"Prazer do momento era maior do que risco que se corria em contrair VIH"
Kamal Mansinho, diretor do Serviço de Doenças Infeciosas do Hospital de Egas Moniz, é o entrevistado de hoje do 'Vozes ao Minuto'. O especialista foi um dos primeiros médicos a contactar com pacientes infetados com VIH em Portugal.
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País Kamal Mansinho
É um dos nomes mais sonantes em Portugal no que às doenças infecciosas diz respeito. Nasceu em Moçambique e foi lá que fez o primeiro ano de Medicina, mas foi em terras lusas que completou a formação universitária. Falamos de Kamal Mansinho, diretor do Serviço de Doenças Infeciosas do Hospital de Egas Moniz, do Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental.
A quantidade de processos na sua secretária e o corrupio em torno do seu gabinete denunciam que o tempo é escasso, despendido entre consultas, aulas e coordenação do Serviço. Num quadro da parede alguém escreveu “almoçar”. Questionamos se se costuma esquecer de almoçar. Sorri e responde: “Às vezes”.
Em entrevista ao Notícias ao Minuto, Kamal Mansinho recorda o início da carreira e o seu mentor, José Luís Champalimaud. Hoje segue-lhe as pisadas, ali, no mesmo espaço onde teve oportunidade de granjear o conhecimento do médico e investigador.
Foi também enquanto interno que viu, in loco, os primeiros casos do que, mais tarde, viria a ser rotulado como o Vírus da Imunodeficiência Humana (VIH). Perdeu muitas vidas, hoje perde menos, mas "dói sempre".
Recorda os primeiros doentes que chegaram a Portugal com uma patologia que ninguém conhecia e que, "independentemente de todas as tentativas que se iam fazendo", acabavam por morrer. A "mágoa e o temor" faziam parte do seu dia a dia enquanto interno. A morte gerava "inquietações interiores".
Hoje, depois de 37 anos de profissão, "a sensibilidade está lá. Porém, a maneira como lidamos, apesar de tudo, é diferente".
Na atualidade, o nível de conhecimento neste domínio permite que a ciência disponibilize soluções para que os portadores de VIH tenham relações sexuais sem preservativo. Uma equação onde o prazer assume relevância, sendo que, perante possíveis interferências dessa proteção, é possível recorrer-se ao uso da profilaxia pré-exposição.
Nasceu em Moçambique, mas foi em Portugal que finalizou a formação universitária. O que o motivou a seguir a especialidade de Medicina Interna?
Venho para Portugal numa altura em que se viviam algumas instabilidades no período imediatamente depois da independência de Moçambique. Fiz o primeiro ano na ainda universidade de Lourenço Marques, que passou a ser a Universidade Eduardo Mondlane. Depois vim para Portugal, onde segui a minha licenciatura e fiz carreira.
Fiz a especialidade de Medicina Interna, fui descobrindo áreas de trabalho às quais fui dedicando maior atenção e as doenças infecciosas apareceram neste meu percurso como uma das áreas às quais dediquei maior atenção. Na atualidade, trabalho essencialmente em doenças infecciosas.
Houve alguém que o inspirou neste domínio das doenças infecciosas…
Quando estava a fazer a especialidade de Medicina Interna, passei muito tempo neste Serviço onde estamos, das doenças infecciosas. E o Dr. José Luís Champalimaud, diretor do Serviço e internista de formação também, tinha uma imensa experiência na área das doenças infecciosas e tropicais. E tudo isto acontece numa altura em que se começa a falar de uma doença nova para a qual não havia designação.
E portanto há aqui descobertas no domínio das doenças infeciosas, motivadas pela paixão que o Dr. Champalimaud colocava nas doenças tropicais, que tivemos oportunidade de testemunhar ainda enquanto internos, nomeadamente por trabalharmos ao abrigo de alguns acordos de cooperação com países africanos de expressão portuguesa. E isso acabou por tornar muito claro que esta era uma área que gostaria de prosseguir.
Independentemente de todas as tentativas que se iam fazendo para se encontrar uma causa (...) os doentes acabavam por morrer Quais os sintomas que os primeiros doentes com VIH apresentavam?
Os doentes vinham sobretudo de países de África Ocidental, da Guiné-Bissau e alguns de Cabo Verde. Recorrentemente vinham ao abrigo dos acordos de cooperação vigentes à data e com diarreias muito graves, com quadros de emagrecimento na ordem dos 20-25 quilos em períodos relativamente curtos. E, independentemente de todas as tentativas que se iam fazendo para se encontrar uma causa que pudesse ser tratada de acordo com o agente envolvido, os doentes acabavam por morrer.
