"Todos os anos, um terço das mulheres assassinadas tinha denunciado"
Maria José Magalhães, presidente da União de Mulheres Alternativa e Resposta - UMAR, é uma das nossas convidadas desta quinta-feira do Vozes ao Minuto.
© Maria José Magalhães
País Presidentes
Este ano morreram já 12 pessoas vítimas de violência doméstica, sendo que uma delas é uma criança de dois anos morta pelo pai, no Seixal. O número de mulheres mortas, porém, é diferente. Às onze mulheres referenciadas atrás (a criança não se inclui), acrescenta-se uma mulher morta a 27 de janeiro em Santarém e outra esta quarta-feira no Seixal em circunstâncias ainda por esclarecer. Portanto, 13 feminicídios.
Passaram pouco mais de dois meses desde o início do ano e estes números assumem especial gravidade tendo em conta os de anos anteriores: 28 feminicídios em 2018 e 20 em 2017, de acordo com o Observatório das Mulheres Assassinadas.
Feminicídio, sublinhe-se, engloba não só a violência doméstica, como outros crimes de ódio contra mulheres.
Neste contexto de forte contestação social em relação à violência nas relações de intimidade, surgiram também alguns casos de acórdãos judiciais com citações bíblicas para menorizar o sofrimento da mulher causado pelo companheiro, o que colocou, de forma definitiva, a violência doméstica na agenda pública.
O Notícias ao Minuto entrevistou, nesse sentido, a presidente a da União de Mulheres Alternativa e Resposta - UMAR, uma associação feminista criada em 1976 para lutar pelos direitos das mulheres em Portugal. Maria José Magalhães falou sobre aquilo que acredita serem as principais dificuldades no combate à violência doméstica, criticando a falta de formação e de conhecimento em alguns setores, nomeadamente entre as autoridades.
Esta quinta-feira, sublinhe-se, assinala-se o primeiro dia de Luto Nacional pelas Vítimas de Violência Doméstica, uma data criada este ano na sequência dos vários casos registados nestes últimos meses. Antecede, assim, o Dia da Mulher, que se celebra amanhã, 8 de março.
De há vários anos a esta parte temos vindo a dizer que em alguns setores do Estado e da sociedade portuguesa, nomeadamente o sistema judicial, continua o mito de que este tipo de violência é de menor potencial ofensivoA violência doméstica sempre foi um problema sério em Portugal. Mesmo tendo havido uma redução grande de mortes em resultado de violência doméstica na última década, certo é que continuam a acontecer. E este início de 2019 está a ser particularmente difícil. Estes números são surpreendentes para si?
Infelizmente, vou-lhe dizer que não são muito surpreendentes porque a UMAR vem alertando, há bastante tempo para o facto de que, a segurança e a proteção das vítimas não tem sido cuidada com a devida eficácia. E temos vindo a alertar, desde há vários anos a esta parte. Como sabemos, o feminicídio é a forma extrema de violência contra as mulheres e significa o fim de um ‘continuum’ de violência que tem outras expressões não tão letais.
Vai fazer 20 anos da primeira resolução do Conselho de Ministros que estabeleceu o primeiro Plano de Prevenção Contra a Violência Doméstica, e a partir daí o Estado português, nesta área da igualdade e da prevenção da violência, tem feito uma caminhada muito importante, tem melhorado no apoio e acompanhamento das vítimas. Podemos até dizer que, do ponto de vista da prevalência, os estudos apontam uma ligeira diminuição entre 1998 e 2008, em relação à violência no geral. Mas já de há vários anos a esta parte temos vindo a dizer que em alguns setores do Estado e da sociedade portuguesa, nomeadamente o sistema judicial, continua o mito de que este tipo de violência é de menor potencial ofensivo. O homem é bom homem, era bom vizinho…
As ameaças não levadas a sério, e estou a falar de casos em que a justiça tem falhado. Se for ver o relatório do Observatório das Mulheres Assassinadas, vai ver que todos os anos sensivelmente um terço das mulheres assassinadas tinham apresentado denúncia nas autoridades. Isto é, do meu ponto de vista, completamente inadmissível.
Nesse ponto, na questão da justiça, as opiniões divergem muito quanto àquilo que é necessário afinar. Há quem acredite que é um problema de legislação e há quem acredite que é um problema na aplicação da legislação e não da lei em si.
A segunda parte é a nossa posição. Na legislação está lá tudo. Já foi legislada a celeridade dos processos, está lá que a proteção da vítima está em primeiro lugar, as medidas de coação, as medidas de afastamento. Está tudo na legislação.
