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"Soluções para cargos da UE são desastrosas. Caiu uma ilusão e uma farsa"

José Gusmão, eurodeputado do Bloco de Esquerda, é o entrevistado de hoje do Vozes ao Minuto.

"Soluções para cargos da UE são desastrosas. Caiu uma ilusão e uma farsa"
Notícias ao Minuto

05/07/19 por Melissa Lopes

Política Bloco de Esquerda

José Gusmão cresceu numa família comunista em que a política era servida ao almoço e ao jantar. Mas isso, garante em entrevista ao Notícias ao Minuto, não o pressionou a trilhar um percurso partidário. Pouco depois de atingir a maioridade, inscreveu-se no PCP de onde saíra, "sem ressentimentos", cerca de sete anos depois, por não querer estar num partido onde não reina a democracia. Encontrou, mais tarde, o seu lugar no Bloco de Esquerda, uma força política "consolidada" que considera ter passado o "teste da infância".

A 26 de maio, os eleitores carimbaram-lhe 'passaporte' para o Parlamento Europeu onde faz agora dupla com Marisa Matias. José Gusmão avisa que a União Europeia não aprendeu nada com a crise financeira e que  por isso não está preparada para outra. "E a janela de oportunidade" para alterar isso é "muito apertada", diz. 

Como é que viveu a noite em que se confirmou a sua eleição para o Parlamento Europeu?

Quando chegámos à noite eleitoral estávamos bastante confiantes de que iríamos aumentar a representação. O grande fator de incerteza era a eleição do Sérgio Aires, que sempre achei muito improvável. Foi uma noite de festa esperada. Não estivemos muito ansiosos. Estávamos mais ou menos à espera do que veio a acontecer. Sobretudo porque na última semana de campanha era muito evidente que o Bloco estava a crescer. Na última semana fizemos mais ações de rua e foi aí que percebemos que o aumento da representação era altamente provável.

Este mês no Parlamento Europeu é basicamente de apresentações como nos primeiros dias na escola?

[Risos] Sim. Tem essa componente. Aliás, o Parlamento até organiza assim uma espécie de festas de caloiros.

E há praxes?

[Risos] Não. De qualquer forma, ainda não fui a nenhuma. Mas este primeiro mês é sobretudo de organização do grupo, das várias delegações.Houve muitas transformações na Esquerda, entraram algumas delegações para o grupo, saíram outras por não eleição. Estamos a conhecer-nos e a discutir as questões de organização do grupo e as pastas que cada um irá ter dentro do grupo.

E as suas quais irão ser?

Ainda não está definido. Mas serão certamente na área da economia, emprego, direitos sociais, por aí.

Desde o dia das eleições até os eurodeputados efetivamente começarem a trabalhar nos dossiers, quanto tempo decorre?

A tomada de posse [que foi esta terça-feira] é a primeira sessão plenária do Parlamento Europeu. Ao longo de julho, voltará a haver reuniões de grupos e depois um novo plenário em que os deputados serão distribuídos por comissões. E, portanto, este mês é praticamente todo para constituir os organismos do Parlamento Europeu. O trabalho a sério começa em setembro.

Escolha dos titulares para os principais cargos da UE representa uma vitória da direita, da extrema-direita e do eixo franco-alemão

A Marisa Matias candidatou-se à presidência do grupo da Esquerda Unitária, sendo que o PCP ajudou a que não existisse o tal consenso que era necessário. Como é que vê essa posição do partido? Pode ser considerada uma deslealdade ou não chega a sê-lo?

Não me leve a mal, mas não vou dizer nada sobre esse processo. É um processo interno do grupo que está em curso. Foi encontrada uma solução provisória para assegurar a representação do grupo enquanto não encontramos uma solução. Essa equipa provisória terá também essa função de trabalhar uma solução que possa assegurar a representação do grupo e está em funções até meados de julho para fazer uma proposta ao grupo. É como estamos. Sobre o resto, prefiro mesmo não me pronunciar.

Nessa nova proposta, a Marisa irá novamente apresentar-se?

Como sempre dissemos, a Marisa estará disponível para qualquer solução que venha a ser encontrada. Obviamente, integramos esse grupo de pessoas, do qual a Marisa também faz parte. A Marisa, o João Ferreira, Nikolaj Villumsen (da Aliança Verde, Dinamarca) e o Martin Schirdewan (do Die Linke, Alemanha) que até à solução encontrada vai ser o presidente em exercício provisório. Como vão trabalhar sobre uma solução, não quero estar a adiantar muito sobre isso.

