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"Não tenho medo do fim. Já vivi tudo o que tinha a viver"

Foi numa tarde quente que falámos com Anita Guerreiro, que nos recebeu com um sorriso para uma conversa que se revelou uma viagem no tempo e não só. A fadista e atriz é a entrevistada de hoje do Vozes ao Minuto.

"Não tenho medo do fim. Já vivi tudo o que tinha a viver"
Notícias ao Minuto

14/09/18 por Mariline Direito Rodrigues

Fama Anita Guerreiro

Bebiana Guerreiro Rocha Cardinalli, conhecida pelo seu nome artístico - Anita Guerreiro  - nasceu a 13 de novembro de 1936. A sua infância foi passada no bairro do Intendente, em Lisboa e logo muito cedo descobriu o seu jeito para o canto. Foi na coletividade Sport Clube do Intendente que começou a mostrar o seu talento, longe de imaginar que dele faria carreira.

Em dezembro de 1952, concorreu ao 'Tribunal da Canção', um passatempo radiofónico do programa 'Comboio das Seis e Meia'. Levada pela madrasta às escondidas do pai, logo conquistou o coração do público e dos artistas que a avaliaram.

A vida também quis que Anita brilhasse em cima das tábuas do teatro e, em 1955, apresentou-se no palco do Maria Vitória com a revista 'Ó Zé Aperta o Laço', onde conheceu a fama através do êxito 'É Festa, É Festa'. Pela sua voz se popularizou o fado canção 'Cheira a Lisboa', em 1969, com a revista 'Peço a Palavra', no Teatro Variedades.

Durante um período de tempo teve de se afastar do teatro, porém não abandonou a música. Viajou pela Europa, Canadá e Estados Unidos, locais onde sempre foi recebida com muito carinho pela comunidade de emigrantes portugueses.

Entretanto, regressou a Portugal, desta vez para se destacar na televisão em novelas e séries como 'Primeiro Amor', (1995), 'Roseira Brava' (1996), 'Nunca Digas Adeus' (2001) ou os 'Os Batanetes' (2004).

Foi casada com Pepe Cardinalli, companheiro com quem teve os seus dois filhos.

Atualmente, ainda pode ser ouvida no restaurante de fados 'Faia', pelo qual guarda um enorme carinho.

Anita, é um dos nossos grandes nomes. E a generosidade que demonstrou nesta conversa supera em muito o poder da sua voz, o que, diga-se, não é fácil.

Qual a primeira recordação que guarda da infância?

A primeira, talvez, quando fui para a escola e comecei a cantar aos sete anos. Era obrigatório cantar-se na escola o hino nacional e quando começámos a cantar a minha voz salientou-se.

Na altura o seu professor notou isso?

Sim, logo. Tanto que cheguei a ser vocalista do coro. Primeiro cantava eu, depois toda a classe.

E como é que da escola passou para o Sport Clube do Intendente?

Aí foi onde comecei [a atuar em público]. Logo a seguir à rua onde morava havia num segundo andar uma sala onde se faziam sessões da igreja protestante. Souberam que eu cantava e pediram ao meu pai para me deixar ir lá cantar as músicas deles. O meu pai deixou, eu queria era cantar, por isso passei a ir. A partir daí, em relação ao Sport Clube do Intendente - que é no largo do Intendente e ainda existe - foi pedir ao meu pai para me deixar ir lá também. Ele autorizou e foi então que comecei a cantar a sério, mas pensando que era uma brincadeira. Depois a minha madrasta levou-me ao ‘Comboio das Seis e Meia’ para me inscrever para concorrer ao programa ‘Tribunal da Canção’.

Notícias ao MinutoAnita Guerreiro na 'sua' amada Lisboa.© Global Imagens

E que idade tinha nessa altura?