Alguns profissionais e algumas profissionais não acreditam que ele faz ameaças que essas possam ser cumpridas. E não acreditam que apresentar a denúncia é um dos maiores fatores de risco de assassinato. Quem é especialista na área sabe que a apresentação da denúncia é o ‘trigger’, ou seja, o fator espoletador de maior violência, porque na base desta violência está a ideia historicamente enraizada de que as mulheres são propriedade deles. E ficam mais enraivecidos, passando da ameaça para a prática.
Porque é que os estudos mostram que, em décadas anteriores, quando não havia resposta de apoio às vítimas, as mulheres não faziam denúncia, nem expunham a violência, nem pediam ajuda? Porque sabiam que depois a polícia chamava lá o agressor, lhes dava uma espécie de recomendação, pensando que ele ia cumprir, mandavam-no para casa e ele chegava a casa e ainda batia mais.
A polícia ou o médico. Nós temos registos, até em Portugal, de alguns profissionais bem intencionados, que chamavam os maridos para os chamar à razão e, é claro, ele chegava a casa e ela ia parar outra vez ao hospital. Estou a contar até um caso concreto.
Não se pode admitir, por exemplo, que no Tribunal de Família e Menores o juiz ou juíza se vire para a vítima e diga 'cale-se, que a senhora aqui não é vítima'É um caso de profundo desconhecimento de como funciona esta violência?
Exato. Temos vindo a dizer duas coisas: devem aconselhar as vítimas a pedir ajuda a uma instituição especializada porque, da parte dos profissionais que estão no Estado a trabalhar neste setor judicial, há comarcas em que as coisas estão a funcionar bem e há outras onde não estão. Às vezes, parece uma roleta russa. E se a vítima, por acaso, mora numa zona onde não funciona bem, corre o risco de ser assassinada. Não podemos admitir isto na sociedade portuguesa. E fico muito contente que o Governo, a seguir àquela primeira onda, tenha pedido uma reunião de emergência. Parece-me que há sinais de que o Estado português na sua generalidade, e não apenas o ramo da igualdade, está efetivamente decidido a fazer alguma coisa.
Mas não se pode admitir, por exemplo, que no Tribunal de Família e Menores o juiz ou juíza se vire para a vítima e diga “cale-se, que a senhora aqui não é vítima”. Não se pode admitir. Ela é tratada com estatuto de vítima no Tribunal Penal, nas instituições de Saúde, nas outras instituições todas. O homem pede a custódia dos filhos - sabendo que nos tribunais de Família e Menores há uma ideologia de desvalorização das mulheres, de uma forma geral -, chegam lá e ela ouve que ali não é vítima. Isto é um caso concreto. Portanto, os direitos da vítima, que fazem parte da legislação portuguesa, no Tribunal de Família e Menores não tem validade. Isto faz sentido? E põe a senhora ao lado de um homem por quem está aterrorizada, com os filhos também aterrorizados, e exercem aquilo que nós chamamos de ‘revitimação’. E há outras situações.
Os casos que envolvem o juiz Neto de Moura serão, talvez, paradigmáticos da existência de um estereótipo judicial que descredibiliza o sofrimento da mulher com a sua conduta ou dita que a mulher instrumentaliza a violência? Acha que a baixa taxa de condenações dos crimes de violência doméstica é resultado disso?
Com certeza. E é paradigmático de uma outra cultura portuguesa, em que se acha que a lei não é para cumprir. As pessoas podem ter as crenças que quiserem, mas estamos num Estado de Direito e a lei é para se cumprir. Quaisquer que sejam os nossos juízos de valor e as nossas interpretações, há uma coisa que todos os cidadãos têm que fazer, quer sejas civis ou profissionais do Estado, que é cumprir a lei.
Há pessoas que têm outras conceções, que foram buscar a manuais religiosos ou políticos, de outros tempos, que não quero dizer agora, mas não têm o direito de trasladar essas suas perspetivas para a sua prática profissional e muito menos quando isso põe a descoberto a proteção de cidadãs e cidadãos.
Mas claro que ainda há uma mentalidade muito machista em Portugal, continuam a haver hoje instituições a reger-se por metodologias que já nos anos 50 provaram que não são eficazes, que é a mediação penal, o encontro restaurativo, ou chamar o agressor para conversar depois da vítima se queixar.