Paralelamente, como comenta a escolha dos nomes para os altos cargos das instituições europeias, Von der Leyen para a Comissão Europeia e Lagarde para o BCE?

A escolha dos titulares para os principais cargos institucionais da UE representa uma vitória da direita, da extrema-direita e do eixo franco-alemão, que garante em simultâneo a presidência da Comissão e a presidência do BCE. Duas soluções desastrosas que apontam no sentido da hegemonia da austeridade nas políticas europeias e confirmam a viragem militarista.

Pelo caminho, caiu uma ilusão e caiu uma farsa. A ilusão era a da construção de uma alternativa com os protagonistas do costume. A farsa foi a apresentação de candidatos à Presidência da Comissão Europeia que, depois dos votos contados, foram prontamente dispensados e substituídos por autênticos coelhos tirados da cartola que ninguém sufragou. Agora é a hora do Parlamento. Cabe aos deputados rejeitar este negócio de lugares que mantém tudo na mesma e despreza os cidadãos. Essa recusa, não só reclamaria para o Parlamento o lugar incontornável que tem de assumir em nome da democracia, como permitiria começar a desenhar uma verdadeira alternativa política para a União. 

A nível de prioridades para este mandato: a emergência climática é uma delas?

A parte das comissões ainda não está fechada, mas a Marisa ficará, quase de certeza, numa pasta muito ligada às questões da transição energética e da emergência climática, que era um dos nossos principais objetivos para o próximo ciclo político. Eu vou estar mais na área económica e do emprego que poderá ter alguns contactos ocasionais com essa área. A nossa expectativa, que achamos que se vai concretizar se nada se alterar no nosso debate interno, é que podemos estar naquelas que eram as três áreas prioritárias do nosso programa: a resposta às alterações climáticas, os direitos sociais e humanos e o emprego.

E dentro dessas áreas económicas e sociais, quais são as prioridades estabelecidas pelo Bloco?

Ao nível da governação económica, queremos tentar dar expressão ao que tem sido a crescente compreensão do falhanço da estratégia europeia. Esse falhanço teve expressões nacionais, uma das mais importantes é portuguesa. Aliás, não é por acaso que o nome da Marisa surgiu com força no trabalho que ela tem realizado como deputada. Mas também teve expressão no Parlamento Europeu com o chumbo do Tratado Orçamental que aconteceu por força de uma proposta da Marisa que visava inviabilizar um relatório que consagraria o Tratado Orçamental no direito comunitário. O facto de esse relatório ter sido chumbado na comissão de economia é de uma enorme importância. E é importante consolidar essa viragem do ponto de vista das políticas económicas.

Por outro lado, uma das questões que nós queremos trabalhar muito – e eu em particular – é a questão da regulação do sistema financeiro na Europa. A UE tem estado a construir aquilo a que se chama a União Bancária e que se tem norteado por alguns princípios orientadores com os quais estamos muito em desacordo e muito preocupados.

Nomeadamente?

Basicamente o que está a vingar é a ideia de proceder a uma regulação muito fraca no sistema financeiro, uma regulação que tira muito poucas lições da crise financeira de 2008, 2009. E, por outro lado, aposta numa grande concentração do sistema financeiro à escala europeia, que é outra lição que ficou por aprender. Um dos grandes problemas da crise financeira era termos bancos demasiado grandes para poderem falir sem impactos incomportáveis no sistema económico e o que está a acontecer na Europa é o agravamento disso.

Aliás, tivemos uma expressão disso em Portugal quando a Comissão Europeia praticamente obrigou, e o Governo aceitou, que o Banif fosse integrado no Santander, porque tem um pouco o projeto de um grande banco ibérico que controle o sistema financeiro ibérico. E nós pensamos que era preciso rigorosamente no sentido contrário. Consideramos também que é preciso reforçar a política orçamental no espaço europeu e o seu caráter redistributivo. Ou seja, a capacidade que a política orçamental deveria ter de compensar os desequilíbrios que existem entre as economias mais avançadas e mais atrasadas da UE. E esta, para nós, é uma questão de sobrevivência. Se a UE continuar a ser um projeto de vencedores e de vencidos, continuará a perder capital político e agravará os factos de desagregação económica que já hoje começamos a observar.

