“Este não é um disco de contestação, é um disco de constatação”
Adriana Calcanhotto é a entrevistada de hoje do Vozes ao Minuto.
© Murilo Alvesso
Cultura Adriana Calcanhotto
Aos 53 anos, Adriana Calcanhotto volta a lançar mais um álbum. O terceiro de uma trilogia dedicada ao mar, elemento que simboliza, para a cantora, e para as artes em geral, a dinâmica da vida, as transformações e o renascimento.
Com ‘Margem’, que vai ser lançado esta sexta-feira, dia 7 de junho, a artista traz ritmos brasileiros, a que já nos habituou, e mistura-os com bossa nova, samba contemporâneo, batuques baianos, samba de roda, sem nunca esquecer os sons que nos trazem à memória a proximidade do mar.
A essência está lá, mas a cantora trouxe do outro lado do Atlântico também novidades. Nega que ‘Margem’ seja um disco de contestação, mas reconhece várias problemáticas nele. A capa do álbum é um dos exemplos. Adriana Calcanhotto surge rodeada por um autêntico mar de plástico. Já no videoclipe que dá título ao álbum despe-se de preconceitos e pré-conceitos e rapa o cabelo, enquanto aparece em grande plano. Ali aparece ela e apenas ela, enfrentando uma câmara, num momento íntimo e natural, sem artifícios.
Do que se quer manter à margem é do que se passa, a nível político, no Brasil. Ao Notícias ao Minuto, a artista revelou que, apesar de acompanhar atualidade, cada vez se identifica menos com a realidade da Terra de Vera Cruz. A sua realidade é outra. É a que vive há quase quatro anos em Portugal. Em 2015, foi convidada para ser embaixadora da Universidade de Coimbra e lá lecionar o curso Como escrever canções. Desde essa altura, que Adriana Calcanhotto navega entre o Rio de Janeiro e Coimbra. Algo que admite ser um autêntico “presente”.
Para já, antes que outro ano letivo comece, vai cruzar outros mares. Depois de apresentar ‘Margem’ no Brasil, segue em digressão pelo Japão e pelos EUA. A viagem continua mais tarde pela Europa e chega a Portugal já no outono, com dois concertos que promete serem marcantes. A 16 de novembro em Lisboa e a 19 no Porto.
Dia 7 de junho lança mais um álbum, desta vez, a partir de Portugal. Porquê o nome 'Margem'?
Porque este é o terceiro álbum da trilogia marinha. O primeiro chama-se ‘Marítimo’, o segundo ‘Maré’. Quando estava a lançar ‘Maré’ veio-me o nome ‘Margem’ porque, devido à maré, a margem não é fixa. Nós todos viemos do mar e todos temos este gene marinho. Além disso, sou uma pessoa que gosta do mar. Não desse mar da praia, mas do mar dos barcos, do mar literário, mar da Odisseia, o mar dos Lusíadas. A 'Margem' tem também a ver com a condição marginal, que é a condição de qualquer artista.
Este disco contém o samba, que é a maneira como o meu ouvido entende o mundoComo já nos habituou noutros trabalhos, este disco mistura vários ritmos. Há bossa nova, samba contemporâneo, ritmos baianos, samba de roda e até sons que relacionamos com o mar. Em que é que 'Margem' difere dos outros?
Nesse sentido nada de novo (risos). Todas essas batidas que você falou, no fundo, são samba. E este disco contém o samba, que é a maneira como o meu ouvido entende o mundo. Qualquer coisa, qualquer célula, qualquer barulho que seja repetido, como uma máquina de lavar roupa, uma máquina de lavar loiça, um autocarro, qualquer coisa assim, o meu ouvido sempre entende como samba e é nesse sentido, que todas essas batidas, se você prestar bem atenção elas são samba.
O ‘Margem’ encerra também a trilogia dedicada ao mar, iniciada em 1998, com ‘Marítimo’, e prolongada com ‘Maré, lançado em 2008. Presumo que o mar a inspira. Que importância tem para si este elemento?
O mar, enquanto metáfora da condição humana, é uma coisa que me interessa muito na literatura. Toda a literatura de mar, todos esses clássicos são livros que não se pode ler uma vez só na vida. São livros para reler e, ao ler uma segunda ou terceira vez, o livro nunca é o mesmo, porque nós nunca mais somos os mesmos. Quando voltamos a ler estes livros eles já são outra coisa, porque nós somos já outra coisa. E todas essas coisas da onda, a onda vai e vem, a maré vai e vem, é um sentido de que as coisas se dão em ciclos, que as coisas vão e voltam e isso é o importante de entender. É uma coisa que o amadurecimento vai dando. Quando somos mais jovens, é ‘meu Deus! Isso aconteceu’, mas depois percebemos que aquilo re-acontece, aquilo volta de outra maneira, aquilo vai e vem, e vamos entendendo isso aos poucos. E quando prestamos atenção no mar, das diferentes formas - física, metafísica, poética - todas essas regras, todas essas coisas que regem o mar são as coisas da vida e quanto mais nos aproximamos dessas ideias, mais suave fica de entender as coisas da vida.