Em todos os crimes há falsas alegações e por acaso na violência doméstica, na violência sexual, os estudos internacionais mostram que as falsas alegações são menos de metade do que as registadas nos outros crimesSaiu um relatório europeu que apontou a baixa taxa de condenações por violência doméstica (7%) em Portugal. A própria Associação Sindical de Juízes reagiu a este relatório dizendo que a falta de condenações se prende com a falta de provas e as denúncias falsas. Sendo que a percentagem de denúncias falsas ainda é, regra geral, menor do que a percentagem de condenações divulgada. Como vê esta posição?
Eu acho que trazer à baila o tema das falsas denúncias - que foi, aliás, um dos temos que levamos para falar com o senhor Presidente da República – é inadmissível. É desonestidade intelectual e desonestidade moral.
Em todos os crimes há falsas alegações e por acaso na violência doméstica, na violência sexual, na violência nas relações de intimidade, os estudos internacionais mostram que as falsas alegações são menos de metade do que as registadas nos outros crimes. E, tendo por base outros estudos, andam por volta dos 4%. Portanto, estar a pôr em risco 95% das mulheres por causa desse mito de que as mulheres são mentirosas, porque isso remete para a misoginia, é uma mentira social, uma mentira científica e uma mentira moral. E, portanto, é desonestidade e faz parte desse quadro de descaso, desvalorização, da pessoa, da mulher.
É fruto do caldo cultural…
Vem do caldo cultural misógino, sexista, patriarcal, que continua a ver as mulheres de duas formas, ou são santas, sacrificadas, puras, ou são falsas, mentirosas, perversas e outros nomes.
Um pensamento que assume outra gravidade quando exercido no seio das autoridades.
Exatamente, porque isso é descumprir a lei. A Constituição Portuguesa há muito tempo que estabelece a igualdade entre todas as pessoas neste país, sem distinção de género, sexo, por aí fora. Essa forma de falar das mulheres, essa construção social acerca das mulheres é uma forma de discriminação. Simbólica, porque parece que não se está discriminar ninguém em particular, mas está-se a discriminar as mulheres em geral.
Não é também uma forma de discriminação a decisão a favor dos agressores de alguns acórdãos como os que temos vindo a conhecer recentemente?
Não gosto de falar de atuações em particular, primeiro porque se um profissional num determinado cargo atua de determinada forma, se o faz, é porque pode. É porque o deixam, é porque tem poder para o fazer, e isto é válido tanto na justiça, como saúde, como na docência, etc. Portanto, se no exercício de uma profissão, de alguma maneira, há uma lateralidade de atuação (...), eu acho que compete a esse corpo profissional o estabelecimento de regras claras sobre o que pode ou não pode fazer. No campo judicial, onde um dos deveres do Estado é a proteção de cidadãs e de cidadãos, o código deontológico e a atuação tem que ser clara [ao ponto de] se se colocar em risco um cidadão ou uma cidadã, de alguma maneira, os profissionais que assim atuarem devem ser responsabilizados.
Houve um ano em que foram assassinadas mais mulheres do que as que morreram em Castelo de Paiva e quase ninguém se mexeu, sabe?Entretanto, nesse ponto, o Conselho Superior de Magistratura (CSM) emitiu um comunicado onde diz que não tem poder ou “competência” para interferir nas decisões do juiz.
Se não tem poder devia ter, porque as cidadãs e os cidadãos não podem estar à mercê de que, enfim, pessoas de carácter diferente possam pôr em causa a proteção e a vida de cidadãs e cidadãos em Portugal.
O que pensa da proposta de um dia de luto nacional pelas vítimas de violência doméstica?
Não sei, vamos ver. A mim custa-me que façamos isso em 2019, quando já tanta coisa tem avançado em Portugal e houve anos em que foram assassinadas mais de 40 mulheres [45 feminicídios em 2014]. Isto também significa que a sociedade portuguesa está com uma maior consciência cívica sobre este problema, portanto, de alguma maneira, fico contente. É um sinal positivo.
Por outro lado… houve um ano em que foram assassinadas mais mulheres do que as que morreram em Castelo de Paiva e quase ninguém se mexeu, sabe? Isto também significa, este dia de luto, que a população portuguesa, a comunicação social e o próprio Governo se mobilizaram. Tempos houve em que falávamos, um pouco, para muros de silêncio. Portanto é bom sinal que haja este mobilização, estou contente. Lembrando que todos os anos o feminicídio em Portugal diminui e aumenta, não há tendência nem de aumento nem de diminuição e não é só em Portugal, é assim em vários países. Basta ver os números e verificar que é este o quadro dos últimos anos.