A UE está totalmente desprevenida, quer do ponto de vista da capacidade de resposta macroeconómica, quer do ponto de vista da regulação do sistema financeiro. Não estamos prontos para uma nova crise e isso deve ser encarado com a maior das preocupações Não aprendemos nada com a crise financeira e não estamos preparados para outra?

Não [aprendemos]. É uma coisa que nos preocupa muito porque já hoje começamos a identificar alguns sintomas de instabilidade de potencial instabilidade financeira, e se olharmos hoje para o contexto económico na UE, para os níveis de crescimento, para os níveis de endividamento de muitas das suas economias, para o facto de a política comunitária estar a trabalhar a todo o vapor e mesmo assim o crescimento ser relativamente medíocre, não estamos preparados para a ocorrência de uma nova crise financeira. E ela é possível. E se acontecer, a UE está totalmente desprevenida, quer do ponto de vista da capacidade de resposta macroeconómica, quer do ponto de vista da regulação do sistema financeiro. Não estamos prontos para uma nova crise e isso deve ser encarado com a maior das preocupações.

Foi uma oportunidade falhada?

Em todo o processo de regulação do sistema financeiro verificamos que, depois de declarações muito ambiciosas no rescaldo da crise, à medida que esta se foi afastando da memória, as declarações foram ficando cada vez mais tímidas e os relatórios ainda mais tímidos que as declarações.

E, no final desse processo, acabámos por assistir à repetição de erros antigos, inclusive o próprio projeto da União Bancária, que tinha três pilares, acabou por ficar como um banco com dois pés porque o sistema de garantia de depósitos foi atirado para as calendas e a nossa expectativa é que, se nada mudar, pura e simplesmente nunca irá existir porque a Alemanha se opõe. E como as outras duas coisas já avançaram, agora vai ser muito difícil impor esse pilar, mas ele é fundamental – não suficiente, mas fundamental.

Se vier uma nova crise financeira, a austeridade é o que nos espera? Ficou pelo menos provado que há alternativa a isso …

Acho que o que se conseguiu fazer durante estes anos em Portugal mostra que ainda há algum caminho dentro das regras europeias com grandes limitações. O caminho que, apesar de tudo se conseguiu fazer em Portugal, não resolve as contradições mais importantes da UE. Não quero propriamente fazer um discurso fatalista. Já houve decisões importantes à escala europeia, como por exemplo a questão do Tratado Orçamental. E é nesse tipo de linha de trabalho que queremos trabalhar, incluindo fazer convergências com outros grupos, esperando nós que as evidências do fracasso deste modelo económico se vão tornando cada vez mais generalizadas a outras famílias políticas no espaço europeu.

É convencê-los.

É. A nossa perspetiva sobre este mandato é de que temos uma janela de oportunidade muito apertada para preparar a UE para ter mecanismos de defesa para futuros episódios de instabilidade económica.

O arrefecer dessa dinâmica de crescimento em que a extrema-direita estava tem muito a ver com isso, com algum desmascarar da ausência alternativa nas áreas que realmente preocupam as pessoas

Aquilo que mais se temia, o crescimento da extrema-direita e dos populismos nestas eleições europeias, não se confirmou. Ainda assim, a ameaça paira no horizonte, uma vez que dez países da UE são governados por nacionalistas. De que forma é que isso impacta na UE e que resposta tem de ser dada a estes países?

Em primeiro lugar, acho que a ascensão de várias modalidades de extrema-direita e o facto de a extrema-direita ter começado a envolver-se em governos nacionais criou uma reação ao crescimento desse movimento que parte da constatação que, ao contrário do que prometiam, esses movimentos não eram portadores de nenhuma alternativa económica e social que respondesse aos problemas das pessoas. 

O arrefecer dessa dinâmica de crescimento em que a extrema-direita estava tem muito a ver com isso, com algum desmascarar da ausência alternativa nas áreas que realmente preocupam as pessoas, que é a grande promessa por cumprir. Disseram que tinham uma resposta à crise económica e social e, onde a extrema-direita está no poder sozinha ou a meias, a realidade mostra que essa reposta e alternativa não existiam. O que existe são ataques muito preocupantes a direitos e liberdades democráticas e uma violação quase sistemática dos direitos humanos aos mais variados níveis. Uma das questões que temos estado a trabalhar, apesar de o Parlamento não estar propriamente ainda em funcionamento, é a situação do Miguel Duarte e de outros ativistas que se têm empenhado no resgate de refugiados no Mediterrâneo e que têm sido perseguidos pelo governo italiano presidido pela extrema-direita.

