"'Desalmadamente' não é uma ressurreição. Porque nunca me senti morta"
Lena d'Água é a entrevistada de hoje do Vozes ao Minuto.
© Universal
Cultura Lena d'Água
Suspiros e gargalhadas. É esta aura de Lena d'Água no regresso aos palcos que são seus e de onde nunca saiu realmente. Ao fim de 30 anos, 'Desalmadamente' surge quase como uma autobiografia, assim o define a artista, em entrevista ao Notícias ao Minuto. Pode até ser encarado como um momento de ressurreição para muitos dos que sentiram a sua ausência, mas não para a artista que, ao longo destas décadas, sempre se sentiu “viva”, ainda que tenha circulado "no trânsito local". Foi, isso sim, um alívio saber que iria ter alguém a escrever-lhe estas canções.
A conversa com Lena d’Água decorre em dois ambientes distintos, o primeiro, no local combinado, num apartamento no Parque das Nações. A agenda apertada, entrevistas umas atrás das outras, obriga-nos a levar a conversa para um carro de umas dessas plataformas de transportes. A oportunidade certa para mais dois dedos de conversa e de histórias.
Pelo caminho, a passar pela Avenida Almirante Reis, recorda o dia 26 de abril de 1974, o dia em que ali perto “quase” levou um tiro durante uma manifestação na qual participava. A mesma sorte não teve outro manifestante, baleado nas pernas. Desse episódio marcante, recorda a dualidade de sentimentos entre o que ali viu, um rapaz a esvair-se em sangue, e o ambiente de normalidade no metro, para onde seguiu depois.
Aos 62 anos, a artista que eternizou 'Sempre que o amor me quiser' não tem razões para não estar em paz com o seu passado. Resultado do facto de desde cedo ter tomado as rédeas da sua vida, uma liberdade de escolhas que vê como um privilégio e, simultaneamente, condição essencial para ser artista. Orgulha-se ter uma relação 'tu-cá-tu-lá' com as gerações mais novas por quem se sente acarinhada. E os mais velhos? "Achavam que estava arrumada". E nisto, 'Desalmadamente' é ...[respirar fundo]. De alívio.
A apresentação do novo disco de Lena d'Água está marcado para o próximo dia 4 de junho no Teatro Villaret, em Lisboa, que contará com casa cheia (os bilhetes, esses, já estão esgotados).
Eis o regresso com 'Desalmadamente'. 30 anos é muito tempo. O que explica esta tempo todo sem Lena d’Água?
Não é sem Lena d’Água.
Ou este afastamento.
Também não é afastamento.
Então o que é?
Não tinha originais para gravar, que é diferente. Não tinha. Depois daquelas canções todas que o Luís Pedro Fonseca compôs para mim nos anos 80, que são os meus êxitos quase todos gravados com a banda Atlândida, nunca mais tive um compositor que se dedicasse a fazer-me cantar novas canções.
E isso não foi por decisão própria também?
Claro que não. Andei a fazer concertos, experiências diversas com jazz e com rock, para as crianças, com teatro também à mistura. Escrevi mais um livro. Andei a fazer muitas coisas. Originais é que já desde 89 que não gravava. Mas gravei entretanto mais discos, o último de 2014, o penúltimo 2007. Por isso, afastamento não. Não tinha era originais escritos para eu cantar. Isso é que demorou até o Pedro [da Silva Martins] me dizer ‘vou escrever para ti’. E desatou a escrever para mim.
E como é que recebeu essa notícia do ‘vou escrever para ti’?
Como se calhar podes imaginar. Tanto tempo… De vez em quando chegavam-me algumas coisinhas, pessoas que queriam que eu experimentasse esta ou aquela canção, mas nenhuma delas me enchia as medidas. Eu lá me desculpava, ‘se calhar é melhor para ti do que para mim’, ‘não me sinto identificada’. Depois quando o Pedro me disse ‘ainda vou escrever para ti’, respirei assim fundo. [Respira fundo]. Pronto. Já sabia que ele é muito bom. Eu já conhecia o trabalho dele com Deolinda e outros cantores. E fiquei logo muito descansada.
Sei que havia muitas pessoas que tinham saudades de me ouvirem cantar. Os mais velhos acho que sim, que achavam que estava arrumada. Os mais novos nãoAliviada?
