"Portugal é como uma paragem de autocarro, a maioria do tempo é à espera"
O maestro António Victorino d'Almeida é o entrevistado de hoje do Vozes ao Minuto. Com o penteado característico e de sorriso pronto recebeu o Notícias ao Minuto para uma conversa sobre a sua vida e carreira.
© Presidência
Cultura Victorino d'Almeida
É o compositor português com mais composições, mais de 200, entre sinfonias, óperas ou fados. É ainda pianista, escritor, realizador de cinema e de televisão, encenador e comunicador. Um verdadeiro homem dos sete ofícios. O maestro António Victorino d'Almeida é o entrevistado de hoje do Vozes ao Minuto.
Numa conversa, que passou pelas várias áreas a que se dedica, falou com o Notícias ao Minuto sobre a sua longa carreira, que dura há tanto tempo tanto por gosto como por necessidade, sobre a passagem por Viena e a vida que agora tem por cá.
Teceu críticas à forma como a música clássica é vista no país e fez uma análise ao panorama musical português. Havendo ainda tempo para explicar uma das suas imagens de marca: a bengala.
Estudou no Conservatório Nacional de Música, depois acabou por ganhar uma bolsa para estudar em Viena. A certo ponto já tinha a vida estabelecida na Áustria como músico. Mas, quase 30 anos depois, decidiu vir para Portugal. Porquê?
Voltei por uma razão muito simples, até porque caso não fosse isso voltar seria realmente um ‘tiro na cabeça’, mas não me arrependo nada no sentido em que dei mais 20 anos de vida ao meu pai, depois de a minha mãe morrer.
Nessa altura, estava a fazer música para o Teatro Nacional da Áustria, tinha a vida bastante organizada e sabia que tudo o que tivesse de fazer aqui podia fazer na mesma a partir da Áustria, vinha cá, fazia e ia embora, até porque Portugal é como uma paragem de autocarro, a maioria do tempo é à espera. Ali os tempos de espera já tinham acabado, estava lá e quando precisava de alguma coisa vinha cá.
Mas entretanto o meu pai ficava completamente sozinho, eu era filho único e estava em Viena, as três netas estavam em Paris, por isso estou muito feliz de ter voltado e de lhe ter podido dar mais esses anos de vida. Agora, ninguém de bom senso voltaria para Portugal, seguramente que não.
Se não fosse pelo seu pai não teria voltado?
Nunca. A menos que estivesse doido. Há umas crises de nostalgia que as pessoas sentem, mas é preciso interpretar essa nostalgia. Como acontece com a infância, temos nostalgia do tempo da infância e queremos regressar a esse tempo, mas não é possível. Portanto esses regressos movidos pela nostalgia ou saudade das coisas acaba por ser um acumular de desilusões, porque nada daquilo que relacionamos com esses tempos volta.
Qual foi o seu primeiro instrumento?
Acontece que o Pai Natal me ofereceu uma bateria quando tinha quatro ou cinco anos, era de brinquedo, e foi ao ver-me tocar bateria enquanto ouvia a rádio que uma professora de piano, que era amiga da minha mãe, achou que eu devia estudar música. Sempre gostei muito de bateria e tenho muita pena que os grandes, geniais bateristas de jazz tenham desaparecido todos e que tenham aparecido agora uns 'tamborileiros'. Mas considero que foi o piano, primeiro e único.
E recorda-se se era coordenado a tocar bateria?
Não, acho que não. [risos]
Acha que o facto de o seu avô paterno, Achilles d’Almeida, ter sido músico e de a sua mãe ter sido brevemente cantora lírica influenciou a carreira que acabou por escolher?
Não, não me parece. Felizmente para mim acho que nunca sofri esse tipo de pressões, que me lembre. Para já o meu avô paterno vivia em Caminha, que era longe na altura, e como só lá ia no Natal ou no verão só conheci o meu avô quando tinha 14, 15 anos, realmente conhecer como pessoa, e só nessa altura é que percebi que ele era músico. Na altura já fazia música, já teria feito até concertos.