O drama dos refugiados continua sem solução à vista. Como é que a UE devia autuar perante este problema e atuar perante estes países que se recusam a receber refugiados e que cometem estes atropelos a nível de direitos humanos?

É muito impressionante a tibieza da intervenção das instituições europeias perante o comportamento de governos nacionais que, não só não respeitam os compromissos coletivos da UE e que tinham responsabilidades atribuídas a cada Estado-membro, como inclusive violam normas do direito internacional. É o que acontece atualmente com o governo italiano que está a perseguir pessoas que procedem ao resgate de refugiados no Mediterrâneo, que é uma obrigação legal, de acordo com as normas do direito internacional, o direito de resgate, o direito do salvamento em alto mar.

As mesmas instituições europeias que são capazes de pressionar, chantagear e penalizar países por 0,2% do défice, não são capazes de tomar medidas enérgicas para fazer com que governos nacionais respeitem os mais elementares direitos humanos. Há aqui uma política de dois pesos e duas medidas que é de facto chocante e que continuamos a denunciar e para a qual continuaremos a procurar alternativas, não apenas no plano de uma resposta humanitária, mas também no ataque às questões que estão na base de todo este processo.

Como por exemplo?

Uma política consequente de combate às organizações terroristas, ao fundamentalismo islâmico, que no fundo combata estes movimentos da forma mais consistente, o que do nosso ponta de vista não tem acontecido. Já tivemos múltiplos atentados terroristas no território europeu e no outro lado do Mediterrâneo e ainda não conseguimos sequer ter um compromisso europeu para que se pare com a venda de armas aos territórios que são controlados por movimentos terroristas.

O primeiro contributo é parar a venda de armas e o outro, que também foi proposto pela Marisa e que também foi chumbado, é parar de comprar petróleo aos territórios que são controlados por organizações terroristasE por que razão ou razões ainda não se conseguiu esse compromisso?

Ou porque existem interesses económicos de economias da zona euro, começando pela Alemanha e pela França, que se têm colocado no caminho. Basta dizer que a Marisa fez esta proposta no Parlamento Europeu e a proposta foi chumbada pela maioria dos deputados. Embora tenha tido apoio de deputados de todas as famílias políticas, esse apoio não foi suficiente para fazer passar esta proposta, que é uma proposta do mais elementar bom senso e que é a única resposta duradoura e consistente que se pode dar à crise dos refugiados. Este problema só pode ter uma resolução definitiva olhando para os problemas daquela zona do mundo e dando um contributo positivo da parte da Europa para os resolver. O primeiro contributo é parar a venda de armas e o outro, que também foi proposto pela Marisa e que também foi chumbado, é parar de comprar petróleo aos territórios que são controlados por organizações terroristas.

O José Gusmão está ciente de todos os constrangimentos que existem para levar propostas avante …

Sim. O PE não tem poder de iniciativa legislativa, que foi uma coisa que sempre criticámos e sempre defendemos que deveria ter. O que nos obriga a trabalhar em torno das iniciativas que surgem da Comissão Europeia. No entanto, tem havido da parte de várias famílias manifestações de compromisso para que as questões que são colocadas pelo PE, por exemplo através de relatórios de iniciativa, passem a ter resposta legislativa da parte da Comissão Europeia que depois, naturalmente, devolve o processo ao PE. Vamos fazer muita pressão para que as coisas aconteçam nesse sentido. Tem havido legislação importante que tem partido da iniciativa do PE, embora não vinculativa, mas que quando foi avante teve muita importância.

Por exemplo, no mandato anterior, a Marisa Matias trabalhou com o espanhol Ernest Urtasun, um deputado dos Verdes, sobre um relatório contra a discriminação de género na política fiscal. Achamos que este tipo de iniciativas tem que acontecer mais no PE. O PE tem que ser uma instituição com mais importância no funcionamento da UE.

Sobre os refugiados, Portugal devia receber mais?

Acho que os programas que temos para receber refugiados têm funcionado razoavelmente. Conhecemos melhor o caso de Lisboa. Grosso modo, a posição do Estado português tem sido de abertura. Muitas vezes os refugiados querem ir para países onde já existem comunidades mais consolidadas do que em Portugal. É, de alguma forma, normal que procurem outros destinos.