Mas inquieta também. Porque depois passaram-se uns meses, um ano, e depois mais outro ano e eu ‘Pedro???? Então, pá?’ [gargalhada] Sim, sim, ainda demorou. Deolinda ainda estava a tocar quando ele me disse isto de ir escrever para mim. Eles ainda tinham concertos para fazer. E o Pedro é muito solicitado para muitas coisas. Tive de esperar mais um pouco até que em 2016 ele me faz o telefonema que foi o arranque disto tudo.
Foi logo uma grande festa?
Sim, foi, foi. Começámos logo no festival da Canção. E foi realmente uma grande festa.
Como é que está a ser este regresso aos originais? Uma azáfama?
Absolutamente extraordinário. Sei que as pessoas estavam à espera há muito tempo. Mesmo agora tinha aí uma data de mensagens dos meus sobrinhos ‘já ouvi o disco todo e adoro. Amanhã vou lá estar em Beja’. Lá está, amanhã não vou com a banda, vou com guitarra e voz, umas coisas faço de vez em quando. Há anos e anos que faço várias coisas diferentes. Amanhã [dia 11 de maio] já vou cantar a ‘Grande Festa’. Está a ser incrível, recebo muitos parabéns, sinceros parabéns, e já percebi que também em termos de rádio, e as pessoas que me têm entrevistado, estão muito contentes. Sei que havia muitas pessoas que tinham saudades de me ouvirem cantar.
Acha que o público já a dava como arrumada?
Isso são os mais velhos. Os mais velhos acho que sim, que achavam que estava arrumada, isso mesmo. Os mais novos não. Os mais novos estão muito mais atentos. E sobretudo nos últimos 15 anos, talvez, tenho sido muito procurada por gerações mais recentes para fazer ‘n’ cenas diferentes. Ciclo Preparatório, Capitães de Areia, Linda Martini, Primeira Dama...Tenho sido muito bem tratada e convidada para fazer cenas com eles. E esses, sim, estão fartinhos de saber [que não estou arrumada]. Atentos.
Quando era realmente jovem não era nada rebelde, era super tímida. Nunca me passou pela cabeça subir a um palco, cantar à frente de pessoas, nuncaE essa diferença de perceções entre os mais velhos e os mais novos deve-se a quê?
Os mais antigos não estão atentos. Porque se estivessem atentos, como eu [gargalhada], andavam com as antenas ligadas, como tenho andado. Tenho vindo a conhecer imensos músicos de novas gerações. Este disco, Desalmadamente, estes arranjos da música do Pedro, foram feitos por um grupo de músicos de uma geração da idade da minha filha. Um dos elementos da banda nem sequer 30 anos tem. E estamos assim, tu cá, tu lá na boa, sem haver esse sentimento de distância por causa da idade. O pessoal da minha idade já está tudo muito caduco, tudo muito gasto, eu é que não [gargalhada prolongada].
Concerto de apresentação de 'Desalmadamente' tem palco no Teatro Villaret, em Lisboa© Universal
Lá está, a Lena d’Água mantém esse espírito jovem. É como se sente?
Fui sempre assim. Tenho um signo que também me ajuda. Sou gémeos. Os gémeos são considerados os eternos adolescentes, um bocadinho amalucados e tudo. A minha filha, ao longo da vida, também se foi queixando: ‘Oh mãe, a sério, porta-te bem’. Ela muitas vezes teve atitude de mãe em relação a uma filha. Isto é uma maneira ser.
Com alguma rebeldia à mistura.
Sim. Mas nem sempre foi assim. Quando era realmente jovem não era nada rebelde, era super tímida. Nunca me passou pela cabeça subir a um palco, cantar à frente de pessoas, nunca. Mas depois isto foi andando, de repente estava no palco e de repente já era a minha vida, a minha vida profissional. Não foi uma escolha consciente. Acabou por acontecer e foi acontecendo.
Falou nos mais jovens e da forma como valorizam a Lena. Reconhece qualidade nas novas gerações de artistas?
Muitíssima. Há muitas miúdas a escrever também. E muitos novos artistas a escrever em português, novamente, o que é ótimo, muito bom.
E é uma viragem face àquilo que foi acontecendo até há pouco …
É muito muito bom. Aquela ilusão de que cantando em inglês podes ir para o estrangeiro é uma ilusão total. Os que saem para o estrangeiro cantam em português. Fora Moonspell, são raríssimos os que saem. Os que saem cantam em português.
