"O maior rival de Jardel não eram os defesas, mas as garrafas de whisky"
O último treinador campeão pelo Sporting recordou, numa entrevista ao Desporto ao Minuto, o maior responsável por esse feito, a guerra travada entre Jardel e o álcool e os encontros que manteve com Pinto da Costa numa casa de fados.
© Reuters
Desporto Laszlo Boloni
Laszlo Boloni saiu de Portugal em 2003. Um ano antes, conduziu o Sporting ao seu 18.º título de campeão nacional, que se traduziu, simultaneamente, na última vez que os leões festejaram a conquista de um título na Liga.
Em entrevista ao Desporto ao Minuto, o treinador romeno, atualmente com 66 anos, recordou a chave do sucesso alcançado nessa temporada, sem esquecer a "coragem" que teve em levar Cristiano Ronaldo e Ricardo Quaresma para a equipa principal.
Com algumas dificuldades em expressar-se na língua portuguesa, Boloni não esquece o amor que tem por um país, onde já podia ter regressado "mais duas ou três vezes".
À margem dos convites, o agora treinador do Antuérpia recorda os bons momentos que passou numa casa de fados, em Lisboa, com Pinto da Costa.
Quais as melhores recordações que tem do Sporting, que conduziu ao título de campeão nacional?
O meu passado em Portugal foi bastante enriquecedor e, depois de tantos anos, ainda fico muito feliz ao recordar esse período. Antes de ir para o Sporting fui selecionador na Roménia e congratulo-me por ter rumado a um país extraordinário, que me acolheu de braços abertos. Os portugueses, nomeadamente os sportinguistas, receberam-me muito bem. Vivi duas épocas fantásticas no Sporting e consegui alcançar excelentes resultados a nível profissional. Conseguir dar a um grande clube, como o Sporting, o título de campeão nacional foi fantástico. Após alcançar a dobradinha, em 2002, senti um orgulho enorme nos adeptos do Sporting. Aquele emblema precisa de ganhar títulos e alimenta-se disso para ter um ego de clube grande que, na verdade, é o que ele é, um clube enorme. Foi uma grande vitória para mim também. Não só a nível de resultados, mas também a nível humano, conheci excelentes pessoas, tanto ao nível de jogadores, como a nível de dirigentes. A primeira pessoa que me vem à memória é Miguel Ribeiro Telles [Presidente do Conselho de Administração com o pelouro do futebol], assim como Dias da Cunha. O Ribeiro Telles foi o último grande presidente que o Sporting teve.
Porquê?
Não me posso esquecer dele. Foi um verdadeiro líder, sem ser agressivo, que apoiou sempre o staff técnico. Um líder com enorme coração, que se entregava de alma e coração ao Sporting e sempre bastante correto com todos os trabalhadores do clube. É uma pessoa que nunca se esquecia de pensar nos sócios. Lembro-me de empatarmos com o Vitória de Setúbal, e adiámos a festa do título, e o Ribeiro Telles veio ter comigo bastante desolado e disse: ‘Devíamos ter conseguido já o título, para dar esta alegria aos adeptos’. E, mais tarde, um dia antes de conseguir o tão desejado título, ele voltou a falar comigo e pediu-me, de forma bastante emocionada, o título de campeão. Dias da Cunha também foi um grande presidente, mas Ribeiro Telles era um líder nato.
Eu tentei salvar o Jardel, mas o álcool venceu esta batalhaE com que jogadores privou e ficou com uma ligação mais estreita?
Rui Jorge, um enorme amigo, ainda hoje falo com ele. Também me recordo do André Cruz, do Rui Bento e do Paulo Bento. João Pinto também mostrou sempre uma enorme personalidade. Era alguém com quem conversava bastante. Agora, num grupo de 20 a 30 pessoas, é normal que também existissem conflitos. Recordo-me de que quando apostei no Hugo Viana para o lugar do Pedro Barbosa ele ficou chateado, de início, mas compreendeu rapidamente esta situação, que era bastante delicada para ele. Ele manteve-se um enorme líder de balneário e aceitou bem a decisão, esforçando-se igualmente para ter um papel ativo no grupo.
