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"Se ninguém sentir nada por minha causa, não faço bem o meu trabalho"

À beira de subir ao palco dos Coliseus, Filipe Melo é o entrevistado desta terça-feira do Vozes ao Minuto.

"Se ninguém sentir nada por minha causa, não faço bem o meu trabalho"
Notícias ao Minuto

05/02/19 por Pedro Filipe Pina

Cultura Filipe Melo

No tempo em que a Internet ainda vacilava só por alguém ligar lá para a casa, Filipe Melo era um adolescente que se lançava à descoberta nos primórdios da navegação online. Foi por mares tão pouco navegados, que até chamou a atenção das autoridades.

O episódio é aqui recordado por nós. Para Filipe Melo, entre risos, está é uma "longa história" que já lá vai. Mas recordamo-lo para dizer o seguinte: Filipe Melo tinha 15 anos quando os pais lhe trocaram o computador por instrumentos.

Os pais ainda tiveram o coração nas mãos quando lhes explicou que queria ser músico de jazz. O tempo era de incertezas, mas lá foi ele.

Filipe Melo fez-se músico e tornou-se exímio. Depois decidiu que ia fazer filmes e destacou-se com uma curta-metragem de zombies à portuguesa (sim, isto aconteceu, e com um elenco de respeito). Mas não ficou por aqui.

Quando se sentou a escrever BDs, viu o seu trabalho premiado e publicado além-mar. Pelo meio, trabalhou em televisão e nunca deixou a música: era ele em palco, com o humor de Bruno Nogueira e a voz de Manuela Azevedo, em 'Deixem o Pimba em Paz'.

Vai estar novamente em palco nos Coliseus, agora na companhia do mesmo Bruno Nogueira e Nuno Markl, com 'Uma Nêspera no Cu - O Musical', podcast transformado em espectáculo, que, quando falámos no mês passado com Filipe Melo, "ainda" não se sabia muito o que ia ser. O Coliseu de Lisboa recebe os espectáculos 'Uma Nêspera no Cu' entre dia 5 e 9 de fevereiro. No Coliseu do Porto os espectáculos decorrem entre os dias 15 e 17 de fevereiro.

De forma discreta, Filipe Melo tem construído uma carreira de relevo, mostrando talento nas mais diversas áreas. O acaso, diz-nos, tem muito pouco a ver com isto.

Talvez por isso se perceba por que razão nos diz que lhe "parte o coração" sempre que se  cortam as asas a um miúdo que queira arriscar o seu sonho. É possível, diz-nos. Vai é ser necessário trabalho. E persistência. E mais trabalho. 

O ‘Uma Nêspera no Cu’ está de volta, agora em modo musical. O que é que aconteceu para um podcast agora nos dar música?

Foi uma associação um pouco improvável de três pessoas, que arrancou com uma viagem do Nuno Markl no ‘Deixem o Pimba em Paz’. Fizemos um podcast que pensámos que chegaria a algumas pessoas e nunca imaginámos que chegaria a tantas. Depois um dia alguém – um dos três, já não me lembro exatamente quem – disse: “E se aparecesse o ‘Uma Nêspera no Cu – O musical’? Isso seria algo que gostaríamos de ver". E a coisa começou assim. Ainda não sabemos muito bem o que vai ser, mas gostámos muito do título [risos].

Qual é o desafio aqui? É transformar as conversas em música?

O desafio é chegar aos dias no Coliseu e não termos de pedir desculpa às pessoas porque não conseguimos preparar nada. Neste momento o desafio é esse. Há pessoas que compraram o bilhete! A 20 dias de isto arrancar ainda não tínhamos uma ideia ténue do que é. Mas só pode ser divertido. E insólito.

É libertador, é uma loucura e dou por mim a pensar porquê é que isto tem interesse para alguém. E sou obrigado a pensar que tem interesse para nós e é a total liberdade, a total ausência de filtros

É muito diferente do que foi a preparação do 'Deixem o Pimba em paz?'