Ainda no plano europeu, quão mau será um Brexit sem acordo, tanto para a UE como para o Reino Unido?

A nós tem-nos preocupado essencialmente duas questões. Uma é a questão da fronteira das Irlandas e todas as consequências que poderia ter para aquele território – que é um território com uma grande unidade cultural. E a outra questão é a questão dos vistos de cidadãos europeus do Reino Unido, algo que é muito relevante para Portugal porque temos lá muita gente a trabalhar, e vice-versa. Esse tem sido um ponto em que temos insistido muito e que consta da posição da UE nas negociações com o Reino Unido e que, por si só, é muito importante para que haja uma saída com acordo. Quanto ao resto, caberá ao Reino Unido decidir quais os termos das relações económicas que quer ter.

Depois do referendo do Brexit, a extrema-direita do Reino Unido praticamente desapareceu nas eleições seguintes, e agora está a ressurgir por causa da insatisfação com esta demora e bloqueio do processoPois, esse é o desafio: o Reino Unido decidir o que quer que seja.

Pois, esse é o problema. O bloqueio onde nos encontramos das próprias instituições britânicas que não se têm conseguido por de acordo para encontrar uma modalidade de Brexit que de alguma forma concretize o processo, respeitando aquilo que foi a vontade dos britânicos. Veremos se a demissão de Theresa May abre caminho à resolução desse problema, que exigirá obviamente que os principais partidos do Reino Unido se consigam pôr de acordo. Vemos a demora desse processo com alguma preocupação, está a alimentar respostas ao resultado do referendo que apontam no sentido de um ressurgimento do populismo que estava associado ao Ukip, que se refletiu no resultado do Partido do Brexit nas eleições europeias.

Os principais partidos da democracia britânica têm de ser capazes de dar uma resposta ao resultado do referendo porque se não o fizerem as pessoas que se pronunciaram no referendo poderão começar a procurar outro tipo de soluções muito mais danosas. Aliás, uma coisa que eu acho muito importante é que depois do referendo do Brexit, a extrema-direita do Reino Unido praticamente desapareceu nas eleições seguintes, e agora está a ressurgir por causa da insatisfação com esta demora e bloqueio do processo.

Aparente desorientação do PS revela mais uma estratégia: depois de ter inviabilizado uma convergência à Esquerda e ter simulado uma convergência à Direita, usar o impasse para exigir uma maioria absoluta Por cá, tem sido notória a crescente tensão entre o Bloco de Esquerda e o PS. A que se deve está tensão? Eleições à porta?

Nós tivemos uma proposta acordada com o PS para a Lei de Bases da Saúde que incluía a questão das taxas moderadoras, a questão das PPP’s, que foi trabalhada, negociada e fechada com a ministra da Saúde. Era uma proposta da Lei de Bases que, de alguma forma, resgataria o SNS tal como foi construído em Portugal a seguir ao 25 de Abril por homens como António Arnaut e que depois foi torpeada pela Lei de Bases que foi aprovada pela Direita, PSD e CDS. O PS teve um recuo ainda hoje por explicar nessa matéria. Primeiro sobre a questão das PPP’s, agora também sobre as taxas moderadoras. 

Não vamos deixar de tentar lutar pela Lei de Bases que conseguimos construir com a ministra da Saúde enquanto esse debate estiver em cima da mesa. Não serão algumas declarações menos serenas que nos vão fazer deixar de trabalhar esta solução política e nas convergências que são necessárias para defender os direitos sociais em Portugal. O Bloco continuará a bater-se por ter uma Lei de Bases que defenda o SNS, numa ótica de gestão pública e de prestação de cuidados de saúde universal e sem restrições para que o SNS possa continuar a fazer aquilo que fez em Portugal que foi transformar este país com indicadores de saúde do terceiro mundo num país que chegou a ter um dos melhores sistemas de saúde do mundo. Essa foi a obra do SNS, de homens como Arnaut e como João Semedo e queremos devolver o SNS a esse projeto.

Pelo caminho, PS virou à Direita para negociar a Lei de Bases da Saúde, mas depressa anunciou que tinha posto fim a essa negociação. Essa viragem à Direita foi só para ‘stressar’ os parceiros?

Acho que esta aparente desorientação do PS revela mais uma estratégia: depois de ter inviabilizado uma convergência à Esquerda e ter simulado uma convergência à Direita, usar o impasse para exigir uma maioria absoluta.