Lidar com doentes que irremediavelmente morriam gerava em nós sofrimento de perda, alguma inquietação interiorComo se sentia um interno perante uma patologia nova e para a qual não havia resposta?
Na fase inicial, estávamos ‘escudados’ pelo chefe, o Dr. Champalimaud. Mas acabava por haver alguma mágoa e temor que resultava da nossa incapacidade de conseguirmos encontrar uma solução para que os doentes não morressem.
Os doentes iam vindo, não chegavam todos ao mesmo tempo, e por isso esta perceção de que alguma coisa estava a acontecer, e para a qual não tínhamos nenhum dado em termos de diagnóstico, começava a desenvolver-se em nós pelo efeito cumulativo dos doentes que iam chegando.
O Dr. Champalimaud reunia-se connosco e dava-nos indicação de que viria um ou dois doentes da Guiné-Bissau, conversávamos sobre a informação de que dispúnhamos para depois planearmos a receção e iniciarmos o internamento. À medida que fomos tomando consciência de que afinal as pessoas estavam a morrer, começámos a sentir-nos verdadeiramente confrontados quer com a morte, quer com a nossa incapacidade de conseguir encontrar uma resposta em termos de tratamento. E nessa altura já não eram apenas os doentes dos PALOP, mas também portugueses, mais novos, aos quais aconteciam algumas coisas parecidas mas em que o quadro dominante não era diarreia.
Éramos novos, tínhamos ‘sangue na guelra’, e tínhamos aprendido que as doenças infecciosas eram tratáveis e curáveis. Os doentes podiam chegar muito mal, como acontecia com os que tinham febre tifoide, com quadros de febre alta, em que as pessoas estavam mal do ponto de vista físico, mas ficavam bem. Já estes doentes vinham mal e afinal a causa não era tratável. Isso gerava inquietações interiores, confrontações com a morte. Lidar com doentes que irremediavelmente morriam gerava em nós sofrimento de perda, alguma inquietação interior.
Na altura perdeu muitos pacientes?
Muitos.
Hoje perde menos?
Muito menos. O panorama da doença, quer relativamente aos doentes africanos, quer em relação aos europeus e aos que nos procuram independentemente das nacionalidades, não tem nada que ver com o que vivemos hoje.
Neste momento, uma pessoa infetada por VIH, se for diagnosticada a tempo, se for seguida regularmente e tomar os medicamentos, (...) tem uma longevidade muito próxima das pessoas não infetadasÉ médico há 37 anos. Há 37 anos que lida com a morte de pacientes. Hoje é mais fácil encarar a situação?
Dói sempre. O sentimento de perda e as perguntas que nos fazemos, nomeadamente porque é que o doente morreu, deixa sempre algum sentimento de dor. Fomos amadurecendo, a sensibilidade está lá, porém a maneira como lidamos, apesar de tudo, é diferente.
Na década de 80, estávamos a falar de uma doença que se diagnosticava e em que muitas vezes as pessoas, nos primeiro seis meses ou no máximo num ano, acabavam por morrer. E alguns morriam semanas após o diagnóstico porque chegavam com complicações para as quais não dispúnhamos de medicamentos para controlar a agressividade.
Em pouco menos de 20 anos, passámos a dispor de medicamentos que tratam de forma muito eficaz, sem curar, as alterações que o próprio vírus desencadeia nas defesas das pessoas. Portanto, neste momento, uma pessoa infetada por VIH, se for diagnosticada a tempo, se for seguida regularmente e tomar os medicamentos que estão preconizados de acordo com a situação individual de cada um, tem uma longevidade muito próxima das pessoas não infetadas.
Este tema arrastava consigo também a questão da discriminação, do próprio tabu, de uma marca e vivência de uma doença transmissível, infecciosa, onde a componente sexual era a dominante. Ao contrário do que acontecia em relação aos doentes africanos, maioritariamente heterossexuais, que tanto apareciam homens como mulheres, os doentes na Europa que iam surgindo eram sobretudo homens que praticavam sexo com outros homens ou consumidores de drogas. Portanto, também transportavam consigo uma margem discriminatória muito mais intensa.