Felizmente os meus pais nunca fizeram de mim ‘macaquinho de circo’, apresentei-me pela primeira vez em público a sério num concerto no Conservatório tinha já 14 anos
Então o que é que motivou essa escolha de carreira?
Para ser sincero acho que sempre foi uma carreira, ou seja, não posso garantir que sempre tenha sido, mas não me lembro de alguma vez ter pensado vir a ser outra coisa que não fosse músico. Podia ter sido, mas foi um caminho natural. Felizmente os meus pais nunca fizeram de mim ‘macaquinho de circo’, apresentei-me pela primeira vez em público a sério num concerto no Conservatório tinha já 14 anos e nunca jogaram comigo, já não era criancinha.
É pianista, compositor, escritor, realizador de cinema e de televisão, encenador e comunicador. É um verdadeiro homem dos sete ofícios. Não se dispersa? As áreas não entram em conflito?
Não, não entram. Não perco horas na internet. Mas não, não entram. Há uma ordem de prioridades, sou essencialmente músico e essencialmente compositor, sou pianista, mas já não sou concertista, improviso muito e acho que o faço bem. Mas há muito tempo que a minha agenda não me deixa sentar em casa a estudar piano para fazer um concerto, para tocar sonatas do Prokofiev, do Ravel, ou do Beethoven. Às vezes tenho saudades de o fazer. Mas não há nenhum choque porque como sou compositor, se deixasse de o ser é que era mau.
Ainda trabalho por gosto, 100% por gosto e 100% sob protesto por ser também por necessidade. Acho que é uma pulhice uma pessoa com 78 anos ser obrigada a trabalhar porque não tem outra solução
E quando é que surge a encenação e a realização?
Encenar só encenei uma peça, mas nunca mais me esqueci e, felizmente, os atores também não. Foi uma experiência muito boa, o Carlos Avillez lembrou-se e foi no Teatro de Cascais.
O cinema apareceu via televisão, ou seja, comecei a ser conhecido na televisão através do ‘Zip Zip’, bem como muitas outras pessoas. Foi o ‘Zip Zip’ que nos deu notoriedade junto do grande público. Já tinha voltado para Viena, depois de passar cá um verão, quando me propuseram fazer um programa de televisão. A ideia era escrevê-lo e apresentá-lo, chamou-se um realizador austríaco, mas o dinheiro que o realizador custava era mais do que o orçamento de todos os programas das televisões naquele momento. Ia desistir quando a montadora, que era genial e prestigiada em todos os países de língua alemã, disse que me ia ensinando enquanto eu fazia. Assim comecei, cada programa que fazia era uma aula para mim. Acabei por tirar um curso de cinema com essa senhora e com o cameraman, durante os primeiros seis meses.
Por outro lado sempre gostei muito de escrever. Quando estava em idade escolar não havia a possibilidade de fazer o liceu e o conservatório no mesmo sítio, como se pode fazer hoje em dia em Lisboa e no Porto. Os meus pais tiveram de optar, sinceramente não sei porque é que optaram dessa forma, mas escolheram que fizesse o conservatório no Conservatório e a escola em casa, e tive uma sorte desgraçada porque acabei por ter professores geniais. Fui aluno do António José Saraiva, do Jorge Borges de Macedo, o de matemática era o Jaime Leote, que eram pessoas perseguidas pela PIDE e que portanto eram professores que naquela altura eram financeiramente aceitáveis. Tive uma educação fantástica, eram só vedetas. Já eram pessoas muito prestigiadas e que me criaram um interesse pela literatura tão grande como pela música. Comecei a escrever muito cedo, escrevi a minha primeira peça de teatro aos 16 anos e publiquei o primeiro livro aos 20 e poucos anos. A escrita sempre me acompanhou. A literatura levou-me ao cinema, porque acho que há dois tipos de realizadores: os que chegam por via da fotografia, em que a imagem está em primeiro lugar e outros vêm via palavra, literatura, teatro até.
Aos 78 anos, ainda continua a trabalhar. Neste momento é por gosto ou por necessidade?