Termos vencido o Festival da Eurovisão com uma música em português é prova disso mesmo.
Viste? Lá está, é a tal coisa. Era uma ideia feita que já foi ultrapassada neste momento. E fico muito contente de ouvir tanta gente a cantar em português e a escrever muito bem, letras muito boas em português, é mesmo reconfortante.
E já que falamos em Eurovisão, que opinião tem de Conan Osíris [que entretanto não chegou a ir à final]?
Gosto muito dele. Antes de conhecer o que ele faz artisticamente, conheci-o pessoalmente. E o nosso encontro foi muito especial. Estava ele, estava o João (o bailarino) - que fez ontem [9 de maio] 24 anos, imagine-se. Amorosos. O mesmo tratamento que eu senti em relação aos elementos da gravação do videoclipe (o Guilherme, a Joana, a Carol). Todos eles, super queridos, de quase de devoção. Mas depois uma devoção em que eu não estou num pedestal, não é isso. Tratam-me por tu, na boa, muito próximos.
Então tenho de mudar aqui o meu discurso.
Ouve, há pessoas que não se sentem bem, não me importo. Cheguei a ter um namorado que me tratava por você. E eu tratava-o por tu.
Nós mulheres ainda somos consideradas como as vacas leiteiras e as galinhas dos ovos, servimos para isto e servimos para aquiloEra ali da linha de Cascais?
Sim [gargalhada]. Depois desisti e comecei a tratá-lo por você. Era giro, foi o único namorado com quem tinha esse tratamento, há muitos anos.
A Lena d’Água foi muito namoradeira. Apaixonava-se e apaixonavam-se por si facilmente?
Eu sei de mim. Apaixonei-me imensas vezes na vida. Mal começava a acontecer coisas assim ‘nhãn nhã’ eu dizia ‘xau, adeus’. Nunca fiquei a tentar que a coisa melhorasse, nunca fiz isso.
© Universal. Capa do disco 'Desalmadamente'
Sei que a Lena d’Água não se diz propriamente vítima de violência doméstica, porque nunca deixou que isso acontecesse …
Pois, não, não deixei.
Mas é uma realidade preocupante cá em Portugal. Acha que é um problema cultural?
Sei lá eu, isto acontece tanto no campo como na cidade, gente pobre e com gente rica. Não é só em Portugal. É uma coisa horrível. Nós mulheres ainda somos consideradas como as vacas leiteiras e as galinhas dos ovos, servimos para isto e servimos para aquilo. E ainda há, em muitas cabeças, aquela noção de que somos pouco mais do que coisas. Somos a posse, somos pertença dessas pessoas, por isso é que acontece o que acontece tantas vezes, todos os dias. E agora como se sabe de tudo … eu não sei se está pior do que já foi, eu acho é que agora se sabe tudo. Há 20, as coisas aconteciam de certeza, aconteciam na mesma, mas não se sabia.
Vigorava sobretudo aquela máxima ‘entre marido e mulher não se mete a colher’.
Sim. Era tudo muito escondido. E agora as coisas vêm todas ao cimo. Dia sim, dia não há uma dessas desgraças. Mas eu não, tive aí umas cenas, mas mal isso acontecia, ‘ai é? xau, adeus’.
É por isso que diz que os homens têm medo de si?
Agora já não. Agora também já não se chegam [gargalhada longa]. Eu disse isso há muitos anos. Se calhar.
Tinham medo de si na fase da juventude?
Um bocadinho, sim. A partir de uma certa idade. Fui mãe muito cedo, separei-me também muito cedo. Fiz-me mulher muito cedo. Aos 21 anos estava outra vez na casa dos meus pais.
E já tinha vivido muita coisa até aí.
Sim. E já tinha cantado na banda do Ramiro, o pai da minha filha, durante aqueles dois anos. E de repente já me sentia mais confiante, deixei de corar. Corava imenso no tempo da faculdade. Era horrível, aquela sensação de estar muito encarnada, e quanto mais me sentia encarnada, mais encarnada ficava. Sofri imenso de vergonha por corar tanto. Mas depois isso lá se foi esbatendo. Fui-me chegando à frente e rapidamente percebi que tinha de ser eu, que não podia estar à espera de ninguém, para fazer a minha vida. E fui andando para a frente. Se calhar foi por isso que eu disse que eles tinham medo de mim. Nunca fui aquela dócil menina à procura de noivo ou de marido.