Na capa do álbum aparece no meio de um mar de plástico. Que mensagem quer transmitir?
Porque é assim que está o mar hoje. Hoje para mim não fazia sentido fazer uma capa onde eu apareço num mar transparente, num mar idílico. Este não é um disco de contestação, é um disco de constatação, esta é a situação dos mares hoje. É evidente que vai encontrar uma ou outra praia que não esteja assim, mas grande parte dessas praias, inclusive, têm dono. Porque é que o mar está assim? Quem é que produz essa condição para os mares? Somos nós, então, não tem metáfora nisso, é a realidade.
A música 'Ogunté' aborda várias questões sociais. Fala do plástico do mundo, das 'crianças encalhadas na costa de Lesbos, enquanto vendem pacotes de cruzeiros pelas ilhas gregas… Acha que a música é uma boa forma de abordar estas questões? De chamar a atenção das pessoas, das instituições e dos Estados para estas problemáticas?
Espero que sim, porque aquela imagem que tivemos daquele menino turco, encalhado numa praia, foi chocante, mas depois viu-se outras coisas e aquilo foi ficando banalizado, porque nós vemos imagens cada vez mais terríveis. Espero que através da música isso tenha outro impacto, que não é o impacto dos sites de notícias. Deus queira que eu esteja certa e isso, passando para a música, passe para as pessoas, para um outro lugar no cérebro e que isso tenha algum impacto. Aquela foto [do fotógrafo português Mário Cruz, tirada nas Filipinas e premiada pelo World Press Photo] não é uma pintura, ele não inventou aquilo, aquilo é um instantâneo, é um momento do mundo agora. Claro que há o ponto de vista de um grande artista, mas é aquilo, ele não inventou aquilo, aquilo não é um menino que está a posar para uma foto.
Já o videoclipe da música que dá título ao álbum ‘Margem’, parece mais íntimo. Rapa o cabelo… fala do ego, de si, surge em grande plano e como único foco. O que quis transmitir com esta música? Com este vídeo?
Surgiu devido a duas coisas. Primeiro, o meu cabelo estava horrível para fazer um clipe (risos), não dava! Segundo, a canção tem a ver com essa coisa da identidade, quem sou eu, como é que a gente responde a essa pergunta? De forma muito condicionada, muito automática. A ideia de tirar do piloto automático essa resposta, ou seja, tiro a questão geográfica, tiro a minha origem, tiro o meu nome, tiro de onde eu venho, tiro os meus pais, tiro a minha profissão, tiro o meu género, tiro os meus ideais, tiro as minhas ideias, os meus condicionamentos, tiro o meu passaporte, vou limpando isso tudo, o que é que vai restando? Claro que tudo isso não cabe numa canção, mas a canção sugere isso. E como o meu cabelo estava impossível para fazer um clipe, decidi fazê-lo.
E como é que foi feito esse videoclipe?
Aquele menino, Murilo Alvesso, que é mais novo que eu, tem comigo um gosto comum em relação ao cinema, pelo mesmo tipo de coisa, pelo mesmo tipo de cineasta, pelos mesmos filmes, pelas mesmas ideias do cinema, do que venha a ser cinema. Nós não gostamos muito de truques cinematográficos, então esse nosso encontro permitiu uma liberdade, de ambos os lados, para fazer uma coisa como aquela. Porque não é a câmara que captura aquele momento, é quem está atrás da câmara que pode passar o que está a acontecer naquele momento. Aquele plano tem uma sequência de 20 minutos. Depois ele editou, mas são 20 minutos em que estamos ali, um dando para o outro alguma coisa e, parece que eu estou a dizer uma banalidade aqui, mas este tipo de encontro não é tão fácil de acontecer. É muito íntimo e natural. É aquele plano. Depois de rapar o cabelo não dá para fazer de novo, não dá para gravar um take 2, não tem take 2, então isso é que é uma confiança de ambos os lados. Começou, começou.
Já tinha trabalhado com ele anteriormente?
Tínhamos só feito o clipe de 'Ogunté' que, esse sim, foi ele que planeou tudo. Fui lá e fiz o que ele mandou. Eu gosto muito de ser dirigida. Adoro quando um realizador sabe o que quer e eu vou lá e me entrego. Depois fizemos o 'Marge', que é outro nível de entrega, é um diálogo, diremos assim. Tem entrega dos dois lados. Quer dizer, o outro também tem, mas é uma posição de o diretor manda e eu obedeço. E no Margem não, a gente está num diálogo.