O estigma perpetuou-se e, à semelhança da evolução da doença e das nossas mentalidades, também foi tendo roupagens diferentes. O estigma hoje continua a existir, pese embora com expressões diferentes daquelas que tinha no início da epidemia, em que estava muito marcado pela recusa da homossexualidade como orientação sexual. Criminalizava-se o consumo de droga, fosse ela qual fosse, e tudo isto foi sofrendo uma evolução ao longo do tempo. Aliás, Portugal foi um país pioneiro relativamente à questão da abordagem do consumo de drogas ilícitas porque fez um percurso ímpar em termos de descriminação: O consumo deixou de ser um comportamento ilícito para passar a ser uma doença.
E portanto, do ponto de vista das ferramentas para tratar, também se desloca dos instrumentos jurídicos para a Medicina. Isso acaba não só por mudar a maneira como nós, na fase inicial, encarámos este processo, mas também contribuiu para que a própria sociedade passasse a construir um olhar diferente daquele que todos trazíamos de acordo com os valores da altura.
O estigma hoje continua a existir, pese embora com expressões diferentes daquelas que tinha no início da epidemiaEm relação ao estigma que ainda persiste, onde falhamos enquanto sociedade?
O estigma resulta de um somatório de alguns fatores, relativamente à sexualidade por exemplo. Sabemos hoje que, até pelo comportamento dos mais jovens, a orientação sexual passou a ser aceite de forma menos estigmatizante do que era no passado. Não quer dizer que a nossa educação de base não continue a ser muito dicotómica. É homem ou mulher, é doente ou não, está infetado ou não. E é difícil às vezes fazer o percurso das zonas cinzentas. Temos várias matizes de cinzento e nenhuma delas tem um significado pejorativo.
Vivemos hoje uma fase em que a expressão da individualidade da pessoa deve ser olhada não apenas desta forma dualista. Evoluímos no sentido de podermos não apenas olhar para as pessoas com o seu sexo biológico, mas também para olharmos como se sentem na sua identidade em termos de género.
Estamos a abrir algum espaço para que possamos aceitar o diferente, não apenas no modelo de homem ou mulher, heterosexual ou homossexual. No limite, o mais longe que conseguimos ir na década de 80 era ao termo bissexual. Na atualidade, estamos a olhar para uma dimensão muito mais diversa, mas mais próxima da realidade.
Negámos, em determinado momento, algumas realidades que, não sabendo interpretá-las, a solução que se encontrava era reprimi-las, ou ignorá-las e cada vez mais esse espaço vai sendo modificado. Isto vai permitir, pelo menos do ponto de vista da prevenção, construir mensagens adequadas a cada situação e não em abstrato para toda a gente.
No âmbito da prevenção, a da Sida acabou por ser menos efetiva ao longo do tempo e isso tem que ver com o facto de termos dado menor atenção, se não ignorado, grupos da sociedade que existiam e em relação aos quais não fomos capazes de ir ao encontro.
Tenho a memória de muitas vezes perguntar a doentes consumidores de drogas como é que faziam para preparar o estupefaciente, que tipo de material se usava, qual o ritualFazer prevenção obriga então a que seja necessário ‘mergulhar’ na realidade dos portadores do VIH?
Vínhamos de uma época em que a homossexualidade e o consumo de drogas eram temas pouco falados, mesmo no meio médico. Era algo para o qual tínhamos poucas aptidões. O que aprendi sobre a abordagem das vivências sexuais, no caso dos homens que praticavam sexo com homens, ou de consumidores de droga, foi com os meus doentes.
Ou seja, tenho a memória de muitas vezes perguntar a doentes consumidores de drogas como é que faziam para preparar o estupefaciente, que tipo de material se usava, qual o ritual. Era preciso entrar naquele mundo para depois, com as ferramentas técnicas, ajustarmo-nos a uma realidade que conhecíamos em abstrato e de forma muito vaga.
Este conhecimento foi essencial para depois se construir as mensagens de prevenção ou discutir com as entidades quando se elaboravam kits para distribuir a consumidores de droga. Aprendemos então que a droga era preparada numa carica, com umas gotas de limão, e que se acendia uma chama para aquecer. Percebemos também que todos iam buscar à carica e depois pudemos, numa discussão mais dirigida à criação de dispositivos para reduzir danos, informar a quem trabalhava nessas áreas que era preciso um recipiente, uma seringa e uma agulha individual.
Lembro-me que uma das dificuldades na altura em que a professora Odete Ferreira lançou o programa de troca de seringas e agulhas estava na forma de arranjar um substituto do limão. Foi necessária uma ampola que tinha de ser estéril e que aparentemente seria uma coisa facilmente resolvida. Mas tinha de ser em formato de unidose para acautelar as questões relacionadas com a esterilidade. Foi um problema naquela altura.