É. Para já, fizemos um pacto de sangue em que não se pode falar disso isoladamente e neste momento estou a trair esse pacto e vou ser morto por causa disso. Mas é muito diferente porque o ‘Deixem o Pimba em Paz’ foi um processo muito rigoroso, com muitos ensaios em que queríamos experimentar coisas e andar à volta daquilo tardes e tardes. Aqui é total liberdade. E improviso. E isso também tem o seu encanto. É um bocadinho mais assustador, uma espécie de abismo, mas em que não há nenhuma pressão porque nenhum de nós tem aqui a sua atividade principal. É uma ida à Feira Popular.

É libertador, é uma loucura e dou por mim a pensar porquê é que isto tem interesse para alguém. E sou obrigado a pensar que tem interesse para nós e é a total liberdade, a total ausência de filtros. Alguém como o Markl, que é capaz de ser a pessoa que mais gozo terá. Ele na rádio não pode dizer expressões como "c*** da vossa mãe". E ali está à vontade. E isso dá a sensação de que se vive numa democracia: pode-se dizer o que nos apetecer. Mesmo que seja verdadeiramente estúpido.

Outra área onde se tem destacado é no mundo das BDs. Gostava de perceber como é fazer BD num país onde é um nicho?

Essa é uma boa pergunta porque me dá oportunidade de dizer uma coisa que gostava muito de dizer: a BD tem de deixar de ser um nicho. Quando faço uma BD não a faço para os ‘nerds’ da BD. Vai ser um grande passo quando conseguirmos tirar a BD de um nicho e contarmos histórias que as pessoas queiram ler, que poderiam estar num livro, numa série, num filme. Acho que esse será o mérito: a BD ainda tem essa desconfiança, como tem o cinema português. As pessoas não pegam naquilo porque preferem se calhar serem entretidas ou educadas de outra maneira. É por isso é que é uma tarefa muito ingrata, mas é uma luta e gosto do desafio.

'Os Vampiros' tem essa abrangência, não é? É história de terror mas em que somos levados para o interior da selva da Guiné em plena guerra colonial. Porquê esta opção?

Na verdade, eu queria escrever uma história com a estrutura clássica do guião de terror. Só que depois comecei a ficar fascinado com a história da nossa guerra e, na altura, achei que era muito mais interessante não fazer uma história de terror normal e aproveitar aquele cenário de uma maneira mais profunda. Inicialmente ia ser o cenário mas tornou-se mais ou menos a essência da história. Ainda por cima nos tempos em que vivemos começo a perceber que a história da guerra, que nos parece uma coisa tão distante neste momento, é cíclica. As pessoas não aprendem.

No outro dia estava a ler uma entrevista a um escritor que dizia qualquer coisa como a nossa memória coletiva tem cerca de 70 anos. E de 70 em 70 anos esquecemo-nos das atrocidades de que somos capazes e parece que não aprendemos. O livro podia ser só uma história de terror mas também é um bocadinho sobre isso.

Nos EUA, a guerra no Vietname sempre foi tema de ficção. Mesmo tendo em conta a escala dos dois países, por cá são quase pontualidades. Lembro-me do livro ‘Cus de Judas’, do Lobo Antunes, do filme ‘Cartas da Guerra’. Ainda nos falta abordar em ficção aquilo que foi a guerra?

É verdade, não há assim muita ficção à volta do assunto. Lembro-me também do 'Non ou a vã glória de mandar', do Manoel de Oliveira. Mas, e não sei muito bem qual é a explicação, tenho a impressão de que não há muita informação, ou há mas há que ir à procura, porque não vem ter connosco. As pessoas que estiveram na guerra não têm grande vontade de falar sobre o assunto e quando o fazem muitas vezes acaba por ser mais informação documental do que pessoal. As melhores histórias descobri-as em conversas com combatentes e naquelas cartas que enviam para o Correio da Manhã, muitas vezes mal escritas mas com um conteúdo muito rico. As guerras são bons cenários para a ficção, são os extremos do ser-humano que estão ali expostos.

Uma pessoa que queira aprender, um bom princípio é reunir-se de quem faça as coisas bem (e melhor do que nós). Eu tenho tido essa sorteNa BD tem trabalhado muito com o Juan Cavia. Nos espectáculos musicais com o Bruno Nogueira. Em equipa que ganha não se mexe?