Tinha 12, 13 anos. O Maestro Miguel de Oliveira e o Marques Vidal ouviram-me ali a trautear no escritório e disseram: ‘Já sei que tu fazes assim uns papéis de rapaz e não sei quê’. O meu pai nem sabia, porque fui com uma vizinha minha. ‘Maestro, posso marcar para quinta-feira ela vir concorrer?’, perguntou o Marques Vidal. ‘Não, marcas para estrear’, respondeu. E estreei nessa quinta-feira. Mas tive tão pouca sorte que 15 dias depois houve um ultimato que acabou com todos os programas de rádio publicitários. ‘Pronto, comecei e acabei’, disse eu. Então o maestro disse: ‘Não, nós vamos fazer uma tournée, se quiseres vens connosco para o Algarve’. O Tony de Matos e a Maria Sidónio, que nessa altura era mulher dele, convenceram o meu pai. ‘Deixe ir a menina, não lhe corte as pernas porque nós tomamos conta dela’. E o meu pai deixou-me ir.

Mais tarde conheceu o teatro de revista....

Sim, acabei por ser apresentada no teatro Maria Vitória. No Intendente tinha feito um saloio que ia para a tropa. Na altura, o maestro perguntou-me: ‘Olha lá, além de cantar o que sabes fazer mais? Ouvi dizer que lá no teatro fazes de rapaz. Faz aí uma coisa’. E fiz. Depois reuniram-se todos e fiquei para a revista logo.

Adaptou-se bem a essa realidade?

Muito bem.

E lembra-se do dia da estreia na revista?

Então não me lembro... ‘Ò Zé Aperta o Laço'.

E estava nervosa?

Não, era miúda, não tinha noção, queria era cantar.

Só se deixa fascinar quem quer e também nunca andei de ‘rédea solta’E nunca se deixou fascinar por aquele mundo?

Nunca, fui sempre igual. Só se deixa fascinar quem quer e também nunca andei de ‘rédea solta’, porque eu andava sempre acompanhada. Nunca fiquei sozinha até à minha maioridade. Continuo na mesma. Quando estou no palco, faço sempre das tripas coração para que tudo me saia bem.

Chegou-lhe a acontecer alguns contratempos?

Graças a Deus que não. Algumas rouquidões, mas isso aparece a todos.

Sempre houve muito respeito e eu era menina a sérioE com os admiradores, nunca aconteceu nada? Agora hoje fala-se muito do assédio sexual que existe nesses meios…

Não, antigamente não era assim. As pessoas eram diferentes. A onda que corria por todo o mundo era diferente. No teatro não creio. Eu era uma miúda, trabalhava com António Silva, Barroso Lopes, Irene Isidro, tudo gente bem graúda. Nunca me fizeram nada, sempre me respeitaram e tinham um enorme carinho por mim. Sempre houve muito respeito e eu era menina a sério.

E sente que com o passar do tempo o teatro mudou ou perdeu de qualidade?

Já não existe… não existe como existia. Sou da época daquelas grandes revistas no Coliseu que as fiz todas. Foram grandes espetáculos que se fizeram ao nível de qualquer país do mundo. Trabalhávamos sem microfone, queria ver isso agora.

Como é que vê a nova geração de atores?

Sinceramente, está um bocadinho em baixo. Com o desaparecimento do Parque Mayer desleixou-se um bocadinho.

Um ator precisa definitivamente de passar pelo teatro…

Se não passar não é ator. Eu por acaso ao princípio fui só para cantar, mas acabei por fazer mais.

Trabalhei na guerra a cantar para as tropasComo por exemplo?

Fui para a Angola trabalhar para as tropas com o meu marido... para a guerra mesmo. Trabalhei na guerra a cantar para as tropas. Ficavam encantados. O meu marido era cantor e ilusionista. A minha filha é angolana e o meu filho é canadiano. Depois fui para a América e estive lá nove anos.

Na América também cantava…

Não sei fazer mais nada [risos]. Por acaso até sei costurar, porque o meu primeiro ofício foi ajudante de modista, quando tinha 13 anos.

Do que é que sente mais saudades desse tempo?

Tenho saudades de tudo, mas aí vou ligar mais à minha família, que é aquela que já não tenho hoje. O meu pai, a minha mãe, até a minha madrasta. Depois nessa altura o Parque Mayer era o Parque Mayer. Quando eu fiz o ‘Cheira Bem, Cheira a Lisboa’ [diz isto enquanto trauteia a música], o público estava todo cá fora. 

Qual é a história da música ‘Cheira bem, Cheira a Lisboa’?