O VIH2 era menos perigoso, menos transmissível tanto do ponto de vista sexual, como do da grávida para o recém-nascidoA professora Odete Ferreira foi também uma das pessoas com um desempenho particular na determinação da doença. Mas por que motivo em concreto?
Foi das pessoas que, logo na fase inicial da infeção por VIH, começou a trabalhar nesta área, particularmente do diagnóstico. Vivíamos duas realidades que agora sabemos que eram diferentes, mas que à data não eram tão claras. A professora Odete acabou por ter um papel fundamental no acompanhamento e sobretudo nas análises que fazia porque os doentes que vinham de África Ocidental tinham um tipo de vírus diferente daquele que entretanto começava a ser conhecido na Europa e nos EUA.
Eram dois vírus completamente diferentes, o VIH1 e o VIH2.O VH1, mais prevalente na Europa, e o VIH2 com mais impacto nos EUA e mesmo na maior parte dos países de África subsariana. Nos países da África Ocidental havia o segundo vírus, o VIH2, cujo isolamento e a descoberta foi feita a partir dos doentes que eram internados aqui. A professora Odete levou as amostras para França, onde foi feito o isolamento. Ela foi, por isso, uma das co-descobridoras, em conjunto com o Dr. Champalimaud e a equipa, do VIH2.
Inicialmente pensava-se que este VIH2 era mais agressivo e as pessoas acabavam por morrer. Mas o tempo e um estudo metodologicamente mais sistematizado revelou que era ao contrário. O VIH2 era menos perigoso, menos transmissível tanto do ponto de vista sexual, como do da grávida para o recém-nascido. E isso fez com que o vírus VIH2 não se expandisse com a mesma rapidez que o VIH1 que se transformou numa pandemia.
Ainda persistem com esta dispersão geográfica?
Sim, ainda que tenham sido descritos mesmo fora da África Ocidental casos isolados de VIH2, cuja ligação não foi possível identificar. O que é curioso, do ponto de vista biológico, é que o VIH2 tende a ter uma menor frequência porque o VIH1 é o que continua a ganhar expressão e terreno. Mas há aqui questões biológicas e momentos em que essa transmissão ocorreu, ou foi amplificada, que leva a que estes comportamentos sejam diferentes. Mesmo nos países de África Ocidental, circulam ao mesmo tempo VIH1 e VIH2.
Era a primeira luz ao fundo do túnel para a qual todos vivíamos e depositávamos esperançaA determinada altura, surge o primeiro antirretroviral.
Era a primeira luz ao fundo do túnel para a qual todos vivíamos e depositávamos esperança. Mas ao mesmo tempo corporizava alguma ambiguidade quanto ao que devíamos esperar desta medicação. Os resultados dos ensaios clínicos resultaram de um programa acelerado porque se percebeu que os doentes que estavam sob AZT – o primeiro antirretroviral introduzido no mercado em 1986/7 - tinham menos complicações com infeções oportunistas do que os outros. Esse facto criou em todos nós um sentimento de que afinal começávamos a descobrir ferramentas que poderiam contrariar esta doença. Esta perspetiva otimista em pouco tempo levou-nos a perceber que se conseguia alguma estabilização temporária da doença, nomeadamente quando os pacientes não estivessem em fases muito avançadas.
Era, em suma, um percurso que estava a começar, com as dúvidas e expectativas que estas circunstâncias geram, quer em nós profissionais da área da saúde, quer nos próprios doentes.
Foi o recuperar do fôlego porque, fizesse o que se fizesse, os doentes continuavam a morrer. Se não era nos primeiros meses, era no primeiro ou no segundo ano. Em determinados momentos íamos perdendo a esperançaE o plano terapêutico de abordagem do VIH assim se manteve durante uma década. A terapêutica disponibilizada em 1996 mudou efetivamente o paradigma do tratamento?
As estratégias e os medicamentos iam sendo desenvolvidos e aprovados a ritmos diferentes. Em 1996 deu-se a viragem da estratégia de tratamento. Até aí era administrado um medicamento ou dois. Começava-se a ganhar alguma evidência científica e iam sendo desenvolvidos estudos que indicavam que, de facto, a estratégia de tratamento deveria prosseguir no sentido de combinar medicamentos.
