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"Vitória de Bolsonaro seria uma tragédia para o Brasil"

Álvaro Vasconcelos, especialista em geopolítica, analisa o cenário que saiu das eleições gerais do Brasil e é perentório ao afirmar que Fernando Haddad e Ciro Gomes devem juntar forças para a segunda volta, com a necessidade de conseguirem, ainda, captar o eleitorado do Centro: "É absolutamente essencial quase que uma fusão entre Haddad e Ciro Gomes", vaticina.

"Vitória de Bolsonaro seria uma tragédia para o Brasil"
Notícias ao Minuto

09/10/18 por Pedro Bastos Reis

Mundo Álvaro Vasconcelos

A primeira volta das eleições gerais no Brasil colocou Jair Bolsonaro muito bem posicionado para se tornar no próximo presidente brasileiro. Com um discurso extremista, pautado por declarações racistas, machistas e homofóbicas, o candidato da extrema-direita conseguiu aproveitar a rejeição de grande parte da classe média brasileira ao Partido dos Trabalhadores (PT), roubando votos, particularmente, ao centro-direita do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) e do Movimento Democrático Brasileiro (MDB).

Esta é a análise que o ex-diretor do Instituto da União Europeia para os Estudos de Segurança Álvaro Vasconcelos faz numa entrevista por telefone ao Notícias ao Minuto, um dia depois de um domingo em que Jair Bolsonaro ficou a um passo de vencer o escrutínio logo à primeira volta.

Para o especialista em assuntos internacionais, Fernando Haddad, que irá defrontar Bolsonaro na segunda volta, deve unir esforços com Ciro Gomes (terceiro classificado com 12% dos votos), de forma a criar uma "dinâmica forte no campo da Esquerda brasileira" que também permita o diálogo "com os setores do PSBD mais sociais-democratas que não querem, de forma alguma, apoiar Bolsonaro". 

Álvaro Vasconcelos considera que uma vitória de Bolsonaro no próximo dia 28 de outubro "seria uma tragédia para o Brasil", mas não só, uma vez que, neste momento, assistimos a "um refluxo da democracia no mundo".

A combinação da corrupção com a grave crise económica criou um um enorme descontentamento na classe média brasileira, que ao mesmo tempo abriu espaço para a destruição dos partidos do Centro e para a subida da extrema-direitaComo é que chegámos a esta situação, em que um candidato de extrema-direita esteve perto de vencer a primeira volta das eleições gerais no Brasil?

Chegámos devido a um conjunto de circunstâncias. Antes de tudo, por uma crise económica profunda que atravessa o Brasil, o descontentamento da classe média com o impacto dessa crise, e por outro lado, os numerosos casos de corrupção que atingiram todos os partidos que governaram o Brasil desde o fim da ditadura, ou seja, o PT, que esteve mais tempo no poder, o PSDB e o MDB. A combinação da corrupção com a grave crise económica criou um enorme descontentamento na classe média brasileira, que ao mesmo tempo abriu espaço para a destruição dos partidos do Centro e para a subida da extrema-direita, com Bolsonaro.

Esta situação é fruto da divisão, na sociedade brasileira, entre o apoio ao PT e o ódio ao PT, assim como a uma deriva conservadora e autoritária?

É evidente que existe uma polarização na sociedade brasileira entre o PT - e os partidos próximos, como o PSOL ou, eventualmente, o PDT de Ciro Gomes - e a extrema-direita de Bolsonaro. Agora, podemos constatar nestas eleições que quem foi profundamente atingido pela subida de Bolsonaro não foi o PT, mas sim o PSDB e o PMDB. O PSDB já governou o Brasil, teve sempre candidatos na segunda volta das presidenciais, e desta vez Gerald Alckmin teve apenas 5% dos votos, enquanto o candidato do PMDB, Henrique Meirelles, teve pouco mais de 1%. Portanto, o setor mais atingido foi o centro-direita. O PT, de certa forma, até conseguiu sobreviver, apesar do ódio que existe ao partido.

Durante várias semanas, nas intenções de voto, Bolsonaro esteve sempre entre os  20 e os 30%. De repente, subiu exponencialmente e isso traduziu-se nesta votação. Isto significa que ele roubou eleitorado a Lula da Silva?

É possível que uma parte do eleitorado das classes mais pobres do Brasil, influenciado pelos setores evangélicos, tenha mudado o seu voto de Lula para Bolsonaro. É possível, certamente que aconteceu em alguns eEstados, mas não me parece ser o essencial do voto de Bolsonaro. O essencial do voto de Bolsonaro vem dos eleitores tradicionais do PMBD e do PSDB. Nas últimas eleições [2014], o candidato do PSDB, Aécio Neves, esteve quase a vencer Dilma Rousseff. Agora, Geraldo Alckmin teve cerca de 5%.

Na segunda volta, Fernando Haddad deveria assumir-se de uma forma muito mais pessoal, no sentido de mais autonomia em relação a Lula, e de apoderar mais a sua imagemSe fosse candidato contra Bolsonaro, Lula da Silva teria hipóteses de ganhar?

As sondagens mostravam isso. Enquanto foi candidato, Lula ia muito à frente, com uma percentagem muito maior do que a teve Fernando Haddad. Mas não sabemos o que é que se passaria na campanha, como também não sabemos o impacto que o grau de rejeição de Lula teria, numa segunda volta, nas alianças necessárias para vencer as eleições. Tudo isto são incógnitas. Mas não há dúvida de que a relação de Lula com o eleitorado pobre do Brasil e com as classes mais desfavorecidas é fortíssimo, como se vê com a votação que o PT teve nos Estados do Nordeste. Foi aí que o Haddad foi buscar os votos necessários para chegar à segunda volta. E o PT ainda é o partido com mais deputados na Câmara de Deputados. Resistiu no Nordeste porque há memória das políticas sociais de Lula.