Não procurou mas o que é certo é que encontrou e bem cedo.
A paixão que tive por ele foi absolutamente à primeira vista. Nem sabia que ele era músico, quando nos vimos a primeira vez, eu estava sentada e ele em pé. Eu estava a chorar, ele vinha com cervejas para dar aos amigos, numa grande confusão, numa grande festa de carnaval que eu nem gostava. Estava muito triste por causa de um amigo de infância e aquilo não ia correr nada bem, aliás como não correu nada bem. Estava mesmo muito triste e o Ramiro passa, passa com as cervejas, vê-me naqueles grandes prantos no meio daquela confusão, lágrimas a escorrer, e fica a olhar para mim e eu para ele. Sem saber o que dizer. E o que é que me vem à cabeça perguntar? ‘Qual é o teu signo?’. [gargalhada]. Ele lá disse ‘sou leão e nasci nas montanhas’(…) Bora lá para fora’. Então lá fui, atrás dele, ainda a limpar as lágrimas. Chegámos lá fora, e no jardim estavam os amigos dele e os meus, e havia amigos em comum. Sem nós sabermos, os nossos amigos já estavam cruzados. E só depois, nesse momento, é que fiquei a saber que ele estava a reformar uma banda, que ele era viola-baixo.
E nessa altura tinha quantos anos?
Tinha 18 anos. E ele tinha 20.
Foi uma paixão literalmente à primeira vista.
O nosso encontro foi mesmo inesquecível. Passado um mês e uns dias, eu estava à espera de bebé. Disse-lhe ‘vou deixar de tomar a pílula, porque não quero evitar, é tão incrível o que se está aqui a passar entre nós’. Aquela coisa dos 18 anos … Ah, príncipe. E foi durante algum tempo.
E nunca se arrependeu?
Não, não. Depois a filha nasceu no último dia do ano, no dia 31 de dezembro de 1975. E eu entrei na banda, a cantar, a fazer coros na banda dele, em maio de 76. Está agora a fazer anos que entrei nos Beatnicks, no mês e no ano em que nasceu o Pedro da Silva Martins.
É boa com datas, estou a ver.
Isto é dos gémeos, ascendente de escorpião, não esquecer.
Durante muitos anos, achava que a minha vida estava a ser tão fácil. Mas parecia que previa alguma coisa de grave e de trágica iria acontecer
De que forma é que os contratempos que teve na vida, nomeadamente o consumo de drogas, condicionaram ou marcaram a Lena d’Água que está aqui à minha frente?
Durante muitos anos, achava que a minha vida estava a ser tão fácil. Apesar de me ter separado bastante cedo, e isso também não foi fácil. Mas parecia que previa alguma coisa de grave e de trágica iria acontecer. O Manel, esse meu amigo pelo qual eu estava a chorar naquela festa de Carnaval em que conheci o Ramiro, acabou por morrer nem um ano depois, já por causa das drogas duras. Por isso, mantive-me longe disso até ter 33 anos e achar que já podia experimentar. Aquele namorado que tive que me disse ‘se quiseres experimentar….’. Eu achei que sim, que podia. Burra, que aquilo não é coisa que se experimente. É muito perigoso e é muito rápido uma pessoa ficar adicta. Depois aquilo não serve para teres mocas.
Não? Qual é o efeito?
Alguém me perguntava, estes dias, como é que é a moca. E eu disse ‘mas qual moca?’ Aquilo [heroína] não dá moca. Tu experimentas e é como se fosse um analgésico que serve para o físico e para aliviar preocupações. É como o ópio. Parece que não tens problemas nenhuns. Só que rapidamente não consegues fazer nada sem fumares aquilo. Nunca me meti em agulhas, isso é preciso ser dito, aquilo fuma-se em prata, nem era charros. Rapidamente precisas daquilo, não é para teres moca, é para não teres sofrimento.
Essa minha passagem [pelas drogas duras] fez-me conhecer um mundo que só conhece quem passa por aquiloComo é que descreve esse sofrimento?
É um sofrimento de todos os géneros. É horrível. Aquilo depois serve-te para fazeres a vida normal. O sofrimento físico é horrível, meu. (‘Meu’, pareço o Conan a falar. Por isso é que gosto do Conan. Também falo assim, apesar de ter o dobro da idade dele. É um bocadinho como o Salvador, sinto-me irmã do Salvador. Também é aquele género de pessoas espontâneas. E o Janeiro. Estou mesmo contente por esta renovação).
