"Eles bem podem pôr fatos e gravatas, no fim quem vai trabalhar sou eu"
Há duas décadas que Fernando Rocha conquistou o caloroso lugar no coração do público. Dono de um humor característico que o torna único perante os seus pares, conversou com o Notícias Ao Minuto e contou-nos como tem sido esta longa e intensa aventura pela comédia em Portugal.
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Fama Fernando Rocha
Os primeiros passos de Fernando Rocha na comédia deram-se há 20 anos, quando era apenas "o electricista que fazia os outros rir". Nunca pensou vir a largar a "mala da ferramenta" para se aventurar no mundo do espetáculo, mas a vida assim o quis.
Começou com a vitória no programa 'Ri-te, Ri-te' (1999), mas foi cinco anos depois que conquistou o coração do grande público, ao ser uma das estrelas do 'Levanta-te e Ri', programa que considera ser o ponto de viragem na comédia em Portugal.
Fiel ao registo por vezes "brejeiro", mas sempre verdadeiro, subiu aos palcos de todo o mundo para atuar para comunidades portuguesas, iniciou um projeto digital no YouTube e hoje está de regresso às salas com o espectáculo de 'stand-up' mais icónico do país.
Falta-lhe o "respeito e admiração" dos seus pares, mas não se importa. O tempo tem-lhe trazido o merecido reconhecimento.
"Ladies and gentlemen", Fernando Rocha é um dos entrevistados de hoje do Vozes Ao Minuto.
Ainda tem tanta piada como há 15 anos?
O resultado da lotação das salas diz que sim. Se é mais ou menos do que há 15 anos é o público que tem de dizer, não sou eu.
Quando o 'Levanta-te e Ri' começou precisou de mim para ter audiências
Mudou alguma coisa no seu humor?
Claro que sim. Quando alguém se aguenta 20 anos, a manutenção de uma carreira passa por uma evolução natural das coisas. Na minha opinião, sou melhor do que há 20 anos. Quando o ‘Levanta-te e Ri’ começou já fazia comédia há cinco anos. Aliás, quando começou, precisou de mim para ter audiências. Depois começou a ter outros humoristas com muita qualidade. A qualidade deles é tão boa que ainda andam aí.
Quando diz que está melhor, refere-se às piadas, aos temas que aborda?
Não, ao panorama geral da comédia. Há 15 anos as pessoas não sabiam o que era ‘stand up comedy’. É como em qualquer arte. [Em Portugal] o ‘stand up nasceu’ com o ‘Levanta-te e Ri’. Agora fala-se do humor negro, na altura do ‘Levanta-te e Ri’ o humor negro existia em anedotas, mas não era muito usual. Agora existe um novo tipo de comédia que é a ‘roast’. Sabe o que é? Não há muita gente que conheça.
Muitos consideram que a sua rampa de lançamento foi o ‘Levanta-te e Ri’, mas na verdade foi o ‘Ri-te, Ri-te’, um programa de anedotas da TVI que ganhou sem dizer uma única asneira. Como recorda o início da sua carreira?
O início foi em 1999, cinco anos antes do ‘Levanta-te e Ri’, com o ‘Ri-te, Ri-te’, ao qual concorreram 600 ou 700 pessoas e eu fui vencedor. A partir daí, de uma forma natural, começaram a surgir convites na minha zona, de bares de amigos meus, que convidavam para fazer espetáculos de comédia. Inicialmente fazia de borla, fazia por prazer. Ainda continuo a fazer por prazer. Acho que esse é um dos segredos do meu sucesso.
Era o eletricista bem disposto que alegrava a malta toda que andava comigo nas obras. O objetivo não era ser artista e famoso, acho que se na altura me tivesse focado nisso se calhar não aconteciaSoube logo que queria seguir uma carreira na comédia? Durante muito tempo conciliou-a com a vida de eletricista.
