"Brasileiros cultivam ideia de repúdio como se nada esperassem de nós"
O entrevistado do Vozes ao Minuto de hoje é o antigo jornalista Carlos Fino.
© Facebook/Carlos Fino
Mundo Carlos Fino
Foi para muitos uma referência, durante anos, dos noticiários portugueses. Com o microfone da RTP percorreu o mundo, fazendo chegar notícias dos terrenos mais conflituosos. No seu currículo, constam passagens por Moscovo - durante a ex-União Soviética - Bruxelas, Washington, Kosovo, Afeganistão e Iraque.
Um percurso que faz com que acredite que a maior parte das pessoas "reconhece o empenho e a dedicação que sempre" colocou "no exercício da profissão", mesmo agora que se encontra do outro lado do oceano.
Carlos Fino está há cerca de 15 anos no Brasil, onde concluiu há pouco tempo o doutoramento sobre as relações entre Portugal e terras de Vera Cruz, e onde acompanha mais de perto o impacto da eleição de Jair Bolsonaro, nunca perdendo de vista aquilo que se passa no seu país de origem.
Em conversa com o Notícias ao Minuto, o jornalista fala sobre a realidade do país que o acolheu, a "homenagem" aos portugueses que contrasta com alguma rejeição que sente por parte do povo brasileiro, bem como acerca do jornalismo que fez e daquele que se faz nos dias de hoje. Tudo isto, na entrevista que se segue.
Está no Brasil desde 2004. Como é que encara a mudança política que se viveu recentemente no país?
A eleição de Bolsonaro culmina um ciclo de instabilidade política iniciado em 2013/2014, primeiro com grandes manifestações populares de descontentamento e depois quando os partidos de oposição ao PT, na prática, se recusaram a aceitar o resultado das eleições que reconduziram Dilma Rousseff na presidência. A falta de jogo de cintura de Dilma agravou tudo, acabando por conduzir ao seu afastamento. As forças políticas ao centro, que contavam sair beneficiadas desses processos, foram entretanto surpreendidas e ultrapassadas pelo fenómeno Bolsonaro, expressão brasileira de um movimento mais vasto contra o politicamente correto que vem sendo impulsionado pelas redes sociais um pouco em todo o mundo pelo menos desde a eleição de Trump para a Casa Branca.
O desempenho de Bolsonaro tem sido tão decepcionante que não está fora do horizonte que ele não consiga chegar ao fim do mandatoAssusta-o o que um político como Jair Bolsonaro possa fazer?
É sempre preocupante quando políticos extremistas chegam ao poder. Mas a democracia brasileira, que foi sendo progressivamente consolidada desde 1988, parece ter força suficiente para lidar com esses perigos. Por outro lado, o desempenho de Bolsonaro tem sido tão decepcionante, frustrando a massa que o elegeu e o próprio mercado, que não está fora do horizonte que ele não consiga chegar ao fim do mandato. Tendo em conta outras experiências e o avanço de forças fora do main stream um pouco por toda a Europa, não é de excluir que em Portugal possam surgir movimentos idênticos. Mas também sabemos, pelo menos desde os anos 70, que em Portugal "o povo é sereno"...
Mas encontra perfil ou estilo paralelo em Portugal? À boleia do que tem vindo a ser tendência um pouco por todo o mundo, devemos temer a ascensão da extrema-direita em Portugal?
Tenho dificuldade em avaliar dado que estou a viver há mais de uma década fora do país. Há certamente erupções de violência e xenofobia que preocupam, e os responsáveis terão de estar atentos. Em geral, parece haver também entre nós um certo cansaço do politicamente correto e as dificuldades de recuperação da grande crise económico-financeira que atravessámos geram compreensível descontentamento. Mas confio em que saberemos evitar os extremos e a violência e encontrar caminhos de consenso.
O Brasil é conhecido por ser palco de violência e Bolsonaro assume-se como aquele que irá impor a ordem. Tem condições para isso ou usou antes um 'trunfo' populista que poderá ter o efeito contrário?
O estilo de governação de Bolsonaro, nestes primeiros meses, é de permanente confronto e hostilidade para com todos os opositores, como se ainda estivesse em campanha, aparentemente incapaz de assumir uma posição de Estado. Mas sobre o seu núcleo familiar pairam suspeitas de corrupção e até de eventual ligação a milícias armadas, o que tende a enfraquecer a imagem de "salvador da pátria" com que se apresentou ao eleitorado.
Por outro lado, as expectativas de melhoria económica que se geraram em torno da sua eleição tardam em confirmar-se e não está sequer excluído que o Brasil possa recair em recessão. Nestas condições, o Congresso vem assumindo cada vez maior poder, obrigando o Planalto a aceitar soluções de compromisso. Mas se as perspetivas económicas não melhorarem a curto prazo, não antevejo grande futuro para Bolsonaro, apesar do apoio consistente de que ainda desfruta em certos setores da população.