A dureza das palavras de Carlos César [“o Bloco de Esquerda não manda no Parlamento nem no país”; “se nós fôssemos sempre atrás do estilo de aventura e de que tudo é fácil, tudo é barato e tudo pode ser feito - que o BE em especial mas também alguns dos nossos parceiros alimentam frequentemente - nós tínhamos um país com uma mão à frente e outra atrás e voltávamos ao tempo da bancarrota”] é já um assumir desse objetivo?

Ele próprio falou disso. Pediu aos eleitores uma maioria expressiva. Há sempre eufemismos quando se quer falar de maioria absoluta. Mas ainda é mais claro quando diz que se quer desembaraçar das barreiras parlamentares, dos bloqueios.

A verdade é que o PS governou com quatro anos de estabilidade política total. Pode não ter conseguido fazer tudo o que queria fazer, mas ainda bem. O PS tinha no seu programa o congelamento das pensões por mais quatro anos. Felizmente não o pôde fazer porque teve de fazer um acordo com o BE. Não tinha nada sobre o salário mínimo e teve que fazer um aumento de 500 para 600 euros. Ou seja, o PS governou condicionado mas governou. Teve quatro anos de estabilidade política e, a verdade, é que todas as concessões que teve de fazer ao BE tiveram como resultado consequências positivas na sociedade portuguesa, no funcionamento da economia e no próprio equilíbrio das contas. É por isso que é tão estranho ver o Carlos César atacar esta solução política, os resultados da solução política e os seus parceiros, utilizando argumentos que eram os da Direita, contra esta solução política e contra muitas destas escolhas políticas.

Chamou ao Carlos César uma espécie de “concentrado de bloco central”.

É. No fundo é a ideia de que Carlos César, que aliás que também vem desse tempo dos governos de Sócrates e em particular do governo de maioria absoluta e que ficou muito marcado por esse tipo de arrogância e de agressividade em relação a todas as alternativas, combina isso com o tipo de argumentos que a Direita usava em relação a esta mesma solução e às políticas que este entendimento parlamentar implementou em Portugal com sucesso, como está hoje à vista de todos.

Chega a ser paradoxal que o PS que ganha as eleições europeias muito graças à boa evolução que tiveram os indicadores desta política e de muitas das medidas que lhe foram impostas pelos partidos à sua Esquerda, agora procure cavalgar o impacto positivo que estas tiveram tentar impor uma solução de poder absoluto que, estou absolutamente convencido, não é o que as pessoas querem. Vai ser uma das decisões mais importantes nas eleições legislativas: é se vamos continuar a ter uma Esquerda à esquerda do PS que é absolutamente determinante no rumo das políticas do país ou se vamos ter o poder absoluto do PS que é, de certa forma, um regresso ao passado ao qual não gostaríamos de voltar.

Apesar dessas palavras “menos serenas”, outros socialistas têm vindo a público reconhecer como positiva a experiência da Geringonça. Lembro-me de esta semana ouvir o ministro Vieira da Silva e Pedro Nuno Santos. Vozes como as de Carlos César serão uma minoria no PS…

Bom, isso eu não sei. Os debates internos do PS fá-los-á o PS. A grande questão – e este é um debate para o qual PS, BE PCP e Verdes estão convocados – é de saber quais as grandes questões que devem estar no centro de uma solução para o futuro para o país nos próximos quatro anos. Se queremos para os nossos serviços públicos, para a saúde, para a educação, para a segurança social, uma lógica de investimento e de modernização dos serviços públicos, no âmbito da sua gestão pública, ou se os queremos entregar aos privados, mesmo estando hoje à vista as consequências que as várias privatizações tiveram noutros países e em Portugal.

Outra questão é a de saber como é que respondemos ao facto de mesmo tendo tido os níveis de crescimento mais elevados da história da nossa participação na zona euro – não que tenham sido fabulosos, mas foram os melhores desde que estamos no euro  –, mesmo tendo havido um crescimento muito pronunciado do emprego, os salários no setor privado não descolam.

E não descolam porquê?

Por uma razão muito simples. Os vínculos precários colocam os trabalhadores numa situação de enorme fragilidade e dependência. Se queremos ter uma evolução positiva dos salários no setor privado, tal como tivemos no setor público, então precisamos de olhar para a legislação laboral, combater a precariedade, relançar a contratação coletiva. Isso não aconteceu ao longo destes quatro anos e é um aspeto fundamental de um novo acordo para os próximos quatro.