Essa minha passagem [pelas drogas duras] fez-me conhecer um mundo que só conhece quem passa por aquilo, é um mundo bastante trágico, mas do qual eu consegui, com algum esforço, sair. É muito difícil, muito difícil.
Quanto tempo depois é que conseguiu deixar esse mundo?
Uma data deles. Houve várias fases, porque parei e depois retomei. Há recaídas. Mas entre a primeira e a última, foram nove anos. Mas a penúltima tinha sido no ano antes. Eu costumo dizer nove anos, mas não foi sempre. Houve fases a meio em que parei e usei a metadona. Estive dois anos nesse período sem consumir heroína porque estava com a metadona. Não era necessário, não sofria, não tinha esticões. Que horror. Eu nem quero falar do que aquilo provoca. É horrível, é horrível. Mas pronto, já passaram 20 anos que eu fechei essa porta e ficou muito bem fechada.
Se pudesse deixar um conselho a quem está neste momento a achar que pode experimentar, o que diria?
É não experimentar. Não vale a pena, bem pelo contrário. Não tem nada a ver com charros. A experimentar erva ou haxixe, não é que esteja aqui a fazer propaganda, não corres risco de vida. E com este tipo de coisa [drogas pesadas], sim. Por isso, não vale a pena experimentar. A melhor campanha anti-heroína foram os arrumadores, não foram os cartazes. São os arrumadores com aquele ar todo desgraçado, todos desfeitos, a arrastarem-se. Isso para mim é que foi a grande campanha para as pessoas não se meterem naquilo. É o fim. É o fim para muitos. Aliás, hoje em dia já se veem cada vez menos. Acho que diminuiu o consumo dessa droga em Portugal. É o que me parece. E ainda bem.
É um caminho que não vale a pena trilhar.
Não, não. Há outras coisas para fazer.
A Lena d’Água é famosa literalmente desde o dia em que nasceu.
Sim, sim, Por causa do meu pai [José Águas, capitão do Benfica]. Saiu a notícia no jornal, do nascimento.
Que memórias guarda da infância?
Tenho imensas memórias do bairro de Santa Cruz, e Benfica, das bandeiras do Benfica, de termos ido todos viver para Viena de Áustria, tinha eu sete anos. Depois do Benfica, o meu pai jogou um ano fora. E fomos, eu, os meus irmãos, a avó Sara, fomos todos para Viena. E como já andava na escola, tenho imensas memórias dos elétricos vermelhos de três carruagens, de ver as senhoras com trelas a passearem os gatos no relvado ao lado do rio, tenho imensas memórias.
[O relógio, ditador, manda que interrompamos a entrevista para seguir para outro ponto da cidade, onde Lena d’Água tem outro compromisso marcado. A conversa segue no carro, até ao destino da próxima entrevista, porque tempo é coisa rara.]
Falávamos das memórias em Viana de Áustria …
… as cassatas, gelados que ia comer em certos dias quando o meu pai meia buscar à escola, a neve, os dias que no verão começavam com o sol a nascer às 3h, 4 h e tal da manhã. A salamandra da sala, o piano… havia um piano, se não era cauda, era meia cauda. Sentava-me ao piano e tocava, sem saber nada. Tenho imensas memórias de Viena. Os pequenos cantores de Viena, fui ver, fiquei encantada, eram só rapazinhos, mas tinham a minha idade. Fiquei embevecida com aquilo. Foi uma coisa muito importante para mim, ter estado lá e ter assistido a esse espetáculo, missa cantada, qualquer coisa assim. Os cantores de Viena foi uma coisa assim incrível.
E já sentia uma ligação especial à música nessa altura?
Claro que sim. Herdei do meu pai. Ele não tocava nenhum instrumento, mas cantava muito bem. E gostava imenso de música, comprava discos. Gostava muito do Frank Sinatra, do Tony de Matos … E a minha mãe também. Tínhamos gira-discos, havia música na telefonia que estava quase sempre ligada. A música era uma presença constante na nossa casa.
A Lena d’Água foi também catequista, pelo que li.
Pois fui, era muito bem comportada.
E hoje em dia, a fé ainda é a mesma?