Lula acabou por trair o seu eleitorado, provocando uma brecha na confiança. No entanto, os casos concretos pelos quais Lula foi julgado e condenado são fracos do ponto de vista da prova e deixaram a impressão de ter havido mais julgamento político do que estritamente jurídico A eleição de Jair Bolsonaro surge, segundo especialistas, devido ao clima de desconfiança que se gerou contra o PT, após a acusação de Lula da Silva por corrupção. Carlos Fino chegou a dizer que o grande problema do atual discurso do Partido dos Trabalhadores e do ex-chefe de Estado era prometerem lutar contra a forma brasileira corrupta de fazer política, mas terem acabado enredados nela. A teia da corrupção é algo de que não se consegue fugir?
Não foi o PT que inaugurou a corrupção no Brasil. Mas o PT tinha prometido ao longo de décadas combater esse flagelo e uma vez chegado ao poder acabou enredado nos esquemas. Nesse aspecto, não há dúvida de que Lula acabou por trair o seu eleitorado, provocando uma brecha na confiança das classes médias, que abriu caminho para o seu afastamento do poder. As suas responsabilidades políticas são inequívocas. Considero, no entanto, que os casos concretos pelos quais Lula foi julgado e condenado são fracos do ponto de vista da prova e deixaram a impressão de ter havido mais julgamento político do que estritamente jurídico.
Revê este tipo de "ligações perigosas" de Jair Bolsonaro, nomeadamente numa rede composta por membros da sua família, incluindo o seu filho, na sociedade portuguesa?
No Brasil, as "ligações perigosas" parecem envolver relações ou conexões com milícias armadas, designadamente no Rio de Janeiro. Felizmente, não vejo nada de equivalente na sociedade portuguesa.
Um relatório recente dava conta de que o combate à corrupção em Portugal está estagnado. Somos demasiado condescendentes para com estes casos?
O que parece existir em Portugal é uma grande lentidão da Justiça de uma forma geral: os processos arrastam-se por anos e anos, ultrapassando por vezes os próprios prazos legais, daí que uma revisão das normas do processo no sentido de assegurar maior celeridade já seria um avanço importante.
A denúncia de processos como a Operação Marquês, o caso BES, entre outros, são um exemplo do papel que a comunicação social pode ter enquanto 'quarto poder'? E uma importante ferramenta na luta contra a corrupção?
A comunicação social pode também fazer a diferença - com a condição, no entanto, de que não se deixe instrumentalizar nem caia num justicialismo perigoso. Em geral, sou algo cético em relação ao poder dos media. Não há media forte com jornalistas fracos. O reforço do papel dos media passa necessariamente pelo reforço do papel e do estatuto dos jornalistas, o que não parece ser a tendência, hoje em dia, infelizmente.
Há certamente erupções de violência e xenofobia que preocupam [em Portugal]... Mas confio em que saberemos evitar os extremos e a violência e encontrar caminhos de consenso
Muitos são os brasileiros, em Portugal, que dizem ter saído do Brasil para poderem viver num país mais alinhado à Esquerda. Se pudesse escolher, em termos políticos, preferia voltar para Portugal?
Só as circunstâncias da minha vida pessoal me têm mantido afastado do país. Mas tenciono voltar logo que o possa fazer em harmonia com os meus familiares. Um governo de Esquerda não é condição sine qua non - basta-me a democracia.
Como analisa, de fora, a governação que se faz atualmente em Portugal?
Considero a experiência dos últimos anos bastante interessante e "refrescante" para o sistema político saído do 25 de Abril de 1974. Não era mais possível continuar só com o velho "arco da governação", mantendo afastados da área do poder, por razões ideológicas, importantes sectores da população. A Guerra Fria acabou, não há mais URSS, e portanto nada justifica que forças fora do main stream consagrado - seja à esquerda, seja à direita - não possam ter, também elas, uma palavra a dizer, numa permanente situação de capitis diminutio.
Marcelo Rebelo de Sousa marcou presença na tomada de posse de Bolsonaro e disse que Portugal beneficiou com aquela representação diplomática no "país irmão". Que benefícios pode haver para Portugal numa relação com o atual presidente do Brasil?
