"Vivemos num clima de ódio em que há espaço para um Bolsonaro aparecer"
A deputada socialista Isabel Moreira é a convidada desta sexta-feira do Vozes ao Minuto.
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País Isabel Moreira
Isabel Moreira, deputada do Partido Socialista (PS) desde 2011, cedo determinou quais seriam as suas lutas políticas. Filha de Adriano Moreira, antigo presidente do CDS e antigo ministro de Salazar, Isabel escolheu ser “uma mulher de esquerda”, atenta aos assuntos constitucionais e aos direitos, liberdades e garantias.
Licenciada em Direito e mestre em Direito Constitucional, pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, deu aulas desde muito cedo. Foi uma das vozes mais combativas pela legalização do casamento homossexual e ajudou a escrever os pareceres jurídicos que defenderam a inconstitucionalidade da lei que vigorou até 2010, uma posição que obrigou a deixar de lecionar mas que acabou por determinar a sua entrada no governo, como independente, a convite de José Sócrates.
A advogada e consultora jurídica é muitas vezes referida como “a política das causas”, um resultado do seu combate às desigualdades, nas suas variadas formas. A chegada do movimento Me Too deu oportunidade de trazer à liça o sexismo e a misoginia, temas sobre os quais aceitou conversar com o Notícias ao Minuto.
Olhando para o feminismo como transversal às classes, Isabel Moreira desmente que seja “uma questão de elites”, ressalvando que o feminismo em Portugal ainda não tem uma identidade muito forte. Deixa claro que não se trata de uma guerra de sexos, mas diz-se preocupada com a polarização que o tema cria.
Nascida no Rio de Janeiro, em 1976, por causa do pós-25 de Abril, não consegue evitar falar da situação no Brasil e dos perigos que ameaçam aqueles que representa nas suas lutas. A também escritora permite que se lhe embargue a voz para falar na atual crise de empatia e no impacto que esta identificação afetiva tem na sua vida, porque dedicar a carreira a lutar pelos direitos dos outros não é uma assinatura política, é um traço de caráter.
Ainda há uma reação muito negativa a quem se afirme como feminista, como se o feminismo implicasse uma guerra de sexosA chegada do Me Too abriu a discussão sobre o assédio sexual, embora os sinais de contágio sejam diferentes nos diversos países. Acha que também trouxe à tona o sexismo, o machismo que estavam adormecidos?
Absolutamente, penso que a misoginia e o sexismo, sobretudo, não estavam adormecidos, nunca estiveram adormecidos. Estão acordados, são fatores fortes na sociedade. As reações negativas ao movimento Me Too deram mais visibilidade a essa misoginia e, nesse sentido, não há dúvidas de que o sexismo e a misoginia são problemas reais e graves. Para quem não estivesse convencido, ao contrário de mim, penso que tem dados suficientes para começar a convencer-se.
Acha que há poucas mulheres em Portugal a falar sobre estes temas?
Acho que o movimento feminista em Portugal nunca foi muito forte. Podemos discutir quais as razões para o movimento feminista nunca ter sido muito forte e não ter uma identidade muito forte.
Quais são?
Não encontro no movimento feminista a identidade que encontro, por exemplo, no movimento LGBT e no movimento anti-racista. É uma questão que merece uma reflexão muito alargada, mas em todo o caso penso que há cada vez mais mulheres e homens a falar sobre feminismo, ao mesmo tempo que vem a descoberto o tal sexismo e a tal misoginia. Isto é, ainda há uma reação muito negativa a quem se afirme como feminista, como se o feminismo fosse qualquer coisa de negativo ou implicasse uma guerra de sexos.
As massas aderiram à crítica aos acórdãos machistas e as massas aderiram à crítica imediata ao estereótipo da mulher que fez a queixa sobre Cristiano Ronaldo. Isso é altamente preocupanteNo caso dos acórdãos com fundamentação polémica notou-se apoio generalizado, mas semanas depois vimos uma grande polarização, quando surgiu o caso que envolve Cristiano Ronaldo. Assiste-se a essa forma de olhar para o feminismo como algo negativo, que tem sido inclusive usada como contra-argumentação. Começou-se a subverter o feminismo, colocando-o numa “bolha ativista”, para descredibilizar a própria discussão.
Sou uma mulher de esquerda e, portanto, não consigo acantonar o feminismo. Encaro o feminismo na perspetiva global da minha luta, que é uma luta pelo progresso e pela libertação das pessoas. E a questão de género insere-se aqui. É para mim evidente que a minha luta principal é a luta contra a opressão das pessoas e a luta contra a desigualdade.