É por gosto, 100% por gosto e 100% sob protesto por ser também por necessidade. Acho que é uma pulhice uma pessoa com 78 anos ser obrigada a trabalhar porque não tem outra solução. Acontece que a natureza é generosa e deu-me forças suficientes para trabalhar e gostar do que faço. Não faço esforço nenhum para trabalhar, chatear-me-ia horrores se não trabalhasse, agradeço a todos os entes superiores o facto de gostar tanto de trabalhar, mas acho uma pouca vergonha que com esta idade seja obrigado a trabalhar... e sou.
A minha reforma é para rir, é de 280 euros. Gosto do que faço, posso fazê-lo, não me falta trabalho, mas manifesto a minha exaltação e nojo pelos pagamentos em atraso que é uma coisa vergonhosa e fascista. Entre uma Câmara Municipal que deve dinheiro e me faz viver em sufoco e a PIDE não estabeleço grandes diferenças. Até acho que estou acima da média do que os portugueses ganham, mas se não me pagarem a tempo não consigo e acontece comigo como acontece com muitas outras pessoas que conheço. Até porque sei que há quem receba até com 15 dias de antecedência, porque exigem, porque há um grande apoio a determinadas atividades, nomeadamente na música ligeira.
O maestro também já concorreu a umas eleições europeias. Foi cabeça-de-lista, como independente, do MDP/CDE, em 1989. Como é que foi essa experiência?
Sim e perdi por 300 e poucos votos. Foi muito boa, mas foi totalmente fora de todo o contexto. A experiência surgiu porque tinha dois amigos, o José Manuel Tengarrinha e a Helena Cidade Moura, que eram fundadores do MDP/CDE - que foi uma espécie de casa mãe de toda a democracia portuguesa, só que os filhos depois cresceram, saíram de casa e ficou o MDP sozinho [risos] - e convenceram-me. O que é engraçado é que eles acreditavam e eu até quase ao fim também acreditei.
Lisboa podia concorrer a capital europeia das obras póstumas, que se enquadra como uma espécie de necrofilismo gaiteiro, que é o que se passa
Qual era o seu grande objetivo? O que é que achava que podia fazer nesse cargo?
A verdade é que não era um cargo político. Era a constatação de que em Estrasburgo não havia ninguém explicitamente preparado para defender a cultura e que poderia haver um deputado que tivesse o papel de tornar a cultura portuguesa conhecida. Lisboa podia concorrer a capital europeia das obras póstumas, que se enquadra como uma espécie de necrofilismo gaiteiro, que é o que se passa. Mas ainda por cima esta ‘marcha’ macabra é pior que nos outros países, porque há países em que se faz o mesmo e onde só depois de mortos é que são reconhecidos, mas aqui depois de mortos estão enterrados e acabou. É que nem a esses se faz o que era devido. Noutros países há muitos casos de pessoas que morreram sem ser reconhecidas, mas depois vêm as homenagens. Cá não.
Portanto, a ideia era dar a conhecer a cultura portuguesa lá fora, que hoje em dia já é mais conhecida mas devido à dimensão gigantesca de certas figuras, e não creio que alguém que seja reconhecido internacionalmente deva alguma coisa a Portugal.
O ano passado dava conta numa entrevista de que o Parlamento Europeu não tinha um representante verdadeiramente vocacionado para defender a cultura portuguesa. Porquê?
Não se pensa sequer nisso, não é um fator. Que eu saiba nem nunca existiu e atenção que as pessoas que estão lá trabalham, tive já alguns contactos com o Parlamento Europeu, não andam a brincar, agora não lhes resta é muito tempo para defender a cultura e acho que era bom, que era preciso e que era justo.
Há uma regra de família, que as minhas filhas respeitam, que diz que entre nós não há cunhas, nem coisas de famíliaA sua filha, Inês de Medeiros, foi eleita presidente da Câmara de Almada, pelo PS. A autarquia era comunista desde 1976. Foi festejar a vitória com ela?