Não sabia que ia fazer da minha vida comédia. Era o eletricista bem disposto que alegrava a malta toda que andava comigo nas obras. Não eram só os eletricistas que se riam, mas os trolhas, os pedreiros… estávamos sempre todos na brincadeira. Foi um processo muito sólido. O objetivo não era ser artista e famoso, acho que se na altura me tivesse focado nisso se calhar não acontecia. Foi acontecendo naturalmente. Um convite à esquerda, um convite à direita e quando dou por mim estou a ganhar mais como humorista do que como eletricista. Arrumei a mala da ferramenta e continuei.
Ficou inclusive extremamente feliz no dia em que foi despedido…
Para os meus colegas [que também foram despedidos] foi um dia triste, mas para mim foi um dia feliz porque não tinha tido coragem de optar pela comédia. Foi a própria vida que me empurrou, foi o destino que quis.
O seu percurso ficou marcado por outros acontecimentos simbólicos. Vai para o ‘Levanta-te e Ri’ porque Camacho Costa se retira devido a doença, o que deu a oportunidade que ocupasse o lugar que seria de Marco Horácio.
A vida é mesmo isto: A sorte de uns é o azar de outros. E vice-versa.
O ‘Levanta-te e Ri’ foi o momento mais feliz da sua carreira?
Não propriamente. Acho que não existe um momento mais feliz, é um processo. Já fui muito feliz no ‘Levanta-te e Ri’, já fui muito feliz a fazer solos - estou a recordar-me do meu espetáculo de 15 anos de carreira, no Pavilhão Rosa Mota, com seis mil pessoas a assistir -, sou feliz a fazer espetáculos para as comunidades portuguesas no estrangeiro...
Quem manda nisto tudo chama-se público. Pode haver padrinhos, lobbies, cunhas, mas não há ninguém que mude a opinião do públicoHá a ideia de que esteve desaparecido. Esteve mais dedicado a tournées internacionais. Foi uma opção sua sair da televisão para realizar mais digressões internacionais?
Vou-lhe dizer, aqui não há estratégia nenhuma. Neste momento sou o humorista que mais faz comunidades, sou o mais solicitado, e não é por estratégia, não fiz nenhum trabalho de casa. É simplesmente porque os emigrantes gostam. Quem manda nisto tudo chama-se público. Pode haver padrinhos, lobbies, cunhas, mas não há ninguém que mude a opinião do público. Foi assim que aconteceu com os emigrantes. Eles gostam, por isso ligam-me todos os anos.
É particularmente especial quando atua para pessoas que estão longe das raízes e que o seu espetáculo é o único momento do dia ou da semana que têm para matar saudades de casa?
Sinto-me em qualquer espetáculo. Quando estou em cima de um palco ao ar livre, tenho à minha frente, 10, 15 ou 20 mil pessoas, está a chover e elas não vão embora. Aquela gente fica ali por minha causa, aí sinto-me especial. Ou quando estou, por exemplo, em Nova Iorque, na Chinatown a comprar um relógio para fazer uma personagem e passa um grupo de gajos e diz: ‘Olha o Rocha!’. E eu penso: ‘Estou no outro lado do mundo e reconheceram-me’.
Sente que conquistou o público por nunca ter tido medo de ser quem é?
O público não é estúpido, sabe quem veste a capa do politicamente correto em televisão e quem está a ser verdadeiro. Não vale a pena tentar enganar. O público não ‘papa grupos’.
Essa autenticidade trouxe-lhe alguns dissabores?
Há uma coisa de que eu tenho a certeza: Podem gostar de mim como profissional ou não, mas ninguém pode dizer que tentei enganar. O que eu sou ponho em cima da mesa.
Eles bem podem estar a pôr fatos e gravatas, no fim quem vai trabalhar sou eu. São 20 anos a ver isto. É para o lado que durmo melhorEm algum momento sentiu que o seu tipo de humor o limitou?
