"Teor das sentenças de alguns juízes significa guerra contra as mulheres"
A escritora Inês Pedrosa acaba de lançar mais um romance, razão pela qual é a nossa entrevistada de hoje do Vozes ao Minuto.
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Cultura Inês Pedrosa
Processo Violeta’ é o mais recente livro escrito por Inês Pedrosa. A ação passa-se na década de 80, uma época de “grandes mudanças” e a história é baseada em factos reais que tiveram lugar nos Estados Unidos.
O que era para ser uma conversa sobre a história de um livro e o processo de escrita, tornou-se num diálogo sobre o papel das mulheres no mundo, sobre os filhos e sobre o que nos reserva o futuro num mundo que ainda sofre da síndrome de “masculinidade bruta ferida”.
Onze portuguesas já morreram às mãos de companheiros ou ex-companheiros só desde o início do ano em Portugal, o que preocupa Inês Pedrosa que, quase com 60 anos, tem uma “sensação de urgência em deixar o mundo um bocadinho mais agradável” para a filha e para a geração dela.
Por que razão quis que o ‘Processo Violeta’ se passasse nos anos 80?
Porque foi uma época muito interessante. Afinal foi quando o país começou a abrir-se ao mundo e foi o rescaldo da revolução. Foi uma época de grandes mudanças.
O que aproxima e afasta Violeta de Ana Lúcia?
Elas são muito diferentes, mas de certa forma complementares. O que as aproxima no fundo é serem mulheres a procurarem afirmar-se num mundo em que a afirmação das mulheres é legalmente consentida, mas não completamente admitida.
A Ana Lúcia não é uma desconhecida para os seus leitores…
Não. Gosto de fazer a brincadeira de ir buscar umas personagens de uns livros para os outros. A Ana Lúcia surge neste livro muito mais nova do que quando apareceu no livro ‘Os Íntimos’. Neste livro acompanhamos a juventude dela quando era professora de liceu.
Hoje em dia ainda há muitas mulheres que passam pelo mesmo que passou a Ana Lúcia?
Claro. A violação ainda é uma violência diariamente cometida contra as mulheres e muitas vezes contra mulheres afirmativas, como é o caso da Ana Lúcia. Não me parece que isso tenha mudado muito.
Há mulheres que preferem não denunciar uma violação porque não querem sofrer uma segunda violência que, infelizmente, lhes é infligida através da investigação ao seu estilo de vida e através do próprio julgamento
As mulheres de hoje em dia também preferem não denunciar uma violação?
Sim e não é só por medo, é porque não querem sofrer uma segunda violência que, infelizmente, lhes é infligida através da investigação ao seu estilo de vida e através do próprio julgamento.
É por isso que, em muitos casos, preferem não denunciar?
Claro, porque ficam rotuladas e ficam devassadas. Não estou a defender que façam isso, mas compreendo que não se assumam como uma vítima contínua, uma escrava, alguém que foi sujeito a outro alguém. Porque é isso que a justiça faz às mulheres que se queixam de violação. Se não o fizesse e se houvesse punição real para os crimes contra a autodeterminação e contra o corpo seria diferente.
É esse o grande problema da nossa justiça?
É um problema central. Temos uma justiça muito célere a julgar e punir os crimes de corrupção e de colarinho branco e muito mole quanto aos crimes contra as pessoas, designadamente quando essas pessoas são mulheres.
O teor das sentenças de alguns juízes e depois o acatamento por outros juízes dessas sentenças significa que há uma guerra contra as mulheres, contra a sua autodeterminação, liberdade e integridade físicaQue mensagem estamos a passar à sociedade?
Estamos a passar a mensagem de que o que interessa é o dinheiro e que a integridade física e psicológica das pessoas não tem a mesma importância. Aliás, estou convencida de que o teor das sentenças de alguns juízes e depois o acatamento por outros juízes dessas sentenças significa que há uma guerra contra as mulheres, contra a sua autodeterminação, liberdade e integridade física.
Concorda com as quotas de género?