Gosto de pensar que sim. É muito difícil uma pessoa encontrar unidades de trabalho que funcionem. Aliás, e sem qualquer tipo de comparação, que até ficava mal, mas eu não acredito que os Beatles tivessem sido os Beatles… se não tivessem sido os Beatles. Eu sei que isto parece uma estupidez de frase [riso] mas é a junção daquelas quatro pessoas que faz com que aquilo aconteça. E depois é a junção daquelas quatro pessoas, com aquele manager, com aquele orquestrador, por aí fora, que permitiu que algo maravilhoso acontecesse. À minha pequena escala tenho esse luxo de ter encontrado algumas pessoas extraordinárias.

É aquela história: Uma pessoa que queira aprender, um bom princípio é reunir-se de quem faça as coisas bem (e melhor do que nós). Eu tenho tido essa sorte. Pelo caminho também encontrei muita gente que se calhar me tirou energia em vez de dar. Mas também já são muitos anos a trabalhar com muita gente. Chego a esta idade e já tenho esse grupinho, de gente com quem me dou muito bem.

A primeira vez que ouvi o seu nome foi com uma curta-metragem de zombies, ‘I’ll see you in my dreams’. De então para cá, no mundo das BD’s, tem tido grandes nomes do cinema de terror (John Landis, George Romero) a prefaciar os seus livros. Como é que a partir de Portugal, onde o género de terror é relativamente pequeno, chegou a estes nomes?

Foi precisamente pelo que dizes: somos um meio muito pequeno. Então somos também, acho eu, relativamente unidos nas mais diversas áreas. Pelo menos naquelas em que me movo.

No jazz há uma comunidade muito unida. No cinema de terror também, daí que eu conheça muito bem os organizadores do MotelX, que têm feito um trabalho extraordinário. Gosto de me sentir parte dessa família – e acho que eles aceitam isto sem me contradizer. Gosto imenso do festival, tenho amigos lá, e foram eles que de alguma forma me puseram em contacto com estes realizadores que foram convidados do festival. E como estes livros do 'Dog Mendonça e Pizzaboy' eram um tributo ao trabalho destes realizadores, acredito nesta união cósmica entre as pessoas que gostam das mesmas coisas. Foi muito bonita a experiência de conviver com pessoas que marcaram a minha vida, especialmente a minha infância. Ganham-se boas histórias. 

Hoje em dia sofro muito quando vejo alguém mais novo com uma vontade de fazer qualquer coisa e tem resistência dos pais. Isso parte-me o coração

Não sei se ainda costuma falar sobre isto: É que antes de todo este mundo das BDs, do cinema, da música, houve um episódio com a informática quando ainda era adolescente.

Epah, já falei disso 500 mil vezes.

Mas o que é que se passou?

Uma longa história. Gostas desta resposta [risos]? Eu era muito novo… e é isso.

Mas houve aí uma espécie de primeira arte descoberta na informática, ou não?

Sim, eu tinha uma grande paixão por computadores. Agora uma pessoa vê estas séries tipo 'Black Mirror' e vejo lá um tributo a todos os jogos e àquele universo de que eu gostava. Eram os primórdios, os primeiros computadores pessoais, a onda do Spectrum, dos primeiros modems, que eram umas caixas gigantes ligadas à linha telefónica. Eu sou dessa altura e tenho saudades desses tempos, era onde me via antes da música.

E como é que foi explicar aos pais que dificilmente seria pessoa de ter um trabalho das 9h às 18?

Não foi fácil. Aliás, hoje em dia sofro muito quando vejo alguém mais novo com uma vontade de fazer qualquer coisa e tem resistência dos pais. Isso parte-me o coração. No meu caso não foi resistência, foi um alerta, por terem genuíno medo do que poderia acontecer. Isso é muito diferente de de repente haver uma castração. Os meus pais tinham medo que eu me tornasse músico e a coisa foi-se dissipando à medida que eles foram vendo que era possível. É um bocadinho estúpido mas as primeiras vezes em que uma pessoa aparece na televisão os pais ficam ‘oh é o meu filho’ e passa esse medo. Ainda há razões para ter medo, claro.

Mas ajuda a serenar.