No fundo, o conhecimento da altura estabelecia um paralelismo com a tuberculose, que não se tratava com um fármaco, mas com três. Todo o trabalho foi então desenvolvido com base em alguns modelos da terapêutica combinada. E chegou a terapêutica tripla que resulta de uma outra classe de medicamentos que até à data estavam a ser desenvolvidos, os inibidores da protease. E portanto, em 1996, depois do congresso de Vancouver, vínhamos todos muito imbuídos de que se calhar tínhamos encontrado a cura da SIDA.
Os resultados e os impactos que este tratamento tinha, não sobre a qualidade de vida das pessoas, mas também sobre a longevidade, não tinham nada que ver com o que tínhamos vivido até à data. Havia esperança de que possivelmente estaríamos próximos da cura mas já era evidente de que essa combinação terapêutica não curava; retardava significativamente as complicações e os distúrbios relacionados com a qualidade de vida das pessoas. Foi o recuperar do fôlego porque, fizesse o que se fizesse, os doentes continuavam a morrer. Se não era nos primeiros meses, era no primeiro ou no segundo ano. Em determinados momentos íamos perdendo a esperança.
Os pacientes diagnosticados estavam habituados a morrer da doença e, a partir de um determinado momento, passou a haver esperança. Como foi recebida a notícia?
A partir daquele momento passou a ter-se alguma perceção de que havia formas de controlar a doença, embora o espectro da morte não estivesse presente num tão curto período de tempo.
A aprovação de um novo fármaco demorava 48 ou 96 semanas. Os medicamentos eram testados em populações muito selecionadas. E, portanto, quando passávamos de um ambiente muito controlado do ensaio clínico para a vida real, era preciso que a vida mostrasse que aquilo que estávamos a ver em ambientes muito controlados também estava a acontecer. Foi acontecendo e permitindo que doentes e profissionais de saúde pudessem ganhar fôlego.
Houve doentes que não reagiram bem à notícia de que, afinal, não iriam morrer. É verdade?
A partir do momento em que a marca da doença, numa fase inicial, estava muito associada à morte, depois da constatação que os novos medicamentos melhoravam a qualidade de vida e a longevidade, alguns doentes precisaram de tempo para integrar esta modificação do padrão da doença. O espectro da morte acompanhou durante muito tempo com a mesma intensidade. Mesmo depois de termos terapêuticas combinadas, o que os doentes nos perguntavam quando recuperavam era: “Diga-me doutor quanto tempo tenho?”.
Era, no entanto, uma perguntava que não tinha uma resposta porque cada pessoa é única e os dados eram estatísticos e as estatísticas não podem ser traduzidas à letra. O espectro da morte acompanhou estes progressos durante bastante tempo, tanto que a própria comunidade passou a senti-lo como dado adquirido e passou a integrá-lo como algo de mais consistente.
Lembro-me que, mesmo nesta fase de progressos e de qualidade de vida das pessoas, a perceção do clínico era de que estava a dar boas notícias porque a pessoa ia viver mais tempo. Mas houve doentes que ficavam atordoados com o que para nós era boa notícia. Muitos deles, ao tomarem consciência da sua finitude, definiam para si prazos, mesmo que não os explicitassem. Havia doentes que diziam: “Já passei cinco anos e se calhar já cá não deveria estar”.
Alguns dos motivos que levavam os doentes a desinvestir tinham que ver com a proteção das pessoas que estavam mais próximas, por forma a minorar o sofrimento quando partissem. E para sua proteção, não investiam em determinados projetos pessoais porque tinham definido para si que não iam ser capazes de concretizá-los em consequência da doença.
A doença continua a ser mortal se não tratada, continua a ser mortal se as pessoas se tratarem e abandonarem o tratamento e deixarem de ser acompanhadas, mas não se morre nos primeiros seis meses ou um ano, exceto nestas situações particularesA doença passou de fatal para crónica. Ainda lhe fazem a pergunta de quanto tempo têm de vida?
Depende. A pergunta é colocada com menos frequência, embora continuemos a receber muitos doentes diagnosticados de novo e cuja infeção aconteceu há muitos anos. Quando vêm, chegam numa fase avançada. E são diagnosticados porque vão à urgência, por exemplo com uma gripe, e têm características incomuns das pessoas imonucompetentes. Pede-se o diagnóstico e confirma-se.
Retrospetivamente, o que presumimos é que muito possivelmente estas pessoas terão sido infetadas há 15 anos e desconheciam o facto, ou em determinado momento, por algum motivo, não valorizaram esse risco ou podem ainda ter negado a possibilidade de se infetarem. Essas continuam a ter risco de morte no curto prazo, em consequência das infeções oportunistas envolvidas. Todavia, como dispomos de medicamentos eficazes, não há tantos doentes a morrer quando comparados com os que apareciam na década de 80. O tipo de infeções e de degradação física era muito idêntico aos que aconteciam nos anos 80. Temos uma percentagem elevada de doentes que nos chegam nessa fase.