Portugal tem todo o interesse em manter relações de Estado com o Brasil, seja qual for o governo. Historicamente, essas relações tendem a aprofundar-se quando há coincidência ou convergência ideológica. Mas há sempre programas e políticas em curso em diversas áreas - da economia à ciência, passando pela cultura, etc. - que são transversais e atravessam vários governos. Enquanto membro da UE, Portugal não pode ignorar as divergências já expressas por países como a Alemanha em relação às políticas ambientais e outras de Bolsonaro; mas até por isso, o nosso país pode ter um discreto papel de mediação na relação da Europa com o Brasil que convirá sempre salvaguardar.
Se mais não houvesse (e, felizmente, há), quase se poderia dizer que no Brasil o povo ignora-nos e a intelectualidade despreza-nosEscreveu num artigo em 2012 que há por vezes um "autêntico desdém pelas coisas portuguesas" no Brasil. De que forma sente isso no seu dia a dia?
Não é algo que se sinta em termos pessoais. Pelo contrário, os brasileiros são em geral muito afáveis e gentis no trato pessoal - mesmo mais do que nós. Mas é uma atitude que está presente como posição de fundo (o olhar por detrás do olhar) na generalidade da intelectualidade e nos media. Esse desdém tem origem histórica e está no ADN da nacionalidade brasileira, que, para se formar e fortalecer - uma vez que no início a nação era a mesma - teve de cultivar o antilusitanismo.
A situação é contraditória e paradoxal: por um lado, pelo simples exercício da língua, os brasileiros prestam diariamente homenagem a Portugal; mas, por outro, cultivam uma ideia de afastamento e repúdio, como se nada tivessem a ver connosco e nada esperassem de nós. Essa atitude, que está na génese da própria nacionalidade brasileira, como verdadeiro mito de origem, cristalizou-se nos media e no ensino.
Os jovens saem do ensino médio com uma péssima imagem de Portugal, país que lhes é descrito como estando na origem de todos os males do Brasil. O afastamento em relação a nós é tal que muita gente não associa sequer a língua que fala com o país que somos. Se mais não houvesse (e, felizmente, há), quase se poderia dizer que no Brasil o povo ignora-nos e a intelectualidade despreza-nos. Em resumo, como disse Eduardo Lourenço, no Brasil, Portugal está em todo lado e em lado nenhum.
Disse também que Portugal é responsável por isso: "Não é só o Brasil que nos esquece, somos nós que não nos fazemos lembrar". De que forma devemos fazê-lo e porquê?
Teríamos, obviamente, de investir muito mais no Brasil em termos de comunicação de uma forma geral. Para isso, seria necessário traçar primeiro uma estratégia - juntando esforços da academia, da diplomacia, dos media, dos meios de negócios e políticos - com vista a uma ação conjugada de longo prazo visando valorizar a memória da história portuguesa na América. Infelizmente, quase ninguém em Portugal levanta, hoje, estas questões e assim a memória portuguesa no Brasil vai sendo esquecida.
Sempre foi para mim um mistério, por exemplo, porque é que existe uma RTP-África e não existe uma RTP-BrasilAfirmou que era necessária uma RTP no Brasil. Continua a acreditar nesse projeto?
A valorização da memória e da cultura portuguesas no mundo são obrigações do Estado consagradas na lei. Não conheço lugar com mais importância para isso ser feito que não seja, justamente, o Brasil. Infelizmente, Portugal tem se reduzido a assegurar os mínimos nesta questão e por vezes nem isso. Sempre foi para mim um mistério, por exemplo, porque é que existe uma RTP-África e não existe uma RTP-Brasil. Esse projeto é indispensável se um dia quisermos de facto reverter o esquecimento e o desdém a que somos votados no maior país de língua portuguesa do mundo.
Além disso, há outras coisas que poderiam desde logo ser feitas - basta olhar para o que está a fazer, por exemplo, a Alemanha, cuja representação diplomática coloca com frequência nas rede sociais matérias valorizando de forma expressiva e de fácil apreensão tudo o que diz respeito à memória da emigração alemã no Brasil. Quando iremos deixar de desprezar a nossa própria história? Como esquecer que dos quase 900 anos que Portugal tem, mais de um terço estão no Brasil?
Era um projeto que o faria voltar ao jornalismo?
Um projeto desses obviamente que contaria com o meu apoio e estaria inteiramente disponível para colaborar. A tese de doutoramento que escrevi sobre essas questões - ‘Raízes do estranhamento- a (in)comunicação Portugal-Brasil’ -, recentemente aprovada pela Universidade do Minho e pela Universidade de Brasília, é já um contributo nesse sentido.
Para um jornalista que esteve presente em três cenários de guerra - União Soviética, Iraque, Afeganistão - como é olhar para a realidade em que vivemos hoje? Considera que já viu de tudo na sua vida?