Ajuda. Lembro-me de que na altura queria estudar música e o meu pai disse-me: tens de ter um curso superior, tenho receio do que te pode acontecer se não tiveres. Então eu tive de fazer isso. Consegui fazer só um ano.

Em comunicação social.

Sim.

Por alguma razão em particular?

Era uma questão de perfil. Mas é importante a pessoa ter algum tipo de paixão por aquilo que está a fazer. A percentagem de pessoas que faz exatamente o que gosta é ínfima. Mas, raios, uma pessoa também só vive uma vez e eu queria ter essa ambição. Percebi que não era por ali. Sofria muito. Não gostava, queria era fazer música.

Com uma vida tão instável, a pessoa de vez em quando tem de trabalhar o triplo para de vez em quando ter aquela noção de estabilidade. Suponho, que não tenho certezas.

Penso nas pessoas que admiro e são sempre pessoas que fazem uma coisa muito bem. Mas percebi ao longo dos tempos que não sou esse tipo de pessoa. Não conseguia só tocar, ou só fazer BD. Ia ser angustiante

Foi estudar música para os EUA.

Sim porque não havia um curso superior cá, não foi aquela coisa de "ah, quero ir para os EUA mesmo à 'boss'". A minha paixão era o jazz, um bocadinho por causa do circuito do Hot Club, onde passava noites e noites. Quando a pessoa gosta de uma coisa tão específica como o jazz, onde é que vai estudar? O Hot Club não tinha um papel impresso a dizer ‘olha, parabéns’. Na altura tive de conseguir uma bolsa mas mesmo assim custou-me uma data de dinheiro estar lá. Ainda fazia uns concertos em bares e restaurantes, a coisa típica. Mas foi altura de investimento: não havia cá.

Como é que foi chegar a Boston com 19 anos?

Foi espectacular. Uma pessoa sai de casa e de repente fica exposto à melhor música – e eu estava no céu da música que gostava. Hoje em dia é que vejo o quão incríveis eram esses tempos. Muitas das pessoas que ouvimos em disco e que já morreram, eu ouvi-as. Lá havia momentos em que o mesmo grupo estava a tocar uma semana inteira num lugar. E eu podia vê-los todos os dias, duas vezes por noite. Era uma overdose, de informação e de música, de aprender mesmo a ouvir e depois a tocar. Chegava à escola e havia sempre alguém a tocar. Foi um bocadinho assim e é irónico porque foi um processo autodidata… mas numa universidade. Era o ambiente. Claro que também havia má vida… mas sempre a tocar.

Uns quatro anos depois volta para Portugal. Como é que foi?

Foi inevitável. Na altura pensei se iria ficar lá a fazer uma carreira como músico. Mas não era possível para mim. Nem sequer foi opção. Gosto demasiado disto. Sou lisboeta. Gosto de tudo aqui. Estou aqui na rua onde cresci. [Apontando] Ia cortar ali o cabelo. Ia ali ao senhor Américo comprar fruta. Isto é a essência do que sou. Noutro sítio ia ter sempre saudades. Mas foi bom o período em que lá estive, porque de alguma maneira fui exposto a coisas, nomeadamente a filmes e músicas, que se calhar me teriam passado ao lado. Foi uma sorte. Uma que muita gente não tem. E devia ter.

Notícias ao Minuto"Costumava pensar que é preciso fazer uma coisa realmente bem. Mas percebi que não sou esse tipo de pessoa. Não ia conseguir fazer só uma coisa. Ia ser angustiante"© Global Imagens

Informática, BDs, cinema, música. Aplica-se aqui aquela expressão dos sete ofícios. Há mais algum ainda por explorar?

Não, não. Se calhar até ter menos [ofícios]. Costumava pensar que nos tempos em que vivemos é preciso fazer uma coisa realmente bem. Penso nas pessoas que admiro e são sempre pessoas que fazem uma coisa muito bem. Mas percebi ao longo dos tempos que não sou esse tipo de pessoa. Não conseguia só tocar, ou só fazer BD. Ia ser angustiante. Então tenho de ir tentando fazer as coisas o melhor possível.

Como é que geralmente funciona o processo criativo? Há uma ideia nova e aposta-se tudo nisso? Como é que se organiza a cabeça?