Sou a favor de que as quotas acabem, porque elas sempre existiram, mas eram de 100% de homens.
O que se está a fazer na legislação é repor a justiça dessas quotas. Não precisamos de quotas para as mulheres, precisamos é que as quotas de 100% de homens em lugares de poder acabem.
Como já estou a caminho dos 60 anos tenho esta sensação de urgência em deixar o mundo um bocadinho mais agradável para a minha filha e para a geração dela Quantas gerações acha que ainda são necessárias para uma efetiva igualdade de género?
No ano passado o jornal The Economist fez a contabilidade e, ao ritmo a que estamos, só daqui a 170 ou 200 anos é que teremos igualdade de género. Devo dizer que fiquei bastante desolada.
Temos muito trabalho para fazer e temos de acelerar este trabalho e a verdade é que o argumento de que as mentalidades são lentas leva a que sejamos complacentes com muita injustiça. Como já estou a caminho dos 60 anos tenho esta sensação de urgência em deixar o mundo um bocadinho mais agradável para a minha filha e para a geração dela.
Não sei até que ponto onda de assassinatos não resulta dessa sensação, por parte dos homens agressores, de que as coisas estão a mudar e há uma raiva ainda maior do aquela que já existiaA onda de violência contra as mulheres a que assistimos no início deste ano explica-se a partir desta desigualdade de género?
Não sei até que ponto essa onda de assassinatos não resulta dessa sensação, por parte dos homens agressores, de que as coisas estão a mudar e há uma raiva ainda maior do aquela que já existia. Mas ilude-se quem diz que é por causa da emancipação das mulheres, porque antes, quando não havia divórcios e as mulheres estavam em casa, não havia violência. Sempre houve imensa violência contra as mulheres e as crianças dentro da família, eram massacradas, só que não se denunciava.
Advogo que, com urgência, se crie um plano de saúde mental obrigatório desde a infância Assusta-a que ainda haja tanta violência contra as mulheres?
Procuro não me reger pelo medo porque isso não resolve nada. Mas é claro que é um indício grave e penso que estará relacionado com uma reação de masculinidade bruta ferida que, por sua vez, estará relacionado com o altíssimo consumo de álcool e com o consumo extraordinário que há em Portugal de antidepressivos não controlado. E isto leva-nos à falta de planos de saúde mental.
Eu advogo que, com urgência, se crie um plano de saúde mental obrigatório desde a infância, porque sabemos que também é uma característica do machismo entender-se que a ir a um psiquiatra é uma menorização.
A Inês aborda nos seus livros temas que ainda são um tabu na sociedade portuguesa. Vê a literatura como um instrumento pedagógico?
Vejo a literatura como uma forma de reflexão sobre o mundo em que vivemos e, por isso, é que se levantam esses temas que estão debaixo do tapete. Os temas humanos são sempre os mesmos, mas as formulações vão mudando com as sociedades e as culturas. A literatura não é um panfleto, nem um documentário, é um laboratório de experiência humana para reflexão de quem escreve e de quem lê. A mim interessa-me isso a que o Virgílio Ferreira chamava o romance-problema, ou seja, um romance que problematiza a existência e os interditos dela.
Um dos grandes problemas contemporâneos para mim é a infantilização dos jovens que eu considero que é uma grande falta de respeito pela capacidade crítica e autodeterminação delesTendo em conta essa forma ver a literatura, como é que reagiu à censura de que o poema de Álvaro de Campos foi alvo num livro de Português do 12.º ano?
Achei inaceitável. Aquele poema não me parece desadequado a pessoas que têm 17 anos. Um dos grandes problemas contemporâneos para mim é a infantilização dos jovens que eu considero que é uma grande falta de respeito pela capacidade crítica e autodeterminação deles e que os prejudica muito.
O problema era o uso de expressões ditas inapropriadas…
A literatura também se faz da utilização do grosseiro que há na sociedade e se o Álvaro de Campos utilizava essas expressões, então é porque fazem sentido e têm de ser analisadas.
Concorda quando se diz que há um certo facilitismo na escola?