A questão de género é transversal, no sentido em que está presente em qualquer classe social, mas evidentemente assume um peso diferente se uma pessoa ganha o salário mínimo nacional e apanha três transportes para casa e vive em relações de dependência hierárquica terríveis, do que uma pessoa em situação oposta. Eu combino as duas coisas, mas isso não nos deve impedir de ter um olhar transversal às realidades e verificar que há quem tente destruir o feminismo considerando que ele é, neste momento, uma questão de elites. Não é uma questão de elites e foi isso que tentei demonstrar com esta resposta.
O que se verificou foi que as massas aderiram à crítica aos acórdãos machistas e as massas aderiram à crítica imediata ao estereótipo da mulher que fez a queixa sobre Cristiano Ronaldo. Isso é altamente preocupante.
E por que razão acha que isso acontece?
Porque há aqui uma questão de nacionalismo e há aqui uma questão de sexismo enorme que veio ao de cima, relativamente àquilo que é o estereótipo da vítima, àquilo que é o conceito de consentimento, àquilo que é verdadeiramente uma violação e àquilo que é o estereotipo equivocado do agressor.
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Houve quem defendesse que Kathryn Mayorga “está a levar a cabo um negócio vil às custas de um problema real gravíssimo, a desigualdade de género” e que “só quem está na bolha ativista é que não vê isto”. Olhar para esta questão, desta forma, não é a génese de todo o problema?
Aí há vários problemas, a questão é que as pessoas focam-se no caso e eu penso que devemos deixar o caso resolver-se nas instâncias próprias e devíamos a ter um debate sobre a reação ao caso. Esse é o debate que interessa. E é na reação ao caso que eu me coloco, a reação ao caso preocupa-me.
Não tenho qualquer juízo moral sobre o Cristiano Ronaldo que é, obviamente, inocente até prova em definitivo. Não tenho qualquer juízo moral sobre uma mulher que faz uma queixa, não conheço todos os contornos do caso, mas preocupa-me que haja uma reação imediata baseada em estereótipos, no desconhecimento do caso, sem ter em conta as especificidades do sistema jurídico americano e que imediatamente fala na “bolha do ativismo”.
Isto são reações que se repetiram na história, as sufragistas passaram pelo mesmo, os movimentos LGBT passaram pelo mesmo. Os movimentos pelos direitos civis são sempre identificados como “bolhas” como se estivéssemos a falar de camadas da população que vivem acantonadas na burguesia e na cidade. Não, nós quando falamos de mulheres ou de homossexuais ou de raças, estamos a falar de pessoas que vivem no campo e na cidade, no Norte e no Sul, que são operárias ou que são académicas, que ganham o salário mínimo ou ganham o salário médio, portanto, estamos a falar dos nossos vizinhos e das nossas vizinhas.
Há uma perceção de que as mulheres são mentirosas. Essa perceção leva muita gente a desvalorizar as enormes vantagens do movimento Me Too
Outra questão é a ausência, muitas vezes, de opinião fundamentada. Assume-se facilmente que Kathryn Mayorga mente, quando as denúncias falsas são uma percentagem ínfima dos casos reportados.
Não me queria focar tanto neste caso, tenho tentado não me focar tanto no caso. Acho é que ainda há, de facto, uma perceção de que as mulheres são mentirosas. Aliás, é essa perceção que leva muita gente a desvalorizar as enormes vantagens do movimento Me Too, que é um movimento que deu voz coletiva às mulheres, que criou algo que é essencial a todos nós, que é a empatia através da partilha de narrativas. Narrativas que se multiplicaram pelo mundo inteiro, não invocando, aliás, quem é que foi o abusador. As pessoas simplesmente partilharam espontaneamente histórias de assédio, histórias de crimes sexuais, e nessa gigantesca partilha mundial que atingiu todas as classes sociais, criou-se uma voz coletiva e um movimento de empatia. Não se perceber isto, do meu ponto de vista, é muito grave, e desvalorizar isto também passa por se entender que, no fundo, as mulheres não estão a dizer a verdade e não são para ser levadas a sério. Ora, há muito séculos que não somos levadas a sério e há quem combata para que sejamos levadas a sério.
É uma questão de cultura?