Nós todos os anos homenageamos todas as mulheres assassinadas nesse ano. E, portanto, se este dia de luto for sinal de maior consciência cívica e de maior conhecimento sobre este fenómeno, deixando os mitos e de se culpabilizar a mulher, fico muito contente.
Falando em consciência cívica, é sabido que a questão da violência doméstica é um fenómeno sub-representado, por falta de denúncia, medo, etc. Como é que se poderia desenvolver um sentido de alerta da comunidade envolvente, um sentido de vigilância coletiva?
Acho que o sentido de vigilância coletiva é sempre colocar à disposição e bem visível para todas as pessoas que as vítimas de violência doméstica têm direito a ser ajudadas, têm direito a ajuda. Colocar as informações nos centros de saúde, nas escolas, nos metros, nas paragens de autocarro, nas estações de comboio, em todo o lado. És vítima de violência doméstica? Tens direitos e um dos direitos é pedir ajuda. É o primeiro deles.
Muitas das vítimas estão muito isoladas, é um dos efeitos da violência doméstica, eles vão-nas isolando, das amigas, da família. E às vezes nem sabem que têm direito, por exemplo, a consultas de saúde gratuitas, a ter ajuda para conseguir uma habitação condigna para os filhos.
Podemos aplicar as medidas de coação, mas não vamos esperar para ver se elas são eficazes quando existe uma avaliação de alto riscoA Maria José estava a dizer que se reuniu com o Presidente da República.
Sim, fui uma das convidadas para se reunir com o Presidente da República, em nome da UMAR.
Que conclusões é que pode revelar desse encontro?
Considero que é um sinal político muito importante, ele ter chamado seis organizações especialistas no atendimento às vítimas. Colocou-nos algumas questões e nós respondemos. Foi muito interessante porque as seis organizações estavam de acordo nas respostas. De facto, a análise que fazemos é semelhante.
Ele perguntou-nos se nós concordávamos com uma perspetiva que parecia vir da reunião que o Governo tinha promovido [reunião entre os membros do executivo responsáveis pelas áreas da Presidência do Conselho de Ministros, Justiça, Administração Interna e Cidadania e Igualdade] sobre os feminicídios. Perguntou-nos se concordávamos com uma perspetiva de repressão e respondemos que o termo repressão não é o adequado, porque a questão não está na repressão está em parar a violência. O Estado tem a obrigação de proteger os cidadãos e as cidadãs deste país e, portanto, se encontra ali um foco de violência, a obrigação é parar a violência.
Repressão em que sentido?
Reuniram o Ministério da Justiça e o da Administração Interna e falaram sobre as poucas condenações e de medidas pouco eficazes para o combate à violência doméstica, sobretudo nesta questão da justiça. Foi emitido um comunicado sobre essa reunião onde se escreve que é necessária uma maior eficácia nas medidas de coação e de afastamento, nas medidas judiciais de proteção das vítimas. E ele perguntou se estávamos de acordo com essa orientação que lhe parecia um pouco mais de caráter repressivo. E nós dissemos que a questão não é ser repressivo ou não, é uma questão de parar a violência.
Não sou defensora, atenção, de que a solução passa toda pela prisão, sabemos que não, que as prisões não são a solução para tudo. Mas elas existem por alguma razão. Podemos aplicar as medidas de coação, de afastamento, etc., mas não vamos esperar para ver se elas são eficazes quando existe uma avaliação de alto risco.
(...) Tivemos uma queixa, de uma comarca do Norte, que não vou dizer qual, de uma senhora de cerca de 50 anos que trabalhava, tinha a sua casa, e era vítima de violência de um filho, que teria cerca de 30 anos. Com ameaças, com perseguições, com tudo. Foi ao Ministério Público e o Ministério Público disse que não era violência doméstica e não o classificou como violência doméstica. A senhora teve que ir embora, deixar o emprego e a casa. Acha isto normal? A violência doméstica não é só entre marido e mulher, é nas relações de intimidade.
Passa, então, por mais formação nesta área?
É preciso. Além do combate à violência é preciso continuar a fazer um trabalho, educacional, não apenas nas escolas mas também nas associações e outros locais informais, esta ideia de que as mulheres são pessoas. Têm direito a proteção como qualquer cidadão e cidadã. E não só as vulneráveis, as mulheres que têm trabalho e carreira não são super-mulheres, não têm que se auto-defender, são cidadãs de igual direito.
Comentários
Regras de conduta dos comentários