Diria que um outro aspeto era ter também dentro do país, como temos defendido para a UE, um programa de impulso à economia portuguesa que assente na resposta às alterações climáticas, na transição energética, nos circuitos curtos de distribuição alimentar, nos transportes coletivos. Por exemplo, uma medida pela qual a Esquerda sempre se bateu foi a do passe social. Mas é preciso compreender que essa medida só pode ter impacto se ela for acompanhada de uma política de investimento na capacidade de resposta dos serviços urbanos e metropolitanos.

Acho que a responsabilidade dos partidos que compuseram esta solução política é apresentar às pessoas as suas escolhasSem esse investimento, criou-se ou agudizou-se outro problema: o caos nos transportes.

As restrições ao investimento público e a política absolutamente suicidária que tem sido conduzida a esse nível pelo ministro das Finanças, de contração do investimento público em Portugal retira toda a eficácia a esta medida. As pessoas tiram o passe se for mais barato e se houver sistemas de transporte coletivo que deem resposta às suas necessidades. E não falo apenas desta epidemia de supressões de horários e de linhas que estamos a assistir nos transportes urbanos, mas também da maior parte do território nacional onde pura e simplesmente não há transportes urbanos que as pessoas possam utilizar na prática no seu quotidiano. É isso que acontece em grande parte das pequenas e médias cidades do país. A política do passe é muito importante e foi claramente um passo na direção certa, mas arrisca-se a não ter nenhuma consequência visível nos comportamentos se não for acompanhada de uma política de investimento.

Uma reedição da Geringonça está cada vez mais distante? Ou ela seria desejável, apesar de parecer ser cada vez mais difícil negociar com o PS?

O BE está neste momento a elaborar o seu programa e nos próximos meses irá falar um pouco do que será a sua perspetiva, os aspetos mais importantes para a construção de um projeto para o país. Naturalmente o PCP fará o mesmo. Acho que a responsabilidade dos partidos que compuseram esta solução política é apresentar às pessoas as suas escolhas.

Qual é a expectativa do Bloco para as eleições?

Será claramente a de aumentar a representação do Bloco na Assembleia da República e a de fazer do Bloco uma força ainda mais influente, ainda mais capaz de ser determinante, de impor alterações e de obrigar compromissos à Esquerda.

Sobre si, como é que começou o caminho na política? 

Cresci numa família onde a política era…

ao almoço e ao jantar?

Exatamente. Nos Natais da minha família falava-se de política. Era uma família de comunistas, quer do meu lado paterno quer do meu lado materno. A minha mãe foi a primeira mulher em Portugal a ser presidente de um sindicato predominantemente de homens e o meu pai dirigente do PCP, ao qual ainda pertence. Fui enquanto bebé, quase recém-nascido, à primeira festa do Avante. E a partir daí, a realidade do PCP, dos sindicatos, do sindicato da minha mãe para onde eu ia depois da escola, teve completamente enfiada no meu quotidiano. Devo dizer que nem o meu pai nem a minha mãe, nem outros familiares, fizeram grande coisa pela minha politização.

Nem era preciso.

Não. Nunca senti grande pressão para iniciar um percurso militante. Aliás, ao contrário de alguns dos meus irmãos, só me comecei a interessar por política quando fiz 18 anos e digamos que comecei pelos livros, que não é uma coisa muita habitual. Falei com o meu pai, recomendou-me algumas leituras. Isto no ano em que estava a viver no Porto, a fazer o meu primeiro curso que foi astronomia. Durante esse ano, fiz assim a minha politização e depois quando voltei, tinha 19 anos, inscrevi-me no PCP, de onde saí cerca de sete anos mais tarde.

A minha divergência com o PCP centrou-se essencialmente na questão da democracia, no papel que a democracia tinha no projeto político – ou a falta deleO que é que o levou a sair do PCP?

Saí na última grande crise interna do PCP, na altura dos Renovadores - embora não fizesse parte dos Renovadores, partilhava com eles muitas críticas ao funcionamento e estratégia política do PCP. A minha divergência com o PCP centrou-se essencialmente na questão da democracia, no papel que a democracia tinha no projeto político – ou a falta dele -, na forma como o PCP olhava para países como a China.

Como ainda hoje olha?