Ela vingou-me. Ganhou por 300 e poucos, o mesmo por que perdi [nas eleições europeias]. Mas foi um dia bom. Senti foi também a dor dos que perderam, sabia como era chato perder [risos]. Tenho toda a confiança que a Inês fará o que for possível fazer. Acho que há coisas que terá pensado, e que eu pensei, que poderia fazer, mas que não são possíveis. Como por exemplo a [Costa de] Caparica, podia ser transformada num sítio com uma dimensão mundial, numa grande praia, mas não pode ser porque aquilo é tudo parcelado e tem diferentes donos.
Atrás fazia críticas em relação aos pagamentos em atraso que as Câmaras Municipais tinham para consigo. Como é que vê que a sua filha agora esteja à frente de uma entidade dessas?
Espero que se porte bem! A mim nunca poderá ficar a dever, há uma regra de família, que as minhas filhas respeitam, que diz que entre nós não há cunhas, nem coisas de família e sítio onde uma filha esteja a trabalhar ou a organizar eu não trabalho. Não misturamos as coisas.
Portugal só tem gabarito para entender e para praticar música pop, fado, rock, o que se quiser, até pimba, mas a ‘exportação’ maior é de músicos clássicosConsidera que a música clássica tem pouca expressão em Portugal? Porquê?
Nunca como hoje houve tantos músicos clássicos em Portugal, há uma imensidão. Nem sei onde estudam, de onde vêm, mas alguém os ensinou e eles são bons. Entre os bons destacam-se os ótimos que vão para o estrangeiro. Há para aí uns 40 por ano e acho que não estou a exagerar, antes pelo contrário, em orquestras estrangeiras. Se formos a ver bem nós podíamos ter cinco ou seis orquestras sinfónicas a atuar sem ser em trabalho precário.
No Governo falam sempre com muita aflição no trabalho precário, mas esquecem-se de que os músicos trabalham de forma precária e nem se preocupam. Isso faz com que a sua vida se torne mais complicada e com que a solução mais aconselhável seja emigrarem. Mas mesmo com os que ficam cá. Se há gente para seis orquestras sinfónicas, multipliquem por 100 músicos, dá 600 músicos de grande qualidade. Há assim tantos na música pop? Não há que eu saiba. Há assim tantas vedetas? Só pergunto, mas acho que não.
Portugal só tem gabarito para entender e para praticar música pop, fado, rock, o que se quiser, até pimba, mas a ‘exportação’ maior é de músicos clássicos. Mesmo cá quando se junta essa ‘gente’ toda de qualidade a tocar numa orquestra, que por vezes até tem miúdos de 15 anos, é isto que dizem que ninguém quer? Por outro lado, quando se vão ouvir os concertos com estas orquestras, que são orquestras como dizia precárias, encontram-se salas cheias.
Não faltam músicas, não faltam salas, não falta público, o que é que falta? E aí recorro ao meu grande amigo e grande músico Zeca Afonso e digo: “O que faz falta é avisar a malta”. O que faz falta é dizer-se a verdade e a verdade não é dita.
Já estive em programas de televisão, até com pessoas simpáticas, mas que olham para mim como se eu fosse um colecionador de borboletas vesgasSente que é uma questão de preconceito?
Há um grande preconceito. Quando eu era miúdo lembro-me de que havia um preconceito do público dos concertos mas ao contrário. Havia os narizes empinados, elitistas, umas mulheres muito feias, era uma coisa horrível, dizia-se que se juntavam as feias todas para ouvir música. Na realidade hoje em dia o preconceito virou, é tudo preconceituoso. Se houver um grande músico, mas que alguém diz que faz música ligeira, há logo alguém que se insurge a dizer que não há música ligeira, é completamente preconceituoso. Já estive em programas de televisão, até com pessoas simpáticas, mas que olham para mim como se eu fosse um colecionador de borboletas vesgas [risos] e dizem: “Aqui está este homem que tem dedicado a sua vida à salvação da espécie”. É um disparate.
Porque é que acha que é dado mais destaque a outros tipos de música em detrimento da clássica?
Neste momento, além de um preconceito, considero que há grupos de pressão, mas mais especificamente no caso da pop e do rock. Sei que os outros ramos, os 'pimbas', o fado, é natural que se penduram um bocado na forma de trabalhar e de receber, pudera, eu também me pendurava. Mas sempre que tento encontrar uma razão para isto é sempre muito complicado, porque o preconceito nasce onde menos se espera, onde menos se deseja, é uma erva daninha.