Não tem nada de especial, foi numa revista. Era uma canção simples e as pessoas memorizaram rápido. Havia coisas que ficavam logo no ouvido. Naquela altura fazia-se muita coisa, agora não se faz…

Mas por falta de apoio?

Porque não há quem faça (como se fazia antigamente).

Como é que veio parar à Casa do Artista?

Foi a minha filha que tratou disto tudo [afirma, enquanto aponta para as paredes da propriedade].

Mas foi ela que quis que a Anita viesse para aqui?

Não foi ela, nem eu, chegámos a um acordo. Estava cá completamente sozinha [a filha vive atualmente nos Estados Unidos].

E gosta de estar cá?

Sim, conheço toda a gente. Quando esta casa começou, todas as semanas vinha aqui cantar.

Mas ainda continua a cantar, certo?

Sim, no Faia [restaurante]. Quintas, sextas e sábados.

Notícias ao Minuto                         Anita Guerreiro a cantar no restaurante 'Faia', no Bairro Alto.                             © GlobalJá é avó?

Não, mas gostava muito.

Os seus filhos quiseram seguir o mesmo caminho que a Anita em termos artísticos?

Não, a minha filha canta, não do meu género, mas sim do pai. O meu marido era vocalista da orquestra e ilusionista, pertencia ao Circo Cardinalli. A minha filha seguiu a trajetória do pai.

Não me sinto velha. Tenho a mesma energia no trabalhoSente muito a passagem do tempo?

Não, falamos da velhice porque é a idade, mas não. Não me sinto velha. Tenho a mesma energia no trabalho. A minha voz não tem alteração nenhuma, claro que já não tenho as mesmas forças e a minha cabeça não funciona tão bem, são 83 anos.

Qual é o lado menos bom de ter esta idade?

Nenhum.

Então não gostava de voltar a ser nova?

Eu não, para quê? Para sofrer outras coisas? A morte do meu pai e a da minha mãe.

Como é que conheceu o pai dos seus filhos?

Nem me lembro bem, mas as coisas correram naturalmente. Eu ia muito cantar ao circo como atração e o espetáculo era da família dele. As coisas aconteceram.

Ele estava muito doente, com Alzheimer. Nunca podia haver felicidadeOs últimos tempos que passou com ele foram felizes?

Não. Ele estava muito doente, com Alzheimer. Nunca podia haver felicidade. Fiz tudo o que podia. Ainda foram uns anos. Ali no Faia, onde eu estou, eu adorava aquela gente e eles também gostavam muito do meu marido. Ele ia sempre ter ali um pouco comigo.

Ainda acredita na bondade das pessoas?

Claro que sim. Há muita gente boa. Aliás, sempre houve todo o tipo de gente, hoje talvez seja mais visível. Nunca tive problemas com colegas, sempre fui boa rapariga. Nunca tive nada com ninguém, nem mesmo a nível competitivo. Cada um faz o seu papel e pronto.

Quando o seu marido morreu não pensou em ter outra pessoa?

Não, nem tinha coragem de apresentar outro companheiro aos meus filhos. Eles adoravam o pai, mas eu também não me interessava mesmo.

Retirar-se nunca esteve nos seus planos?

E vivo de quê? Só se eles falirem.

Sente-se sozinha?

Um pouquinho, por isso é que estou aqui [Casa do Artista].

Se tivesse a oportunidade de ir viver com um dos seus filhos ia?

Ia, mas prefiro estar assim, para não lhes ir dar trabalho. Sei como é, já passei por tudo isso. Prefiro estar aqui para não prejudicar a vida dos meus filhos.

Acha que há uma falta de reconhecimento dos artistas por parte do governo?

As reformas não são grandes não, a minha é de 600 euros…

Tenho de ir algum dia. Já vivi tudo o que tinha a viver. O fim assusta-a?

Não, tenho de ir algum dia. Já vivi tudo o que tinha a viver. Fiz de tudo: teatro, cinema, televisão.

Se a sua vida fosse uma revista como é que se chamaria?

‘Que a sorte nos proteja’.

Sempre foi protegida pela sorte?

Mais ou menos. Tenho tido as coisas próprias da vida.

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