Após a noite eleitoral, Fernando Haddad foi visitar Lula da Silva à prisão. O que acha que o ex-presidente disse ao candidato do PT?

Certamente que Lula lhe deu conselhos eleitorais, certamente que analisaram as possibilidades da segunda volta, a forma de conquistar apoio no Centro. Lula sempre foi um mestre na criação de coligações. Tudo isso foi discutido. O que não sabemos é o grau de referência a Lula que Haddad continuará a ter nesta segunda volta das eleições presidenciais. Se Haddad se vai distanciar um pouco de Lula, de forma a poder conquistar eleitorado que é muito anti-PT, ou se continuará com a bandeira de Lula com a convicção de que esta lhe pode dar a vitória. Esta é a grande discussão, hoje, no campo dos opositores de Bolsonaro que estão dispostos a apoiar Haddad: o grau de relação com Lula.

Desses dois cenários, qual é o que poderá beneficiar mais Fernando Haddad?

Acho que, na segunda volta, Fernando Haddad deveria assumir-se de uma forma muito mais pessoal, no sentido de mais autonomia em relação a Lula, e de apoderar mais a sua imagem. Se é verdade que tem alguma dificuldade com os setores mais desfavorecidos do Brasil, Haddad tem uma aproximação maior à classe média. Lembremos que ele foi prefeito de São Paulo e que foi ministro da educação, com um trabalho notável. É verdade que com grande apoio em Lula, mas Haddad foi executante e criador de muitas políticas na educação que tiraram muita gente do analfabetismo e da ignorância, e que deram possibilidade de crescimento educativo a uma parte da população brasileira que nunca tinha dito acesso a educação média ou superior. Haddad tem um currículo importante e é preciso, ao mesmo tempo, combater um sectarismo no PT existente em relação aos outros partidos, essenciais para derrotar Bolsonaro. Haddad terá boas condições para o fazer, porque nunca foi do setor sectário do PT.

É absolutamente essencial, mais do que uma aliança, quase que uma fusão das duas campanhas, com Haddad, desde já, a indicar o papel preponderante de Ciro Gomes no seu futuro governoAcha que Haddad receberá o apoio dos outros candidatos? Ciro Gomes deu a entender que sim, mas Marina Silva e Geraldo Alckmin ainda não.

O apoio de Ciro Gomes é mais do que provável e será essencial. Com os votos somados (42%), Haddad e Ciro Gomes aproximam-se do resultado de Bolsonaro (46%). É absolutamente essencial, mais do que uma aliança, quase que uma fusão das duas campanhas, com Haddad, desde já, a indicar o papel preponderante de Ciro Gomes no seu futuro governo, caso vença as eleições. Depois, isso criará uma dinâmica forte no campo da Esquerda brasileira, e irá permitir também o diálogo com Fernando Henrique Cardoso e com os setores do PSBD mais sociais-democratas que não querem, de forma alguma, apoiar Bolsonaro. Resta saber o que Fernando Henrique Cardoso irá exigir em troca do apoio.

Mesmo com esse apoio, poderá não ser suficiente para Haddad, porque Bolsonaro está nos 46% e poderá conseguir roubar, por exemplo, aqueles cerca de 5% de Alckmin.

O eleitorado de Alckmin que iria votar em Bolsonaro já votou. Os que ficaram com Alckmin não são bolsonaristas, estão ali, podem ser conquistados por Haddad e Ciro Gomes. Agora, a campanha deveria ser claramente Haddad/Ciro Gomes. É mais natural este eleitorado ir para Haddad e Ciro Gomes e não para Bolsonaro, isto se Haddad assumir os erros do PT, criticar toda a forma de sectarismo e apresentar, desde já, uma proposta de governo, eventualmente um ministro das finanças, que dê confiança a esse setor do PSDB.

Estamos num período muito perigoso para a ordem internacional e para a democraciaHaverá tempo, em apenas duas semanas, para que essa catarse que o PT precisa de fazer consiga convencer os eleitores?

Não podem ser só palavras. É preciso indicar nomes fortes que dão garantias. Não estamos a pensar que o Bolsonaro vá passar de 46% para 30%. Estamos a pensar que ele não vai conquistar os 4% que faltam, e que pode ganhar ou perder 1% ou 2%. Aquilo vai ser no fio da navalha, por isso é preciso convencer o setor do eleitorado mais central que resistiu a Bolsonaro. É muito pouco eleitorado, não é assim tanta gente que é preciso convencer.

Num cenário em que Bolsonaro vence as eleições, quais podem ser as consequências da vitória de um candidato de extrema-direita, racista, homofóbico e misógino?

Seria uma tragédia para o Brasil. Haveria uma grande resistência da sociedade civil brasileira e, como consequência dessa resistência, é possível que aumentasse o lado violento de Bolsonaro da opressão da sociedade civil. Haveria manifestações de grupos sociais e poderia haver confrontos com a polícia. A possibilidade de um cenário muito negativo, com consequências muito graves do ponto de vista das liberdades públicas, existe, claramente, no Brasil.

Estamos a assistir a um crescimento a nível mundial da extrema-direita e um consequente período crítica para as democracias liberais?

Não há dúvida de que há, neste momento, um refluxo da democracia no mundo. Temos visto em democracias consolidadas a ascensão de líderes autoritários, identitários e xenófobos, assim como de partidos que, apesar não estarem no poder, estão a crescer em muitos países. Isto é particularmente grave na Europa, porque esse crescimento põe em causa toda a construção europeia do pós-Guerra, mas também nos Estados Unidos, como vimos com a vitória de Trump, e em velhas democracias com a Índia. Estamos num período muito perigoso para a ordem internacional e para a democracia.

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