É boa pergunta porque há aí uma divisão muito grande no tipo de trabalho: há o pessoal e o encomendado, o que faz logo uma diferença incrível. No pessoal, a pessoa geralmente tem tempo, faz nas datas que quer. Não há alguém a dizer isto está bem e isto está mal. Temos a palavra final. Depois no trabalho de encomenda é preciso ouvir o que de facto têm para nos dizer, o que por vezes faz com que o processo seja ainda mais criativo.

Estive já em trabalhos onde fui parar por encomenda e depois aquilo torna-se altamente criativo. O ‘Deixem o Pimba em paz’ teve isso, com um entusiasmo constante nos ensaios. Ainda agora com a produção do disco do António Zambujo. Quando alguém nos dá liberdade para fazermos o que gostamos de fazer, e não está sempre a pôr entraves, gera-se um ambiente de liberdade criativa. Às vezes há esse ambiente, às vezes não. Mas com o tempo uma pessoa também vai percebendo que projetos permitem isso.

Com os nossos projetos pessoais, às vezes começa com uma ideia vaga do que se quer fazer. Há muito isso nas artes: a pessoa quer fazer um disco ou uma história com uma determinada narrativa. Depois há a parte horrível, de tornar isso real. A pessoa vive a angústia de não saber se vai correr bem ou mal. De chegar a um ponto em que está encravado e pensa que nunca vai acabar. E depois é um grande triunfo quando se acaba.

É particularmente difícil fazer isso por cá? Estou a pensar em ter a ideia de uma BD ou para uma 'curta' e concretizar isso em Portugal.

Não sei, não gosto muito de falar mal porque acho que não é assim tão diferente do que é no resto do mundo. Acho é que há um bocadinho de desconfiança na ficção que fazemos. O público em geral ainda tem um pouco de receio. É muito importante quem está nestas coisas devolver essa confiança mas também ter a inteligência de não fazer como se faz em Hollywood ou na Marvel. Eu não quero fazer isso. É mais difícil? Nalgumas coisas sim, nomeadamente encontrar público. Mas por outro lado temos uma identidade muito forte, e quando conseguimos conciliar a arte de contar histórias com o que temos na nossa cultura e identidade, vai aparecer algo que vai ter impacto. Eu vejo ficção extraordinária a ser feita nos países nórdicos, em Espanha... Portugal é ótimo. Só temos de continuar a fazer essas coisas bem.

Falta-nos essa cultura? Por vezes brincamos com espanhóis ou franceses por serem piores com o inglês mas são países que consomem muito a sua cultura. 

Diria que, mais do que faltar essa educação, acho que pouco a pouco aparecem as tais referências. Pessoas que sabemos que são boas e que não é por serem portugueses. Coisas tão simples como termos o melhor jogador de futebol do mundo, o que faz com que um miúdo que se calhar nasceu num bairro desfavorecido e esteja a dar uns toques numa bola, sonhe. Porque isso aconteceu.

Acho que a partir do momento em que incentivamos e respeitamos algumas figuras, isso vai dar oportunidade a que pessoas ambicionem fazer as coisas melhor. Nesse aspeto é de facto educação. É por isso que acredito que as artes devem ser apoiadas na educação.

É muito mau sinal quando a pessoa está a fazer qualquer coisa e a comunidade de pessoas que fazem o mesmo desrespeitam. Nesses casos ou alguém é muito mau ou é um génio absolutoTem vários trabalhos com esse reconhecimento lá fora. A ‘curta’ de terror andou em festivais, as BDs chegaram à Dark Horse. Às vezes parece que há reconhecimento que chega cá depois de ter havido lá fora?

Não especialmente, acho que o mais importante de ser reconhecido é ser reconhecido pelos teus pares. Normalmente é muito mau sinal quando a pessoa está a fazer qualquer coisa e a comunidade de pessoas que fazem o mesmo desrespeitam. Nesses casos ou alguém é muito mau ou é um génio absoluto. Como claramente não me insiro nesta segunda categoria, o que quero é de alguma maneira sentir que estou rodeado de boas pessoas e que tenho esse tipo de respeito, que estou a contribuir para uma coisa coletiva. Claro que estar numa Dark Horse traz algum orgulho, mas cada dia mais essas coisas não são o mais importante.