Essa conversa já é antiga e acho que é injusta. Tenho a experiência da minha filha que foi fazer o 12.º ano num liceu público dos EUA. Ela era uma aluna razoável a Matemática, chegou lá e com o que levava daqui teve a nota máxima a matemática e aqui dizemos que somos muito maus. Não tenho essa sensação de facilitismo. Tenho a sensação de que os programas são é pouco pensados e, por isso, acontecem essas coisas, como esse manual com o poema truncado.
É um disparate enorme substituir a literatura por notícias de jornal e houve uma fase em que se pensava um bocadinho assimAntes já tinha havido a polémica com ‘Os Maias’ de Eça de Queiroz…
Foi um alarido falso, porque o que acontece é que há duas obras do Eça à escolha. O que importa é que se leia o Eça e é bom que os professores tenham a possibilidade de ter essa flexibilidade de escolher a obra que melhor cativará os seus alunos. Outra coisa seria deixarmos de dar literatura. Aliás, é um disparate enorme substituir a literatura por notícias de jornal e houve uma fase em que se pensava um bocadinho assim porque achava-se que se chegaria mais depressa aos alunos.
Os jovens leem notícias?
Depende dos jovens, mas por norma não leem jornais em papel e leem provavelmente títulos nas redes sociais. Há um consumo maior de títulos e isso é muito superficial e leviano, é o que nos dá as redes sociais e o jornalismo, porque este está muito centrado no ‘clickbait’ e no título sensacionalista que dê mais ‘likes’ e que depois tenha mais anúncios.
Através desta desilusão com a política tradicional podem criar-se movimentos inorgânicos - que já estão a ser criados, veja-se o exemplo dos coletes amarelos - que acabam com a própria democraciaQual é então a sua visão do jornalismo?
Neste momento não é propriamente consoladora. O problema é que o desaparecimento do jornalismo que é substituído pelo tipo sensacionalista e que passa a ideia de que os partidos são só corrupção cria derivas totalitárias no mundo. Através desta desilusão com a política tradicional podem criar-se movimentos inorgânicos - que já estão a ser criados, veja-se o exemplo dos coletes amarelos - que acabam com a própria democracia. E isso sim está a preocupar-me.
As ‘fake news’ têm um papel preponderante nesta questão?
As notícias falsas sempre existiram, só que agora têm uma divulgação muito maior porque as pessoas não leem os textos até ao fim, só leem os títulos e, portanto, as fake news são telegráficas. Temos governantes mundiais como Donald Trump que governam por tweets e daí o problema: as pessoas são moldadas por slogans e isso é o mundo do ‘1984’. Olhe acho que devia ser obrigatório nas escolas todas ler esse romance de George Orwell.
Há pouco falou na infantilização dos jovens. Isto acontece quando os pais tentam compensar a sua ausência na vida dos filhos?
O que há é toda uma cultura de culpabilização dos pais e discursos muito engraçados sobre o tempo de qualidade, que não interessa a quantidade. O bom senso diz que as duas coisas interessam. É preciso acompanharmos as pessoas, mas esse acompanhar não é andar sempre com os filhos ao colo, é dar-lhes autonomia.
É essa a melhor forma de os preparar para o mundo?
O meu lema é ter a máxima liberdade com a máxima responsabilidade, foi assim que agi enquanto educadora. Educar é responsabilizar, é dar autonomia, é dar asas. É essa a nossa função enquanto pais: é dar-lhes asas e deixar que eles as pintem da cor quiserem e não da cor que nós queremos. E não os podemos proteger completamente do mundo real senão é natural que vivam como se tivessem 10 anos até aos 30 anos.
A emancipação das mulheres também emancipou os homens porque o machismo dizia que os filhos precisam da mãe e não do pai e hoje em dia temos noção de que um filho precisa do pai e da mãeÉ inegável que a relação entre pais e filhos está hoje muito diferente…
Sim. A emancipação das mulheres também emancipou os homens porque o machismo dizia que os filhos precisam da mãe e não do pai e hoje em dia temos noção de que um filho precisa do pai e da mãe. Esta geração que tem agora 20 anos tem uma relação com os pais como nunca outras gerações anteriores tiveram, é uma relação de proximidade, de cumplicidade.