… como ainda hoje olha. E por analogia, a forma como no PCP se faz democracia. Na altura, o que foi a gota da água, que me fez sair, foi sentir que no PCP não era possível ser oposição e disputar democraticamente a hegemonia política dentro do partido. Não era possível apresentar uma alternativa política a um congresso, não era possível apresentar uma lista alternativa ao Comité Central.

Falta de democracia, portanto.

Sim, e num partido assim eu não queria continuar. No Bloco de Esquerda já tive mais em acordo e mais em desacordo com a orientação política do partido, mas sempre senti que  podia apresentar uma alternativa, tinha os instrumentos que me permitissem disputar a política do Bloco das mais variadas formas. Acho que isso nunca foi um fator de enfraquecimento do Bloco. Quando o partido surgiu, imaginava-se que rapidamente seria dilacerado por disputas internas pelas diferentes tradições que o compuseram. E o que a História veio mostrar foi que essas tradições conseguiram conviver, conseguiram ir de alguma forma fazendo uma síntese política e uma mistura. Atualmente, nenhuma das sensibilidades fundadoras é exatamente aquilo que era no início. Acho que o funcionamento democrático do Bloco, e também uma boa dose de bom senso dos fundadores, contribuiu para que isso fosse possível. O BE é hoje uma força política consolidada, obviamente com muito por fazer e muito para aprender, mas que passou esse teste da infância.

Já o PCP continua agarrado ao passado?

O PCP mantém a identidade política que tinha e o modo de funcionamento que tinha quando eu me afastei. Obviamente que isso decorre de uma escolha dos seus militantes.

Não soube renovar-se como o BE?

Fizeram a sua escolha. O PCP renovou, tem uma nova geração de quadros. Prefiro não falar de renovação porque estou muito convencido que o PCP é como é porque os seus militantes querem que assim seja. Por isso costumo dizer que saí do PCP sem ressentimentos. O PCP seguiu o seu caminho, que é um caminho muito respeitável na sociedade portuguesa. Acho que seria muito mau para a democracia e para a sociedade portuguesa que o PCP desaparecesse. Simplesmente cheguei à conclusão que não era o caminho que eu queria para a minha própria militância. Saí sem rancores, mas tenho em muito boa conta o período em que fui militante do PCP, aprendi muito e trabalhei com muito boa gente.

Já está na altura de podermos experimentar uma política diferente a sério. E acho que o BE não o fará sozinho. Mas quero um BE que possa ser um ator fundamental nessa mudança Depois como é que surge o Bloco de Esquerda?

Na altura estava muito ativo na ATTAC, sem grande vontade de me meter noutro projeto partidário. Estava muito envolvido no Fórum Social português, que foi quando conheci melhor o Miguel Portas. E o Miguel, para além de ser um grande construtor de pontes, era especialista no trabalho unitário e também tinha uma vertente de caçador de talentos [risos]. Isto não soa nada bem, não estou a dizer que eu era um talento… Conheci-o aí, convidou-me para fazer algumas coisas no Manifesto, ainda eu não era militante do BE. Depois as coisas foram acontecendo. À medida que me fui aproximando do Manifesto, aproximei-me do BE. Quem me passou a ficha para me inscrever acabou por ser o meu irmão.

Ai foi?

Dei-lhe a ficha, a primeira quota, que ele depois acabou por perder. Depois tive que dar uma segunda ficha, mas aí já foi na sede, voltaram a perdê-la. Felizmente aí não foi preciso outra quota. E à terceira lá consegui inscrever-me.

Para terminar, que ambições tem na política?

Não penso muito nesses termos. Antes de ir trabalhar como Francisco Louçã para a Assembleia da República, eu estava a trabalhar em investigação. E não descarto que depois desta experiência no Parlamento Europeu volte para a investigação. No fundo, fui tomando decisões conforme as hipóteses que se colocavam, para que achava que podia dar um contributo. Não penso muito nesses termos. Aliás, nem sequer é muito da cultura da Esquerda. Estou disponível para aquilo que o BE precisar. Aquilo que eu gostava de ver era o BE conseguir ganhar um lugar na política portuguesa que lhe permitisse acabar com 40 e tal anos de rotativismo ao centro. Acho que já chega. Já está na altura de podermos experimentar uma política diferente a sério. E acho que o BE não o fará sozinho. Mas quero um BE que possa ser um ator fundamental nessa mudança.

E isso passa por ser governo um dia?

Claro.

Campo obrigatório