça uma catarse histórica para reconhecer os erros cometidos, de forma a mudar o presente.

A história não é psicanálise. O colonialismo proporcionou um brutal desenvolvimento económico e também foi realizado em grandes condições de barbárie. Isso é uma constatação histórica, não se pode fugir aos dois factos. A maioria dos portugueses não tem qualquer responsabilidade no processo colonial. Acho que o racismo, hoje, deve ser discutido indo ao McDonald´s e perceber que só há lá negros a trabalhar. Ou seja, temos fenómenos de reprodução social na sociedade portuguesa que fazem com que filho de sapateiro, sapateiro seja, filho de trabalhador pobre, pobre será. É muito mais importante acabar com isso do que andar a pedir desculpas, até porque isso nos coloca a todos a pedir desculpa, e eu não tenho de pedir desculpa sobre nada, pelo contrário. Eu dediquei a minha vida a estudar a influência das revoluções anticoloniais no 25 de Abril, portanto... Acho que esse debate diz mais sobre agendas académicas e intelectuais do que sobre a real noção do que são os problemas do país e como enfrentá-los.

O combate ao racismo que existe estruturalmente, como referiu no caso do McDonald´s, não passa pelo reconhecimento do passado colonial?

Todos nós, tirando a extrema-direita ou a direita muito pouco séria e rigorosa, reconhecemos o passado colonial português. Está escrito em centenas de livros de história, em música, em literatura. Há uma massa importante de intelectuais que nunca ocultou o que foi o passado colonial português, e que se dedicou a estudá-lo. Eu fi-lo e centenas de outras pessoas o fizeram. Isso é uma agenda académica muito restrita que não corresponde aos desafios da sociedade portuguesa. Acho que era muito mais interessante perguntar a essas pessoas se apoiam o que este Governo fez com o Banco Espírito Santo, que está intimamente ligado com o processo de neocolonização de Angola, realizado com a complacência das elites locais. Angola tem meia dúzia de ricos e o resto é uma favela de gente miserável. Ou o Banif com a Guiné Equatorial... isso para mim é que são políticas anticoloniais. Não é transformar a história num divã freudiano.

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