À medida que estes ganhos foram sendo interiorizados pela comunidade, também a perceção do risco foi mudando. Isto é, ao contrário do que aconteceu nos anos 80/90 e primeiros anos de 2000, há uma geração de pessoas que não se lembra de alguém que morreu com Sida. A geração que é adolescente nos anos 2000 não tem referências de pessoas que morreram com o vírus e passa a ser mais complacente com o risco. O progresso, não só nas doenças transmissíveis, mas noutras também, gera esta compensação de risco.
A doença continua a ser mortal se não tratada, continua a ser mortal se as pessoas se tratarem e abandonarem o tratamento e deixarem de ser acompanhadas, mas não se morre nos primeiros seis meses ou um ano, exceto nestas situações particulares. Quem chega com o diagnóstico já está mais alerta e tem menos receio de assumir a sua orientação sexual.
Depois percebemos que quando se infetaram não foi por um défice de conhecimento sobre como a doença se transmite, é porque naquele momento da sua relação sexual ou do consumo de droga até sabiam que se estavam a expor a um risco, mas aceitaram como sendo isso, um risco. O benefício ou o prazer que iam retirar daquele momento era maior do que o risco que se corria em contrair HIV.
A prevenção não acaba quando disponibilizamos a informaçãoE como se mudam esses comportamentos?
O que faltou e o que aprendemos nestas últimas décadas é que a informação não chega para mudar comportamentos. Isto é, houve muita informação e continua a haver. Precisamos de desenvolver outras competências além de informar. Isto é verdade também em relação ao tabaco.
A informação não é suficiente para mudar comportamentos e cada vez mais, com a difusão das novas tecnologias de informação e presença de redes sociais, vamos ter de aprender com os especialistas da área como devemos construir mensagens e utilizar estas novas aplicações para chegarmos às pessoas, sem que estas sintam que estamos a ser intrusivos. Por maior percurso que tenhamos percorrido até aqui, continua a ser uma área em que todos a sentimos como de reserva individual. Sem perder a dimensão da individualidade, temos de trabalhar também para o coletivo. A prevenção não acaba quando disponibilizamos a informação.
Quando se combina um encontro nalgumas plataformas já há a possibilidade de escolher se é uma pessoa seropositiva para VIH ou não, se está a fazer profilaxia pré-exposição ou não, se aceita ou não ter sexo sem preservativoHoje em dia é possível agendar um encontro sexual ‘através de um clique’. É preciso adaptar mensagens de prevenção à realidade?
Não só através de um clique, mas com os requisitos que se quer. Quando se combina um encontro nalgumas plataformas já há a possibilidade de escolher se é uma pessoa seropositiva para VIH ou não, se está a fazer profilaxia pré-exposição ou não, se aceita ou não ter sexo sem preservativo. É muito importante percebemos que os dispositivos que temos são poderosíssimos. Mas é muito importante conhecer como é que esses dispositivos são usados na comunidade. Não é evitando o conhecimento deste detalhe que evitaremos esses encontros, mas é conhecendo na profundidade estes dispositivos que podemos chegar às pessoas que os usam.
Começámos a ter informação acumulada e com robustez suficiente para podermos usá-la em benefício das pessoas que queiram ter relações sexuais sem preservativoNa atualidade também já é possível um portador de VIH ter sexo desprotegido sem transmitir o vírus. O que mudou?
A questão que se coloca é que os tratamentos atuais, desde que cumpridos regularmente, e depois de seis meses após o início do tratamento, levam a que a quantidade de vírus que está em circulação, e que designamos genericamente por carga vírica, caia para valores abaixo dos 50 de acordo com algumas técnicas, abaixo de 20 segundo outras. O que os estudos vieram a demonstrar é que uma parte considerável das pessoas que tenha cargas víricas suprimidas, abaixo de 50 ou de 20, se tiver relações sexuais sem preservativo, tem muito baixo risco de transmitir o vírus ao parceiro/a. Este é o pressuposto da terapêutica antirretrovírica.
E o que aprendemos em relação à grávida é que sempre que a carga vírica cair a partir de um determinado valor, a probabilidade de transmitir o VIH ao recém-nascido passa a ser muito baixa. E com os medicamentos atuais é de 2% ou de 0% em algumas circunstâncias.