Há uma coisa que não existe em Portugal e que é uma fonte de receita tremenda. Ao contrário do que se pensa, porque não se fazem contas, a organização musical mais rica e poderosa do mundo é a óperaComo é que vê o panorama da música em Portugal?
Por um lado, fantástico com a quantidade de jovens músicos extraordinários, muitos ainda cá, muitos já de malas feitas e outros já tendo ido embora. Há uma coisa que não existe em Portugal e que é uma fonte de receita tremenda, mas sinceramente não é para a geração dos vossos filhos, é dos vossos netos, que é a ópera. Ao contrário do que se pensa, porque não se fazem contas, a organização musical mais rica e poderosa do mundo é a ópera. Todas as grandes cidades europeias têm ópera, Lisboa é a única que eu conheço que não tem. Porque chamar àquele mausoléu, que é o [Teatro] São Carlos ópera, uma coisa que dá sete ou oito espetáculos por ano, quando as outras dão 365 espetáculos por ano, nem dá para comparar. Aquilo é uma coisa esquisita que ali está, não interessa a ninguém.
Se formos à ópera começamos por ver 100 músicos, todos pagos, não são precários. Depois tem um coro que são 80 pessoas, há um corpo de baile que são outros 40. Há os empregados, que vão desde os bilheteiros às empregadas de limpeza, são trezentas pessoas e temos de aumentar o número se pensarmos em figurinistas ou costureiras, tudo isto atinge um preço inimaginável e ainda nem falei nos mais caros que são os cantores. Ainda há os maestros que vão a essas grandes óperas e que se pagam muito bem. Um concerto dos Rolling Stones movimenta cerca de 30 pessoas ao todo na organização, num espetáculo de ópera estão envolvidas mais de 1000. Nós não temos estrutura para isso.
Quando pensei sobre isso, questionei-me sobre como se pagaria uma coisa dessas. Porque mesmo que os bilhetes sejam caros, e também os há baratos, são sempre uma coisa residual. Em Viena por exemplo, contabilizam quantas pessoas vão lá para ir à ópera e acabam a ganhar pelos bilhetes de avião, os hóteis, os restaurantes, as lojas, tudo o que a pessoa gasta, vai dar tudo a um bolo que é a economia do país.
Mas claro que isto não se pode fazer num país em que a ópera caiu em desuso e agora para pôr a ‘máquina’ a funcionar outra vez seria preciso agir já e já só seria para os netos, não seria agora. Mas pronto, tuk tuks está bem, agora ópera não.
E a música que passa na rádio? Ouve?
Sempre achei mal as rádios especializadas só num tipo de música, é anticultural. Teria de haver uma fatia para a música clássica, no meu entender. Às vezes oiço, às vezes, quando estou a trabalhar vou para ir mudar o disco e ponho na Antena 2, que é uma boa estação de rádio, tem bons programas, mas não serve para nada. Porque se os outros não dão música nenhuma clássica, a Antena 2 tinha de dar apenas música, mas não, dão programas sobre economia, pintura, coisas muito interessantes, não estou a minimizar, só que se já há tão pouco se a Antena 2 passa o tempo todo a falar, a pouca fatia que há até essa desaparece.
Acho que a música clássica podia estar incorporada em programas, que até podiam ter fala, onde se abordassem os músicos, as pessoas, o lado humano, em vez de serem apenas estátuas de mármore, para que as pessoas percebessem que são iguais. Se se ouvisse falar nisso talvez houvesse mais interesse, mais identificação. Os programas de televisão que fiz chegaram ao povo todo e garanto que dei lá música de Schubert e Weber e as pessoas percebiam, gostavam de ver, interessavam-se por aquilo.
Tudo o que é música são plágios uns dos outros, inclusivamente, não exclusivamente. Em todas as músicas há plágiosComo é que tem visto os casos de plágio que têm surgido nos últimos anos, como o do Tony Carreira ou do Diogo Piçarra?