Aqui há uns tempos, meio a brincar, o desenhador perguntou-me o que preferia: 'ou ninguém lia mas eras respeitado pela crítica, ou muita gente lia mas a crítica odiava'. A minha primeira resposta foi que gostava que a crítica adorasse. Mas hoje em dia acho isso errado. Porque percebi também que a minha função neste planeta, de alguma forma, a única coisa que queria fazer é com que as pessoas sintam coisas, de preferência boas. Então, se ninguém sentir nada por minha causa, não estou a fazer bem o meu trabalho. Seja com a música, com as BDs, agora com o musical, o que quero é que alguém durante um bocadinho se sinta bem, sinta alguma coisa. É bonita essa sensação.

Sou aquela pessoa que podia estar a apresentar um anúncio de tapetes às duas da manhã. Uma ‘minor celeb’. Mas gosto disto. Movo-me em nichosNo meu caso descobri em diferentes alturas coisas em que tinha trabalhado. Depois percebi que era muitas vezes o elo em comum. As pessoas já têm noção deste 'planeta Filipe Melo'?

Não sei muito bem. De facto há muita gente que me conhece só da BD ou da música e acha que faço só isso. Mas estando rodeado de pessoas que são tão conhecidas, assim é muito melhor. Sou aquela pessoa que podia estar a apresentar um anúncio de tapetes às duas da manhã. Uma ‘minor celeb’. Mas gosto disto. Movo-me em nichos. Mas no outro dia houve um tipo da gelataria do El Corte Inglés que me reconheceu pela voz, por causa do podcast da ‘Nêspera’. E acho graça a isso porque não tenho muita consciência do todo. Aparece-me um projeto giro e eu faço. Não é importante. Fico agradecido, porque sei que é algo esquizofrénico fazer uma coisa num dia e outra noutro. Não há muita coerência, mas se calhar a coerência é essa. Mas acho que não há muito mais coisas que consiga fazer.

Geralmente aconselha-se as pessoas a especializarem-se no que fazem bem. No seu caso distingue-se em diferentes áreas. Que conselho é que se dá a quem tem muitos interesses, a mantê-los e tentar ser exímio em todos eles.

Posso dar uma resposta que é terrível mas acho que é verdadeira. É trabalho. Muito trabalho. De facto as coisas levam tempo e foram muitos anos para perceber isso: é só preciso trabalhar mais, mais tempo, ser persistente. A persistência é mais forte do qualquer tipo de talento.

E depois do ‘Uma Nêspera no cu’, já sabe tudo o que vai andar a fazer?

Vou andar um tempo na estrada com o António Zambujo e depois tenho um projeto para 2020 que acho que é aquele de que mais me orgulho, uma calhamaço de BD. Tem 300 páginas. É a história de dois pianistas, que se passa entre 1924 e os anos 80.

É a música a entrar no mundo da BD?

Sim, sim. É o projeto que mais tenho vontade que aconteça, só que demora muito tempo e agora já não está nas minhas mãos. Já escrevi a história. Agora vejo os desenhos.

É também uma ligação entre o fantástico e o real.

É um bocadinho mas é uma história mais real do que as outras. É uma história mais pessoal, em que aproveito mais coisas que conheço bem. Mas gosto muito de escrever histórias e agora tenho uma coisa que é espectacular, que é uma produtora que acredita em mim. Temos aí uma curta-metragem que vamos soltá-la em breve, para as pessoas verem. Mas gostava de fazer outra, que é para também não ficar enferrujado nos filmes.

Já depois de o jornalista desligar o gravador, o Filipe Melo lembra-se de algo importante para deixar assente e que ia ficando de fora da conversa.

"Ajudas-me nisto, que é uma causa". Aqui vai: "a questão dos livros. Parece que há literatura e depois há BD. Depois vemos as listas dos melhores do ano, não se vê BD porque há essa distinção. E isso tem de ser abatido já. É como a história do cinema e da televisão, que está neste momento a extinguir-se a barreira. Gostava de ter um micro-papel a abater essa barreira que há entre livros e livros de BD. Acho que é mesmo importante que isso aconteça para o leitor comum".

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