Falo isso muitas vezes isso para os meus alunos e eles agradecem. Essa ideia de 'ah e tal estou com uma branca e não estou a conseguir'. Deixa, não força, esquece isso, vai para outra canção, vai fazer uma caminhada e aí, aquilo sai naturalmenteAlém da música, a literatura e a poesia assumem na sua vida um grande protagonismo. Mas algum assume um papel principal?
Isso muda um pouquinho. Não é fixo. Às vezes, a poesia está um pouquinho mais importante, tem um pouquinho de mais protagonismo. Outras vezes é a música que está na frente, não é que seja mais importante, mas eu estou mais dedicada de alguma maneira. Às vezes é a filosofia. Depende muito e isso é bom no sentido que, se a música está mais importante agora, tem um relaxamento, um decantamento das outras coisas.
E assim também não cai em rotinas, verdade?
Exato, as coisas precisam de tempo. Eu acredito muito nisso e falo isso muitas vezes isso para os meus alunos e eles agradecem. Essa ideia de 'ah e tal estou com uma branca e não estou a conseguir'. Deixa, não força, esquece isso, vai para outra canção, vai fazer uma caminhada e aí, aquilo sai naturalmente.
Em 2015, foi nomeada embaixadora da Universidade de Coimbra. Ainda dá aulas por lá? E que o que leciona?
Dou sim, o meu curso terminou há cerca de duas semanas. E para o ano volto. A universidade pediu-me um curso que se chama Como escrever canções. E é um presente para mim. Foram eles que determinaram esse nome, que determinaram o tamanho da turma, que determinaram uma série de coisas. Se tenho de ensinar como escrever canções, tenho de aprender, tenho de estudar sobre como escrever canções e isso é uma coisa que tem sido maravilhosa para mim, estudar sobre isso, aprender sobre isso, aprender com eles. Ensino aos meus alunos, portanto, aprendo também. É uma coisa maravilhosa. Para entrar no curso não precisa ter nenhuma formação anterior sobre nada. Tenho alunos que fizeram conservatório, tenho alunos que escrevem, fizeram cursos diferentes, de escrita criativa, mas também tenho juízes, engenheiros, enfim, psicólogos. O essencial é que estejam interessados na escrita de canções. Este ano, tive um rapaz muito interessante, que entrou no curso porque faz critica de canção, critica de música, critica de álbuns. Achei isso tão interessante, nunca tinha pensado sobre isso, que podia haver esse tipo de alunos. E ele revelou-se um compositor. E é isso. O curso tem de tudo e isso é muito bom. No fim, eles revelam-se escritores criativos, músicos, compositores, aprendem coisas, alguns muito tímidos até se desinibem.
Como é que surgiu o ensino na sua vida? Já tinha dado aulas antes? Gosta de ser professora?
Nunca. Não tinha ideia, nem pensava nisso, embora venha de uma família de professores, não pensava nisso. Muito antes pelo contrário. Abandonei a escola para viver a minha aventura musical. Nem fiz faculdade. Mas não me arrependo de ter entrado nesta aventura porque é uma maneira de estudar. Como tenho o compromisso do curso, tenho de abrir espaço na minha vida para estudar como escrever canções. É um presente que a universidade me deu.
Vive permanentemente em Portugal, ou entre Coimbra e o Rio de Janeiro?
Ainda vivo no Brasil, a minha casa está lá e venho para Portugal para dar aulas em Coimbra. E fico lá e cá...
Quais as principais diferenças entre viver no Brasil e em Portugal?
Tem coisas muito diferentes. Em Portugal, apesar de ter um lado que não é Europa, que é Portugal e não Europa, tem um lado que é Europa. E o Brasil não é nada disso. O Brasil é outra coisa. Então eu aproveito as diferenças e desfruto dessa diferença.
Eu preciso do Carnaval, de assistir, ouvir as batidas, ouvir os sambas, ver o que é que acontece e aí alimentada do Carnaval eu venho e começo o cursoE que diferenças são essas?
As diferenças mais acentuadas para começar são climáticas, mas também há diferenças culturais. Eu combinei com a Universidade de Coimbra que só chego aqui depois do Carnaval, seja quando for o Carnaval lá. O Carnaval para mim é importante porque é cultural, é importante para mim assistir ao Carnaval lá porque tem imensa matéria-prima. Eu preciso do Carnaval, de assistir, ouvir as batidas, ouvir os sambas, ver o que é que acontece e aí alimentada do Carnaval eu venho e começo o curso.