É uma questão de cultura, é evidente. Nascemos nessa cultura, isto é, fomos todas e todos educados, mulheres e homens, num caldo cultural resistente à diferença. Eu própria nasci recebendo ‘inputs’ homofóbicos, sexistas, misóginos e por aí fora. Tive de contrariar esse adquirido. Esse contrariar faz-se de muitas maneiras e dá muito trabalho. Dá muito trabalho aprender que a diferença é uma professora.
Dá muito trabalho informar-se?
Dá.
A violação foi o crime que mais aumentou em Portugal em 2017. Em 408 casos denunciados, foram detidos 58 agressores Acha que o nosso sistema judicial pode desencorajar algumas vítimas?
É muito difícil fazer uma análise a partir desses números porque é um crime que pode ser muitas vezes difícil de provar. O facto de reportarem e depois haver um número determinado de detidos, não significa que não tenha acontecido qualquer coisa. Esses detidos que fala são o quê?
Casos que terminaram em detenção efetiva.
O facto de um agressor ser condenado a uma pena suspensa pode ser algo forte, de acordo com o nosso sistema penal. Não posso avaliar dezenas e dezenas de sentenças sem as conhecer. O que eu tenho por assente é que o aumento de penas ou a impossibilidade de não decretar a prisão preventiva ou a revogação da suspensão provisória do processo ou a impossibilidade de suspender a pena não diminuiria em nada a incidência do crime.
Referia-me a frustração por parte de vítimas. A vítima de violação numa discoteca de Gaia disse em entrevista ao jornal Público que a sua queixa “não adiantou de nada”. [Acórdão justifica pena suspensa com afirmações como “sedução mútua” e “danos físicos” sem “especial gravidade”]
É terrível, é qualquer coisa sobre a qual nos devemos confrontar. Esse acórdão é um acórdão lamentável, é um acórdão que, lá está, reuniu o consenso nacional relativamente à argumentação que utilizou para justificar a suspensão da pena. Foi uma argumentação machista, absolutamente intolerável. É um caso que denota uma falta de formação grave em igualdade de género, pelo menos, daqueles magistrados em causa. Mas não é um problema da lei, é um problema daqueles magistrados em concreto.
A lei tem-se atualizado, na parte dos crimes sexuais, e os magistrados estão a ficar para trás?
Não posso falar por toda a magistratura, acho é que é um dever nosso assegurar que a igualdade de género está presente de forma forte na nossa formação desde a escola, na formação dos alunos de Direito, na formação dos juízes e na formação contínua dos magistrados.
Está envelhecida, a forma como alguns magistrados olham para estes casos?
Há decisões que vêm a público – não quero generalizar – que me revoltam e que demonstram que há magistrados e magistradas que têm um modo de pensar absolutamente contrário ao espírito constitucional atual, que é o da igualdade de género.
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Uma das conclusões do projeto Bystanders, que tem estado a ser aplicado nas escolas, é que os jovens têm mais consciência em relação ao assédio sexual em geral, mas quando este acontece no seu círculo pessoal. Quando acontece com outras pessoas, surge o fenómeno que se chama ‘othering’, atribuem-se culpas: “elas é que provocam”, “elas são diferentes de nós”. De uma forma geral, esta poderá ser a causa de fundo da polarização sobre este tema?
As pessoas considerarem que quando acontece aos outros são elas que provocam?
Sim.
Há uma coisa que me parece evidente, o sexismo não tem género. Tanto há mulheres profundamente sexistas como há homens feministas e homens sexistas. É um fenómeno que se vê quotidianamente, que “ela estava a pedi-las”. É um substrato cultural da culpabilização da vítima, que é a mulher que tem de ter cuidado com o que veste, como é que anda e em que sítio é que anda, em vez de se educar os homens que aquele corpo não é propriedade deles, que há limites e onde é que acaba a liberdade de cada um e de cada uma. Devia ser ao contrário, nós não devíamos ser educadas para termos de nos defender, deve haver é uma educação para que não haja agressão. Mas todas e todos nós nos lembramos de momentos da nossa infância em que nos disseram: “cuidado, não uses isso porque...”. A educação é feita de forma inversa àquilo que seria o valor correto da ação social. Portanto, nós ainda temos uma estrutura patriarcal que culpabiliza o comportamento da mulher.
Ora se isto acontece na sociedade, institucionalmente também acontece. As instituições nascem de onde? Da sociedade. São depois compostas por pessoas, que são agentes administrativos, são juízes, são juízas, são magistrados, que não foram educados na lua, foram educados nessa mesma sociedade que culpabiliza a vítima. Depois relativiza o ato de agressão porque a mulher não se comportou dentro de determinados padrões e, portanto, no fundo, estava a pedi-las.