Começámos a ter informação acumulada e com robustez suficiente para podermos usá-la em benefício das pessoas que queiram ter relações sexuais sem preservativo. E isto é algo que nos remete para um outro conjunto de valores que, havendo alguma resposta de conhecimento, tem de ser abordado. Evoluímos do tratamento antirretrovírico das pessoas infetadas para a profilaxia pré-exposição. Ou seja, administrar um medicamento antirretrovirico a uma pessoa não infetada para que se esta tiver um encontro sexual ou consumo de substâncias por via endovenosa com uma pessoa infetada, ou desconhecendo se está infetada, tem um risco baixíssimo de poder contrair a doença.
Existem neste momento várias estratégias de prevenção que permitem acertar, de acordo com cada pessoa, um conjunto de medidas para correr um menor risco. A profilaxia pré-exposição é uma medida, entre outras, que pode ser adotada e deve.
As recomendações atuais indicam que devemos oferecer às pessoas a possibilidade de fazer um teste proativamente, independentemente do risco que a pessoa possa ter corridoContinuamos a ter diagnósticos tardios. É obrigação da pessoa ser proativa e fazer o exame de despiste ou o médico de família, nos exames de rotina, também o deve propor?
É responsabilidade é dos dois. A razão pela qual o pedido da análise do VIH não entrou facilmente na nossa rotina prende-se com a época em que a doença era altamente estigmatizada e a pessoa sofria um grande risco de ser despedida, de ter problemas sociais e familiares grandes. E as nossas mentalidades nem sempre conseguiram acompanhar o ritmo da evolução. Ou seja, o conhecimento evoluiu, a doença, ainda que continue a causar estigma e discriminação, é menos intensa, já dispomos de tratamentos altamente eficazes que não curam mas que mudam completamente o panorama de quem pode oferecer diagnóstico, porém ainda há estigma.
Encontrar-se-á ainda profissionais médicos para quem a requisição do exame da infeção por VIH ainda está ligado ao pedido por consentimento escrito do paciente e é essa sombra que ainda persiste. As recomendações atuais indicam que devemos oferecer às pessoas a possibilidade de fazer um teste proativamente, independentemente do risco que a pessoa possa ter corrido.
Quando olhamos para o que aconteceu a estas pessoas que chegam tarde ao diagnóstico e vamos olhar para o histórico, percebemos que foram ao hospital por várias razões que já poderiam ter sido atribuídas ao VIH. Ambos deixámos escapar circunstâncias que podiam ter evitado que o diagnóstico fosse feito 20 anos depois. Até à data do diagnóstico, a pessoa desconhecia que estava infetada e portanto continuou a transmitir o vírus por via sexual à comunidade.
A estratégia atual para alcançar as metas da ONU Sida, os tais ‘90-90-90’, o que propõe é exatamente que seja oferecido aos doentes o diagnóstico ou a serologia por VIH, acautelando o direito da pessoa poder recusar esse teste, o que não significa que nunca o venha a realizar.
Em 37 anos de profissão, qual foi o paciente mais velho que lhe chegou às ‘mãos’ depois de ter sido infetado com VIH?
Lembro-me de uma mulher com 70 e muitos anos que se infetou pouco tempo antes de vir à consulta e que me dizia amargamente: “Veja lá, doutor, sou viúva há tantos anos e agora vai-me acontecer isto”. O que lhe disse foi: é sinal de que estamos vivos.
O preservativo em si mesmo pode desencadear disfunções sexuais, que levam a que o homem o deixe de usarConsidera que, pela faixa etária, poderia não estar habituada a usar o preservativo com o companheiro?
Acho que o parceiro desta senhora era uma pessoa mais nova. Mas não sei se é questão de não estar habituado a usar preservativo, ou se foi porque naquele momento não o usou. Não podemos mesmo perder de vista que, quando aconselhamos o uso do preservativo, temos de, nas consultas subsequentes, perguntar se correu tudo bem com o seu uso, particularmente nos homens a partir de uma certa idade. Isto porque o preservativo em si mesmo pode desencadear disfunções sexuais, que levam a que o homem o deixe de usar.