Mas nem todas as relações correram da melhor forma, por exemplo com Mário Jardel…
Na primeira época, a relação com Mário Jardel correu da melhor forma. Na segunda temporada fizemos bastantes esforços para o salvar do álcool e das drogas. Vocês têm de saber que Jardel teve muitos adversários e o maior de todos não foram os defesas, mas as garrafas de whisky, e outras coisas também. Nós fizemos de tudo para o salvar. Nós fizemos vários esforços para o apoiar, para o fazer sair desta situação muito perigosa para ele e que nos enfraquecia como grupo. Ele sempre foi correto e nunca tive um conflito pessoal com ele. Nós não podemos ganhar sempre e algumas vezes temos de reconhecer a nossa derrota. E Jardel lutou, mas perdeu a luta para o álcool. Eu tentei salvá-lo, mas o álcool venceu esta batalha.
Se o FC Porto for campeão na próxima época, a solução passa por matar Pinto da Costa?E quais foram as maiores dificuldades que Boloni sentiu quando chegou a Portugal?
Foi muito difícil no início. Quando cheguei, o Sporting jogava sem pontas de lança, porque efetivamente não os tínhamos. Quando cheguei, tivemos de fazer um árduo trabalho de adaptação. Eu à equipa e eles à minha filosofia de jogo. Não foi fácil, passámos por um período bastante difícil no início da época, mas tivemos alguma sorte em conseguir resolver, desde logo, e rapidamente, algumas lacunas que o plantel do Sporting tinha.
Lacunas essas que foram preenchidas com jovens de alta qualidade…
Claro, estou a lembrar-me de Custódio e de Quaresma… e depois chegou o ‘rei’ Ronaldo. Jogadores que se tornaram atletas internacionais por Portugal. Ronaldo, num patamar diferente, afinal ele hoje está no eixo central da Terra. Eu fiquei muito orgulhoso por ter trabalhado com estes jogadores e ter ajudado no seu crescimento, durante as duas épocas em que estive no Sporting.
Qual a percentagem de sucesso que atribui a si na qualidade/estatuto que o Ronaldo conseguiu atingir até aos dias de hoje?
Eu penso que é bastante reduzida. Ronaldo, quando chega ao nosso balneário, foi uma decisão de coragem da minha parte. Eu recordo-me de ir ver um encontro de juniores de Ronaldo, em que jogou a número nove, e não hesitei em levá-lo, rapidamente, para os treinos do plantel principal. Ele já tinha uma enorme velocidade e técnica na altura. Senti, desde cedo, que tinha de o pôr a trabalhar com os jogadores da equipa principal. E o mesmo aconteceu com Quaresma. Eu entrei com a vontade de ganhar o campeonato e senti que, para isso, também era necessário apostar em jovens de qualidade. Algumas pessoas, dentro do clube, também ficaram surpreendidas com esta aposta de risco.
Qual foi a primeira análise que Boloni fez de Quaresma e Ronaldo quando os viu pela primeira vez?
Vi dois jogadores com um talento fora do normal para a idade que tinham, uma inteligência de jogo e uma velocidade incomum. E estes jogadores têm de chegar mais cedo aos balneários da equipa principal. Eu não acredito que eles tenham nascido com um dom, mas temos de agradecer aos pais que os colocaram na Terra. Eu não lhes dei o talento que transportavam nos pés, nem a forma como tinham de controlar a bola, eu apenas os lancei às ‘feras’. Terem de jogar ao lado de André Cruz e João Pinto é complicado, porque já eram jogadores de créditos firmados. Eu tive a coragem de os levar para a equipa principal, para depois ter a sorte de receber os frutos que eles deram.
Ronaldo, quando chega ao nosso balneário, foi uma decisão de coragem da minha parteRecorda-se de alguma conversa que teve com Cristiano Ronaldo?
Quando eu vi o Ronaldo jogar pela primeira vez ele foi número nove. Ele já tinha a coragem para partir para cima dos defesas e furar barreiras com defesas centrais fortes, cada um com mais de 90 quilos, mas, devido à sua velocidade e ao acrescento que ele podia dar à equipa, a minha missão sempre foi desviá-lo para uma das alas, a esquerda ou a direita. Ofensivamente seria melhor para ele, claro que ele adorava marcar golos e ficou chateado por tê-lo mudado de posição e falámos várias vezes sobre isto. Para mim, era mais fácil colocá-lo a extremo esquerdo ou direito, para evitar que Ronaldo partisse, desde cedo, para o choque com os defesas centrais. Ao início ele não compreendeu esta mudança de posição, mas acabou por ganhar com isso. Aliás, ele depois rumou para o Manchester United e Alex Ferguson colocou-o a jogar nas mesmas posições. Ele não jogava a nove, porém continuou a fazer imensos golos em Inglaterra e a aprofundar o seu futebol ofensivo.