No início da minha carreira ficava triste porque sentia que era alvo de preconceito por ser brejeiro e dizer palavrões. Agora já me rio com essa merda. Se o público gosta… Eles bem podem estar a pôr fatos e gravatas, no fim quem vai trabalhar sou eu. São 20 anos a ver isto. É para o lado que durmo melhor.
As pessoas hoje em dia ofendem-se com mais facilidade?
Ouço cassetes ou CDs meus antigos e penso que agora seria impossível dizer uma piada daquelas sem vir o PAN ou uma associação da proteção de uma merda qualquer. Hoje em dia com as redes sociais começou-se a estupidificar as coisas. Agora por qualquer coisa vem logo um grupo de pessoas dizer que são os protetores não sei do quê e que não admitem. E pronto, andamos nisto. Claro que há coisas em que faz sentido. É por isso que a sociedade evolui, mas depois existe o exagero.
É legítimo impor limites ao humor?
Um dos pais da comédia no mundo é o Charlie Chaplin e ele tem uma frase que diz: ‘A minha dor pode ser motivo das gargalhadas do público. Contudo, não tenho direito de causar dor a ninguém para fazer rir esse mesmo público’. Ou seja, se eu tropeçar, cair e der com os cornos no chão e toda a gente se rir está tudo bem. Mas não tenho direito de fazer uma rasteira a ninguém para a pessoa rir para o público ver e rir-se. Não tenho o direito de enxovalhar ninguém. Foi por isso - e isso sim foi estratégia - é que eu criei as minhas personagens, para lhes poder dar ‘porrada’ à vontade sem ninguém ficar ofendido.
Tem cuidado em abordar de certos temas para não ser julgado?
Não tenho problema nenhum em dizer palavrões, mas por exemplo, não faço piadas sobre cancro. Porque as pessoas vão lembrar-se da mãe, do tio ou do cunhado que morreram de cancro. Estou ali para fazer as pessoas rir, não para fazê-las lembrar de coisas más ou para fazê-las sentir mal.
Colocando a questão ao contrário, que temas lhe dão realmente prazer levar para palco?
Ordinários. Sexuais. São os que me dão prazer.
Ninguém faz humor com esses tópicos como o Fernando faz?
Eles têm medo. Muitos deles viram-se para mim e dizem que têm piadas para mim. E eu pergunto: ‘Porque não as dizes tu’. E respondem-me: ‘Eu não, não vou contar uma merda destas’. Em privado contam e dão-mas a mim. E eu agradeço.
Vai acontecer comigo o que aconteceu com o Quim Barreiros. Só ao fim de 20 ou 30 anos é que conquistou o respeito dos colegasA anedota está a cair para dar lugar a outro tipo de humor?
A conotação negativa está na cabeça de cada um. É o mesmo que dizer que o fado já não se usa porque o que está na moda é o rock. Comédia é comédia, não vamos complicar. Seja com anedotas, com stand up, com sketchs. As pessoas são como um rebanho: Quando alguém diz que algo já não se usa, há pessoas que até têm medo de dizer que gostam.
Vai acontecer comigo o que aconteceu com o Quim Barreiros. Só ao fim de 20 ou 30 anos é que conquistou o respeito dos colegas. ‘Este gajo, estamos aqui a criticá-lo, mas ele é o rei das queimas das fitas. Temos de reconhecer que é o maior’. Ponto final, acabou.
Sente que não tem esse respeito por parte dos outros comediantes?
Claro. Nenhum deles admira o meu trabalho. Muito poucos. Sou o gajo das anedotas. Mesmo que eu faça um solo de ‘stand up’ brilhante, melhor do que qualquer um deles, vão assobiar para o lado e fazer de conta que não viram. Já estou habituado, já são 20 anos disto. Agora já me rio. Mas depois quem é convidado para ir às cenas são os gajos que trabalham e são genuínos.
Acompanha o trabalho dos novos comediantes?
Claro! Está a falar com um dos principais responsáveis por dar montra aos novos talentos da comédia em Portugal. Tenho um programa no YouTube, que é Pi100pé, que é o único
Considera a nova geração carismática, tal como o Fernando, sem medo de obedecer ao politicamente correto?