Como é que tem sido acompanhar, a partir de Portugal, o atribulado último ano no Brasil? Com Jair Bolsonaro no poder e o aumento da insegurança e da violência…
Quando estou aqui [Portugal], não fico com vontade de estar lá e vice-versa. Vejo que o que o Brasil quer agora, demonstra querer agora, com isso eu não me identifico tanto. Então, eu acompanho, leio certas coisas, mas não com tanto interesse como já tive. Apenas acompanho.
E como é que tem sido a estadia por Portugal?
Com a minha estadia em Coimbra tenho aproveitado para estudar sobre uma coisa que sempre me interessou muito, que é a época romana. E tenho estudado o Portugal romano, porque acho muito interessante esse legado. A arquitetura, a tecnologia do vinho, como é que o vinho começou a ser feito em Portugal, que é por causa do exército romano. A tolerância religiosa, enfim, muitas coisas do legado romano me interessam. Então tenho feito algumas aulas, porque não consigo fazer o curso inteiro. Além disso, às vezes vou para algumas aldeias, onde tem ruínas romanas, com o professor Pedro Carvalho. Aliás, acompanho um projeto de escavação em Idanha-a-Velha do qual sou madrinha. Idanha-a-Velha é uma aldeia impressionante. Uma coisa que eu não conhecia é a vida numa aldeia que tem ruínas, tanto da Idade Média, como da época romana, e essas ruínas estão na vida das pessoas. As pessoas pegam numa pedra de uma torre templária e colocam os vasos de plantas em cima, ou seja, esses vestígios, das civilizações mais antigas estão na vida das pessoas e não num museu. Estão na vida das pessoas e isso é uma coisa que sempre que eu vou lá fico cada vez mais impressionada. Até a muralha da cidade é feita com pedaços de pedras com inscrições funerárias em latim. E é assim que são feitas as coisas e só isso, estar lá e ver essa muralha, aquelas pedra do jeito que são encaixadas, com pedras de templos diferentes, isso já é uma aula, é uma coisa impressionante para mim.
Na América do Sul, não temos esse tipo de arqueologia, temos um outro tipo. De cinco mil anos e, na Argentina, há vestígios de dinossauros, mas essa civilização romana, e eu me chamo Calcanhotto e talvez não seja à toa este meu interesse pela civilização romana, é muito forte para mim e tenho o privilégio de ter o professor Pedro, uma pessoa que adora transmitir todo esse conhecimento que ele tem. Tenho aprendido muito com ele. Então, alguns fins de semana que podemos, que a minha agenda dá e que a dele também, vamos para as aldeias ver as ruínas romanas.
A música portuguesa que mais amo é o fado porque é uma música que tem uma identidade únicaE quanto à música portuguesa? Ouve alguma banda, tem algum estilo preferido?
A música portuguesa que mais amo é o fado porque é uma música que tem uma identidade única. É uma coisa que eu não consigo entender, musicalmente não consigo raciocinar. As harmonias, as melodias que a guitarra portuguesa pode fazer. É uma coisa que para mim é sempre um fascínio. A ideia de que pode mudar os poemas dentro da mesma melodia é uma coisa para mim inacreditável. O poder que isso tem e Amália utilizou isso muito, tira uma letra de um poeta e põe Camões. É um processo assim, uma operação simples, mas eu acho inacreditável. Não conheço muito do fado de Coimbra porque ele tem essa fama de não ser muito feminino, vamos dizer assim, mas acho o fado uma coisa, uma tradução do mundo português, do Portugal profundo, incrível.
Quando são os próximos concertos?
Aqui em Portugal é dia 16 de novembro, em Lisboa, e no dia 19 de novembro, no Porto. O concerto não existe, ainda vou pensar nele. O que eu sei é que a trilogia do mar pode conversar, o reportório da trilogia pode estar junto, assim como alguns êxitos e provavelmente mais alguma coisa que não é da trilogia, mas que é relativa às canções do mar.
Mas vai apresentá-lo antes no Brasil?
Sim, antes vou passar pelo Brasil. E este novo disco vai fazer uma longa digressão. Vamos ao Japão, EUA, Europa. Vamos fazer muitos concertos porque depois, em março, volto para Coimbra. Eu preciso de organizar as coisas assim: quando estou no modo Coimbra, precisa ser Coimbra e quando estou no modo concertos e canções ser apenas isso e palco.
E já está a pensar num novo trabalho?
Não, agora não, porque tenho o privilégio de poder, neste momento, pensar um concerto com todo este universo das canções de mar. É uma grande coisa para pensar. Pode ser que saia, como é comum, assim por inércia, estar com a guitarra e que surja uma ou outra coisa nova. Pode ser! Não é improvável! Mas pensar um álbum, um conceito novo, é difícil.
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