Vamos regressar ao livro. Quanto tempo demorou a escrever ‘O Processo Violeta’? Como é o seu processo criativo?
É bastante anárquico. Os romances começam a desenhar-se na cabeça por causa de uma história, de uma figura que nos fica a assombrar e há um dia em que achamos que já pensámos em muita coisa, que já temos muitas figuras que precisam de existir e escrevemos. Para escrever este romance precisei de uns três anos, mas também porque fui parando para fazer outras coisas.
Porque um escritor não consegue viver só da literatura?
No meu caso já houve uma fase que pude, mas agora não. Depende. Um escritor pode viver da literatura se for sozinho, mas depende muito. Eu tive o ‘Fazes-me Falta’ que foi um grande êxito e vendeu muito durante muito tempo. E depois também há as vendas para outros países. Mas não se pode confiar só nisso, sobretudo quando se tem um filho para criar.
Prefere escrever de dia ou de noite?
Escrevo geralmente pela noite fora das 22h até às 07h é quando tudo esta tranquilo, não há barulhos nem interrupções.
O gozo da ficção é criar personagens que sejam elas mesmas e que estejam num mundo que é paralelo à realidade. Nenhum escritor copia uma personagem da sua vidaAs suas personagens são o espelho de pessoas que existem na realidade?
Nunca são um espelho. O gozo da ficção é criar personagens que sejam elas mesmas e que estejam num mundo que é paralelo à realidade. Nenhum escritor copia uma personagem da sua vida. A figura é um composto de muitas coisas que apanhámos aqui e ali na vida real, mas é uma figura que não existe na vida real.
O que mais lhe apraz num romance?
Os romances que a mim me interessam têm sempre o aspeto sociológico de ser um retrato de uma determinada sociedade num determinado momento. Quando comecei a escrever ‘O Processo Violeta’ percebi qual era o nó problemático que eu achava interessante debater: é a questão da maturidade. O que é ser maduro? Quando é que se é maduro? Estamos sempre a falar de maturidade e de imaturidade e será que são conceitos fixos? Na verdade não, são muito subjetivos.
Lê literatura portuguesa em jeito de lazer?
Sempre procurei ler e tive a sorte de trabalhar nos primeiros anos do meu percurso jornalístico no Jornal de Letras onde entrevistei muitos escritores e isso ajudou-me muito, foi um curso paralelo que eu tive. Agora como fundei uma pequena editora há um ano e estou a ler mulheres silenciadas na literatura portuguesa, estou menos atenta aos meus contemporâneos. Mas devo dizer que quando um escritor diz que não se interessa por escritores da sua língua eu desinteresso-me e desconfio.
Porquê?
Porque desconfio de escritores que desprezam o trabalho plástico feito sobre a sua língua. A língua é uma matéria plástica fantástica e quem trabalhar numa língua tem de ler autores da sua língua, não necessariamente do seu pais, mas da sua língua.
Já tem uma ideia para o próximo livro?
Nunca tive muita angústia com a falta de ideias [risos]. Estou já a começar a esboçar o próximo.
Pode levantar a ponta do véu?
Posso dizer que me interessa trabalhar a ideia da maternidade, o que é a maternidade. O que é uma boa mãe? O que é a relação mãe e filho?
Para o Ildo, “para sempre é demasiado tempo”. Gostaria de ficar “para sempre” na história da literatura portuguesa ou também acha que “para sempre” é muito tempo?
[Risos]. Quando escrevo muitas vezes penso que pode ser que um dia uma bisneta minha esteja num momento de aflição e uma frase deste livro a ajude, como tantas frases de escritores me ajudaram a mim, por exemplo, o Camões já me ajudou em épocas difíceis. É isso que penso sobretudo. Se houver um leitor a quem possamos acender uma luz já será muito bom.
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