O “estava a pedi-las” está presente todos os dias na nossa vida. E temos de desconstruir esses conceitos. Temos de educar homens e mulheres para a liberdade individual e para a ideia de que ninguém é propriedade de ninguém. Acabar com esta ideia de que nós mulheres é que temos de aceitar uma espécie de testosterona incontrolável à qual temos de nos submeter e que, portanto, temos de aprender a proteger-nos. Não. Independentemente de podermos aceitar diferenças de natureza entre homens e mulheres, que é contestável, mas ainda que aceitando isso, o que nos diferencia dos animais é a cultura. Nós, culturalmente, o que devemos fazer é educar para que haja controlo recíproco para a expansão máxima da liberdade de todos e de todas.
Acha que há uma crise de empatia?
Acho que é a maior crise que estamos a viver a nível mundial, mesmo. Uma incapacidade enorme de sermos o outro. Para mim é uma das coisas mais fulcrais na minha vida, política e pessoal.
Vejo que os corpos das pessoas que representam tantas das minhas lutas estão à beira da morteA carreira da Isabel tem sido feita destas lutas, de empatia. Por isso é que lhe pergunto a sua opinião sobre como acha que chegámos aqui.
Isso dava uma longa conversa. Mas o que sinto é que tudo aquilo pelo qual lutámos, o direito à diferença, o direito a sermos tratados e tratadas de forma igual na alegria dessa diferença, ao invés de ser no crime dessa diferença, a luta que foi travada para vivermos numa sociedade pluralista e não numa sociedade em que um grupo impusesse um modelo de família ou um modelo de pensamento ou um modelo de moral que esmagasse os outros, a luta que travámos para que todas e todos pudessem existir e expressar-se respeitando as outras pessoas, está tudo em perigo. Está tudo em perigo. E o que aconteceu agora no Brasil mostra isso. Apesar de sentir que também está em perigo em Portugal, estou altamente tocada com tudo o que aconteceu no Brasil, porque foi há poucos dias e nasci lá, tenho uma grande ligação com o Brasil. Vejo que os corpos das pessoas que representam tantas das minhas lutas estão à beira da morte.
Assistimos a momentos de livre-trânsito de calúnias e de falsas notícias – fake news – nas redes sociais e as pessoas, pura e simplesmente, destroem-se umas às outrasAcha que é possível vermos um fenómeno semelhante em Portugal?
Com esta conjuntura política, felizmente, não, mas num futuro médio não se pode excluir. Acho que as condições estão reunidas, vivemos num momento de celebração da falta da contenção das palavras, confundindo a contenção das palavras para não desrespeitar os outros e, portanto, para não fomentar o ódio, com ataque à liberdade de expressão. Vivemos num momento de substituição do jornalismo de substância por jornalismo de casos e jornalismo de destruição das pessoas por episódios fortuitos, que fomentam o ódio aos políticos e à democracia representativa que custou a morte, a prisão e a tortura de muitas pessoas. Assistimos a momentos de livre-trânsito de calúnias e de falsas notícias – fake news – nas redes sociais e as pessoas, pura e simplesmente, destroem-se umas às outras como se no outro lado não estivessem mulheres e homens de carne e osso, que sentem e que têm as suas vidas e os seus projetos. E depois temos os problemas que podem ser pegados pelos Trumps e pelos Bolsonaros desta vida para, utopicamente, imaginarem o fim apetecível para uma comunidade inventada. Temos o problema das migrações, a questão dos direitos das minorias, a crise de confiança na classe política, o crescimento mediático de pessoas e até de algum jornalismo anti-democrático e, portanto, eu acho que vivemos num clima de ódio em que há espaço para um Bolsonaro aparecer.
Aquela ideia de que o Brasil não é connosco aflige-me muito porque quando o homem que diz que abomina a democracia, admira a tortura e abomina mulheres, homossexuais, transsexuais, negros e favelados chega ao poder, as nossas lutas de cá também estão em risco.
Há alguma coisa que a possa fazer parar de lutar?
A mim? Às vezes paro de lutar porque fico esgotada, mas normalmente é apenas uma pausa. Há momentos em que me sinto profundamente triste, mas recomeça-se sempre, porque nós nunca estamos sozinhos. Assim como muitas vezes sou eu que puxo por alguém, para continuar a lutar, há momentos em que estou mais em baixo e há sempre quem puxa por mim. E, sobretudo, qual é a alternativa? Desistir? Não me parece.
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