Sim, sim. Basicamente. O meu mestre é Jesus Cristo. Sou menos da Igreja do que sou de Jesus. Mas gosto muito deste Papa.
E vai à missa?
Não. Sou de Jesus não sou da Igreja. Só passo na Igreja para conhecer, para visitar, ou quando morre alguma pessoa chegada. Habitualmente não vou à missa. A minha celebração é na natureza. É aí que me sinto mais próxima de Deus e da espiritualidade. É mais cá fora do que dentro de paredes de uma igreja.
Que características tem este Papa que o tornam tão popular?
É mais humano, tem muita coragem. Tem posto o dedo na ferida. Esta história toda dos abusos a menores … que coisa horrível. E ele não desiste de trazer esses tipos todos à tona, para que toda a gente saiba quem são, quem foram, o que fizeram. É preciso muita coragem. Só espero que ele se aguente sem ninguém lhe limpar o sebo. Mas acho que sim, que ele se vai aguentar. Há imensa gente que o ama muito e que gosta muito dele, acho que ele tem essa proteção.
Os portugueses sabem tratar bem os seus artistas?
[Risos]. Não sei.
Tem-na tratado bem a si?
Sim, não me posso queixar muito. Há momentos em que é difícil, somos recibos verdes a vida toda. Somos sempre, teatro, música. Não há ordenados, não há subsídios de férias, nem de alimentação. Mas não é impossível.
Tiraram-me a carta de condução porque me tinha esquecido de a revalidar quando fiz 60 anos. Mandaram-me parar e trataram-me como uma bandida. E depois foi o 'está na miséria'
A Lena também passou por uma situação mais complicada a nível de falta de dinheiro …
A falta de dinheiro já existe há 20 anos. Aquilo não foi pontual, deu muito nas vistas, foi um grande desabafo. Fiquei tão revoltada com aquilo.
A que momento se refere?
Tiraram-me a carta de condução porque me tinha esquecido de a revalidar quando fiz 60 anos. Mandaram-me parar e trataram-me como uma bandida. Era de noite, já eram 18h30, era novembro, queriam que fosse a pé para casa, em vez de me dizerem ‘a senhora veja lá, já fez 60 anos, tem de revalidar a carta’. Não. A multa 120 paus e a apreensão da carta. Estava a 2km de casa e queriam que fosse a pé. Senti-me tão revoltada, tão chateada, tão magoada, tão triste que me apetecia gritar. Só que depois eles foram embora, eu meti-me no carro e fui para casa. Aquilo foi tudo tão estúpido, senti-me mesmo maltratada. Não que tivesse de ser tratada de forma diferente por ser a Lena d’Água, não, eles nem devem ter reparado, eram rapazes novos, não deviam saber. Mas uma mulher de 60 anos, a ser tratada desta forma … Aquilo era num sítio escuro, numa curva. Pareciam uns bandidos, escondidos à espera para assaltar. Fiquei mesmo lixada. E toda a gente viu. E depois foi o ‘está na miséria’.
Isso chegou a ir parar às revistas?
Ah, pois, tu não vês essas revistas que de cor de rosa têm pouco. É mais faca e alguidar. Aquilo é sempre uma grande desgraça. Houve ainda pessoas que me ligaram. E eu tinha de explicar. ‘Calma’. Estava super chateada e aquilo apanha-me numa fase … Nós vivemos anos e anos em dificuldades, regra geral, a maior parte dos artistas vive com dificuldades, depois há um mês ou dois em que tens mais trabalho, lá a coisa equilibra, mas depois está outros dois ou três meses sem trabalhar, e é difícil. Nessa altura, naquele novembro, havia algumas coisas que estavam para ser confirmadas, e que foram confirmadas, entre as quais o fim do ano no Terreiro do Paço, com imensos cantores e cantoras dos anos 80 e 90. E aquilo parecia que estavam à espera que eu me passasse dos carretos. E as coisas depois começam a confirmar-se, mas não foi pelo meu desabafo. Calhou. Foi o fim do ano, o Casino de Espinho, etc. De maneira que depois passou aquela aflição. Mas sobretudo aí, sim, senti-me maltratada. Não por ser a Lena d’Água. Ninguém está habituado a fazer 60 anos, não é?
Houve pessoas que acharam mesmo que queria vender o colchão. Fiz uma cena dramática. Sou artista e um artista tem de saber puxar pela sua veia criativa e de expressãoFoi a primeira vez.