Nunca se viu tudo - a realidade do mundo é sempre mais rica e variada do que a própria experiência. Essa é a riqueza insuperável da condição humana. E ainda bem, se não, a vida perderia o encanto. Como disse o poeta, o mundo é feito de mudança e para maior espanto, a própria mudança já não é o que o soía ser... É verdade que, por vezes, já sinto o peso da minha peregrinação cansada. Mesmo assim, ainda espero poder continuar por muito tempo a maravilhar-me com o milagre da vida e as novidades que ela traz.
Maduro é certamente hoje detestado por muitos, mas Guaidó também não parece ser a figura capaz de unificar o paísEstando no Brasil, suponho que acompanhe mais de perto a crise vivida na Venezuela. Qual a solução possível para o fim deste impasse político? A comunidade internacional, na sua maioria, apoia Guaidó, enquanto vemos muitos venezuelanos ainda do lado de Maduro.
O ideal, quanto a mim, seria tentar ainda uma solução de compromisso com vista à realização de novas eleições monitorizadas pela ONU. As sanções económicas impostas pelos EUA só agravam a situação já desesperada em que se encontram milhões de pessoas e tudo pode terminar num confronto sangrento de grandes proporções. Maduro é certamente hoje detestado por muitos, mas Guaidó também não parece ser a figura capaz de unificar o país. Nada melhor do que o voto para se sair do impasse. Talvez o isolamento cada vez maior do governo e a incapacidade da oposição para voltar os militares a seu favor acabem por abrir espaço para um diálogo que evite o pior.
Foi o primeiro repórter a anunciar o início dos bombardeamentos a Bagdad, na madrugada de 20 de março de 2003. Quase 16 anos depois, a capital do Iraque continua a ser centro de conflitos violentos. Que final augura para este conflito?
O Médio Oriente continuará a ser um foco de instabilidade enquanto continuar a luta pelo controlo das fontes de energia e enquanto não for resolvido o problema da Palestina. As intervenções externas como a invasão do Iraque pelos EUA - em consequência da qual morreu quase meio milhão de pessoas - só tendem a agravar as contradições. Não havendo um poder hegemónico capaz de controlar e subordinar os interesses divergentes da região, só parece haver espaço para composições negociadas, sempre num equilíbrio instável.
Passou grande parte da sua carreira em viagem, tendo chegado a afirmar que não é um homem de redação. Como é que encara esta nova fase do jornalismo - a era digital - onde quase tudo se faz só com o acesso a um computador e à internet?
Sou frontalmente contra a ordem de "mais Google, menos rua!" que, por razões de economia de meios, alguns chefes de redação e proprietários de media gostariam de fazer imperar nas redações. Sem repórter no terreno, não há jornalismo que valha a pena. Mas os novos instrumentos mediáticos são ferramentas importantíssimas nem sempre utilizadas da melhor maneira. Hoje em dia há muito mais facilidade de acesso a fontes de diversa origem que poderiam complementar com vantagem os trabalhos de reportagem e o noticiário. Tanto mais incompreensível se torna, por isso, a padronização pobre - ditada ainda pelas grandes agências de notícias do século XIX - a que muitas vezes assistimos, com os jornais, rádios e televisões a repetirem todos as mesmas notícias.
As ‘fake news’ não são um fenómeno novo. As redes, sim, mas as notícias falsas não - basta olhar para a história das guerras, pelo menos desde o século XIX para cá, para ver como as falsas notícias quase sempre estiveram no desencadear das hostilidadesE como olha para as 'fake news' e redes sociais enquanto meio amplificador deste fenómeno?
Ao contrário do que muitas vezes se pensa, as ‘fake news’ não são um fenómeno novo. As redes, sim, mas as notícias falsas não - basta olhar para a história das guerras, pelo menos desde o século XIX para cá, para ver como as falsas notícias quase sempre estiveram no desencadear das hostilidades. O que há, hoje, é uma facilidade muito maior de qualquer narrativa se espalhar praticamente sem controlo. Considero que organizações como o Facebook e outras têm, nesta matéria, uma responsabilidade que não podem rejeitar e defendo por isso uma regulamentação adequada. Não há liberdade sem responsabilidade.
Foi um dos mais conceituados jornalistas portugueses, fazendo o que poucos fizeram. Sente-se reconhecido pelo trabalho que desenvolveu?
Sim, absolutamente. Nunca se pode agradar a todos - isso, nem Deus consegue. Mas sempre senti - e sinto ainda hoje - o maior carinho por parte das pessoas, que em geral reconhecem o empenho e a dedicação que sempre coloquei no exercício da profissão, dando o melhor de mim próprio e procurando manter o mais possível o equilíbrio, a isenção e a objetividade. Com a ressalva de que o jornalismo não é neutro - antes tende a expressar os valores consensualmente adquiridos.
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