Há pessoas que podem perder a ereção na altura, ter ejaculação mais precoce e, muitas vezes, é sentido pelos homens como sendo algo que correu menos bem e ele sente-se inibido a falar sobre isso. Do ponto de vista da abordagem médica, não chega perguntar se está tudo bem com o uso do preservativo. Mas nós também, enquanto avaliamos estas situações, temos algumas inibições próprias. Não é fácil perguntar a um senhor de 70 anos os detalhes. A maneira menos intrusiva é perguntar se está a correr tudo bem e a pessoa diz-nos que sim. Mas depois percebemos que não está porque mais tarde o paciente encontrou espaço para falar sobre disfunção erétil na utilização do preservativo.
Estar atento para alguma subtileza para vencer o receio da intrusividade pode ser útil para ganhar confiança, mas depois o médico deve ser proativo especificamente nas reações que o preservativo pode desencadear.
Hoje em dia já se discute também questões relacionadas com o prazer e interferências que o preservativo pode ter na realização sexual das pessoas. Também a evolução do conhecimento nos obriga a estarmos atentos a questões que são conhecedoras de ambos os lados, mas que em determinado momento, por razões múltiplas, não são abordadas.
E a pessoa mais jovem?
Tinha 15 ou 16 anos e a infeção resultava da iniciação sexual mais cedo, mas não com pessoas exteriores ao seu círculo. Era um estudante de liceu que teve relações com algumas das suas colegas e a presunção de infeção resultava daí.
No fundo nunca se acha que o VIH nos vai bater à porta.
Infeção por VIH apanha-se porque se está vivo. Ponto. Não é por causa deste ou daquele comportamento em especial. É mesmo porque se está vivo e se tem uma relação sexual, ou se consume alguma substância ilícita.
Quando, às vezes, para efeito de agregação, categorizamos os grupos de maior risco, também devemos ter cuidado porque quem consome esporadicamente não se revê na designação de toxicodependente. E o mesmo é verdade em relação às infeções sexualmente transmissíveis.
Focalizamos, para efeitos de prevenção, porque é um grupo para o qual devemos prestar uma atenção particular porque o risco de propagação é maior. Mas não se deve perder de vista que muitas pessoas da comunidade não têm exposições recorrentes que categorizam promiscuidade sexual, mas são colocadas em risco.
Há uma diferença entre encontrar Legionella numa torneira ou num chuveiro e desenvolver a doençaRecentemente foi descoberta Legionella no IPO de Lisboa. Esta começa a ser cada vez mais uma bactéria frequente?
A Legionella sempre viveu connosco e vive há mais tempo do que nós no meio ambiente e particularmente em dispositivos de armazenamento de água. Fala-se com maior frequência da Legionella porque há dispositivos para fazer a monitorização em águas de torneira, chuveiros, depósitos de água, sobretudo em alguns ambientes como hospitais e centros comerciais com repuxos.
Mas há uma diferença entre encontrar Legionella numa torneira ou num chuveiro e desenvolver a doença. Há uma quantidade mínima acima da qual o risco de desenvolver a doença é grande. O que não sou capaz de dizer é se a quantidade da bactéria que foi encontrada neste ou naquele ponto não significa que esteja em todos os pontos de saída de água. O protocolo obriga é que, de acordo com o plano estabelecido, sejam recolhidas amostras de várias fontes desse mesmo espaço para perceber o significado e que dispositivos de eliminação do agente devem ser ativados.
Não sei em concreto em relação ao IPO qual foi o resultado clínico. Pode ter sido apenas deteção que, do ponto de vista prático, é um sinal de alerta para monitorizar quais são os outros pontos de saída que estão previamente definidos de acordo com a legislação disponível e que ações devem ser desencadeadas para a eliminação do foco.
Não é obrigatório que, de cada vez que se encontre Legionella numa torneira, se associe ao desenvolvimento de uma doença. É obrigatório não desprezar essa informação e monitorizar, e isso é verdadeiro num hospital, num centro comercial, ou numa empresa com sistemas de aquecimento e arrefecimento.
É também verdade que as principais mortes por Legionella ocorrem em doentes com outras comorbilidades?
Do ponto de vista estatístico, sim. A Legionella, mesmo em pessoas que não têm comorbilidades, pode originar pneumonias graves e mesmo mortais, mas são exceções. Temos de tentar encontrar quem são as pessoas que estão em maior risco de desenvolver complicações, algumas das quais que podem evoluir para a morte.
Perante as pessoas com comorbilidades, impõe-se a necessidade de prestar maior atenção. E isso baseia-se na constatação estatística de que esses são os grupos que têm maior probabilidade de desenvolver uma complicação ou de morrer. Não exclui que, pontualmente, uma pessoa sem qualquer comorbilidade possa desenvolver uma forma grave, mas é raro.
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