No caso do Diogo Piçarra não era plágio, era igual. Quanto menos notas se usam mais fácil se torna de as repetir. Ainda que eu defenda que sem plágio não havia cultura. Tudo o que é música são plágios uns dos outros, inclusivamente, não exclusivamente. Em todas as músicas há plágios. Agora, realmente há coisas iguais como foi o caso desse rapaz, que o fez sem saber, é óbvio, ficou-lhe no ouvido em algum lado e repetiu. Muitas vezes também me acontece ficar com coisas no ouvido que não sei de quem são, por vezes até me pergunto se serão minhas. Há dias no Teatro A Barraca, durante o intervalo comecei a ouvir uma música e tentei identificá-la, pensei quem é que teria feito aquilo, era engraçada. Ainda pensei: “Conheço isto” e quando fui perguntar disseram-me que era minha [risos] e garanto que não cheguei lá.
Não é mau que uma pessoa tenha uma coisa no ouvido e não saiba de quem é, se forem coisas tão elementares como acontece em vários casos hoje em dia as probabilidades são gigantescas.
No caso do rapaz do Festival da Canção até me chamaram para me pronunciar e estive juntamente com o Tozé Brito a analisar. Encontrámos uma canção inglesa, uma da IURD, que também era pelos vistos plagiada da inglesa e uma canção popular portuguesa da Beira igualzinha. Já não era caso raro e cada vez haverá mais. Se a música tem 12 notas, que parece que é pouco, mas é como o Euromilhões ou mais nas possibilidades de troca e se cumprir permanentemente os mesmos passos e não sair daí a coisa começa a ser muito mais reduzida, a uma escala de milhões. Se ainda por cima for sempre tudo no mesmo ritmo, diminui ainda muito mais e começa a ser terreno muito perigoso.
Se as pessoas se habituarem a ouvir músicas com muito poucos sons, com muito poucas soluções e se habituarem a fazê-la assim também, se o seu mundo musical for assim tão restrito é lógico que vai acontecer.
Ainda é reconhecido na rua?
Sim, conhecem-me da televisão. Não da que viram, mas da que os pais viram. Muitas vezes vou na rua e até pessoas de classes mais desfavorecidas me reconhecem. Não conhecem pormenores, mas até se enganam e dizem: “Olha vai ali o Vitorino Nemésio”. Isto acontece-me, dou-lhe a minha palavra de honra, todas as semanas pelo menos duas vezes [risos] e reajo com a emoção de me lembrar que o Vitorino Nemésio morreu há mais de 30 anos e continua no imaginário do povo, é espantoso. É a demonstração de que o povo gosta de pessoas que falam sobre música, literatura ou cultura, porque, se não, venham comigo à rua para ver se não é verdade. Portanto, se há o tal preconceito é pequeno-burguês e reacionário, não vem do povo.
Uma das suas imagens de marca é a bengala, como é que esta surge na sua vida?
Foi por um mero acaso. Uma coisa sem razão nenhuma. No sótão do meu avô havia várias coisas velhas, entre elas uma coleção de bengalas. Eu descobri uma com tema japonês ou chinês, era muito bonita e saí com ela para a rua. Tinha 14 anos. Achei piada andar com a bengala, mas ao atravessar a rua vinha um carro, tive de correr um bocado, meti a bengala entre as pernas e parti-a. Cheguei a casa muito triste e, dois dias depois, quando fiz anos, a minha mãe ofereceu-me outra.
A partir daí andei sempre com uma bengala, mas não sou colecionador de bengalas, nunca comprei nenhuma. Vão-me oferecendo muitas, mas uso sempre a mesma.
A mais antiga que tenho tem cerca de 50 anos. Estava a jantar com o Joaquim de Almeida, lembro-me perfeitamente da situação, tenho por hábito pôr a bengala sempre no chão, o empregado não viu, pisou-a e a parte de cima saiu. Tenho-a ali para mandar arranjar e essa é a que considero ser a minha bengala. A que uso agora já tem quase 30 anos e foi-me dada pela minha mulher em nome da minha filha mais nova, que tinha dez anos na altura, era sempre a segunda bengala, mas agora passou a primeira enquanto a outra não estiver arranjada.
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