Eu pelo menos não estava habituada. Foi a primeira vez. (risos). Como tinha trocado de morada pouco tempo antes, estava convencida que tinha de voltar a mexer na carta daí a uns anitos. Mas só que os 60 acontecem pouco tempo depois de eu ter feito uma carta nova.Agora não me posso esquecer é do cartão de cidadão, que tenho de renovar em junho, se não ainda vou presa.
Mas aquilo para mim foi… eu preocupada que o trabalho ainda não estava confirmado, o ano a chegar ao fim, e aqueles tipos trataram-me como eu acho que não merecia ter sido tratada. Foi por isso que fiz os posts no Facebook a dizer que vendo as minhas botas, que vendo o colchão. Houve pessoas que acharam mesmo que queria vender o colchão. Fiz uma cena dramática. Sou artista e um artista tem de saber puxar pela sua veia criativa e de expressão.
Agora com 'Desalmadamente' espera ganhar estabilidade financeira?
Espero bem. Pelo menos, durante uns tempos. Porque isto é sempre assim, sazonal. Mas sim, com certeza. Estamos à espera de confirmações de concertos, porque são os concertos que nos pagam as contas, que nos pagam a ração dos cães, dos gatos e do carro. Os discos servem para mostrar as novidades que se vão fazer.
Estas dez canções são praticamente autobiográficas. O Pedro topou-me muito bem e escreveu coisas que me definem profundamenteQue significado tem este novo disco na vida da Lena?
Há anos que me perguntam quando é que faço a minha autobiografia. E estas dez canções são praticamente autobiográficas. O Pedro topou-me muito bem e escreveu coisas que me definem profundamente. Ainda não escrevi o livro, mas o disco autobiográfico é este.
É como que uma ressurreição?
Se calhar. Para vocês. Para mim é um pouco diferente, porque sempre me senti viva, nunca me senti morta. Mas para muita gente que me deixou de ver, talvez seja. Como costumo dizer, andei no trânsito local e agora estão os jornais, as revistas, as televisões a falar das novas canções. Era isso que me faltava, as novas canções. E eu preferi sempre esperar por novas canções que fizessem justiça ao meu passado, àquilo que eu já gravei e que foram coisas tão boas. Não podia estar a aceitar algumas coisas.
Que seriam desprestigiantes?
Mais valia não. É como arranjar um namorado assim assim só para ter um namorado. Prefiro não ter namorado nenhum. Aliás, é assim que eu ando já há uma data de tempo (risos). Para ter uma coisa mais ou menos, mais vale não ter.
E foi por isso que o público não a foi vendo nos grandes palcos ...
Os palcos por onde andei não eram muito grandes. Estás a falar da música 'Minutos'?
Sim. "Faltam dois minutos para entrar, a cortina vai levantar, se há gente ali não sei, sei que nunca esperei ninguém, sei que nunca esperei ninguém, e os espelhos já não sorriem, oiço a voz que há dentro de mim (...)"
Na Damaia, uma vez, para 30 pessoas. E em Coimbra também. Uma programação mal feita. Nós a tocar, uma super banda de pop/jazz (com músicos de jazz mas as músicas são pop), que é lindo, e tínhamos lá 30 pessoas. Isso aconteceu várias vezes. Como deves imaginar, é um bocadinho chato. Sobretudo quando o nosso cachet depende da venda de bilhetes. Há outros sítios em que isso não acontece, em que o cachet é fixo, independentemente do número de pessoas. Há outros sítios em que depende das entradas. É chato porque estás a cantar para poucas pessoas e também é chato porque não levas dinheiro para casa. Isso acontece a muitos de nós.
Guarda alguma mágoa do passado?
Não. Estou completamente em paz com o meu passado. E também não tinha motivo para guardar alguma mágoa do passado. Praticamente sempre fiz o que achei que devia fazer, raramente fui obrigada a fazer isto ou aquilo, raramente fui obrigada a fazer alguma coisa que não me apetecia fazer. Tive sempre essa liberdade de escolher praticamente desde sempre. Houve uma outra coisa que tinha de ser, mas de resto, mandei muito na minha vida, tive essa vantagem, muitas pessoas não se podem gabar disso. No trabalho artístico, se não tiveres o mínimo de liberdade para expressares a tua alma, o trabalho nunca sai como é bom.
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