São fora da caixa e muito bem. Dá-me muito prazer novos talentos e apoiá-los. O Alexandre Santos, que começou como youtuber, hoje é um grande humorista e chama-me de padrinho. Liga-me e pede-me conselhos.
Não é um humorista que consegue fazer com que a comédia seja moda. O sucesso do humor tem de estar em todos. Não desejo mal a nenhum comediante. É como as bebidas: Hoje apetece-me ver Fernando Rocha, amanhã Nilton e depois Marco Horácio e os putos novos.
Como está a ser subir de novo aos palcos com o ‘Levanta-te e Ri’?
Está a ser nostálgico, maravilhoso, fantástico.
Uma experiência tão arrebatadora como a primeira vez?
O espírito que o público tem por aquele programa e pelos humoristas que o tornaram no ícone que é… Quer se queira quer não, o ‘Levanta-te e Ri’ foi um marco muito importante na comédia nacional, mudou o panorama disto tudo, senão ainda tínhamos os sketchs do Herman José e as piadas do Parque Mayer, que são maravilhosos, mas faz falta ter mais bebidas no bar.
O facto de voltar a aparecer com mais frequência no pequeno ecrã aumentou a abordagem do público na rua?
Não, é um engano. O que me deu mais força ultimamente foi o meu programa no YouTube [Pi100pé]. Estou com 150 mil subscritores. Fizemos um Pi100pé especial de Natal no Teatro Sá da Bandeira e os cinco dias esgotaram sem eu fazer um único cartaz, foi tudo com promoção no YouTube. Esse programa é que deu um ‘boost’ à minha carreira 20 anos depois. Claro que o ‘Levanta-te e Ri’ veio reforçar, mas o ‘boost’ foi há um ano e meio atrás quando comecei esse projeto.
As pessoas que veem televisão são as que viam o ‘Levanta-te e Ri’. Esses já me conheciam, já gostavam de mim, não mudou nada. O Pi100pé deu-me a conhecer às novas gerações que não veem televisão, que estão ligadas à internet. Estou a dizer isto porque tenho dois filhos, um com 19 e uma menina com 14.
Agora é também reconhecido pelo público da idade dos seus filhos.
Agora dou autógrafos a miúdos. Há um ano e meio isso não acontecia, eram os pais.
Os meus filhos estavam sempre a dizer para criar um canal de YouTube, nunca liguei a isso, até que um dia fui ao ‘Maluco Beleza’, do Rui Unas, e ele disse-me que eu tinha de criar um canal. Só depois do Unas me dizer isso é que cheguei a casa e disse aos meus filhos: ‘Ok, ensinem-me lá isso do YouTube que eu não percebo nada’. E o meu filho e o meu cunhado é que me ajudaram.
Prefiro um filho que ganhe o ordenado mínimo mas vá trabalhar todos os dias com vontade, do que seja médico ou político e saia todos os dias de casa cabisbaixoOs filhos são críticos em relação ao seu trabalho?
São muito. Quase são meus managers. Quase que eles é que decidem o que é que eu devo dizer ou não. O sentido de comédia sou eu que tenho, o meu cunho pessoal. Contudo, ouço muito a opinião deles. Somos uma equipa.
Como reagiria se um dos seus filhos dissesse que queria ser humorista?
Apoiava, como é óbvio. Quero que é que eles sejam felizes. Se o meu filho me disser que quer ser pedreiro, vou-me esforçar ao máximo para que ele seja feliz a ser pedreiro. Prefiro um filho que ganhe o ordenado mínimo mas vá trabalhar todos os dias com vontade, do que seja médico ou político e saia todos os dias de casa cabisbaixo. Depois a vida passa e veem que foram infelizes a vida toda porque tiveram um emprego com estatuto. Quero que se f*** o estatuto.
E o Fernando Rocha é feliz em Portugal a fazer comédia?
Sou muito. Sou muito feliz.
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