Continua a acompanhar o Sporting?
Não tenho acompanhado com grande atenção. Sei que o Sporting continua, como clube grande que é, a lutar pelo título, mas, infelizmente, já não o consegue há demasiado tempo. Vi alguns jogos, todavia o meu trabalho agora é outro. O Sporting faz parte do meu passado e a vida continuou por outras paragens.
Mas como se explicam 17 anos de um Sporting sem a conquista de campeonatos?
Confesso que isso me deixa bastante triste. Para ganhar um campeonato é preciso bons jogadores, mas o Sporting sempre os teve. Pode não ter o melhor plantel de Portugal, mas sempre teve bons jogadores. Todavia, para ganhar, também é preciso ter uma direção forte. Nós, com Dias da Cunha e Ribeiro Telles, fomos muito fortes. Para ganhar é necessário haver uma relação muito forte entre presidente, direção e treinador, e o triângulo Dias da Cunha, Ribeiro Telles e Boloni foi maravilhoso. É necessário ter inteligência também para escolher e resolver os conflitos, porque esses vão sempre existir. E é necessário uma força, uma vontade de ganhar e uma componente de loucura para fazer mais do que o normal. Essas qualidades existiram no Sporting campeão em 2002, agora não sei se continuam a morar, em Alvalade, essas componentes. Não é bom dizer isto, mas o Sporting está sempre a correr atrás de Benfica e FC Porto. Vamos olhar as estatísticas e a factos. Quem ganhou mais campeonatos nos últimos anos em Portugal? O Sporting, se calhar, tem de começar a pensar mais com a cabeça do que com o coração.
E tem faltado cabeça ao Sporting? As sucessivas mudanças presidenciais acabaram por se refletir no insucesso desportivo dentro das quatro linhas?
O FC Porto tem estabilidade. E não é estabilidade de staff técnico, é a estabilidade presidencial. No meu tempo, o melhor jogador do Sporting não foi Cristiano Ronaldo, mas Ribeiro Telles. Ribeiro Telles foi o principal obreiro de um clube campeão e de um clube funcional. Pinto da Costa e Luís Filipe Vieira são dois presidentes fortíssimos. E os principais responsáveis pelas conquistas de Benfica e FC Porto são os seus presidentes. Agora, se o FC Porto for campeão na próxima época, a solução passa por matar Pinto da Costa? Claro que não. Mas a orientação e a estabilidade que ele dá ao clube é o fruto do sucesso do FC Porto. Vieira e Pinto da Costa dão coisas aos seus respetivos clubes, que o Sporting não tem e não consegue dar. A primeira pessoa de um grande clube é o presidente ou o diretor técnico e só depois os jogadores. Jardel dizia que no futebol tudo era possível, mas trocar de presidente de quatro em quatro anos não pode rimar com resultados positivos. A estabilidade diretiva de um clube é muito importante.
Benfica ou FC Porto? Teria de ser um louco para dizer que nãoMudando um pouco de tema… Boloni recebeu algum convite para regressar a Portugal?
Sim, mas eu estava a trabalhar noutros clubes e não aceitei. Por duas ou três vezes tive oportunidade de regressar a Portugal.
De que clubes estamos a falar?
Não quero falar sobre isso. Cheguei a reunir-me em locais muito bonitos…
Mas lutavam pelo título esses clubes?
Não…
Depois do Sporting teve uma passagem pelo PAOK, clube que vai ser, nesta época, orientado por Abel Ferreira. O que é que o ex-técnico do Sp. Braga pode esperar no clube grego?
Um clube muito difícil. Quando eu estive lá, vivi tempos muito complicados, sendo que o clima político que se vivia no país, na altura, também não ajudava. Estive num clube em que faltava dinheiro para quase tudo. O PAOK estava recheado de dívidas, os jogadores e staff técnico ficavam meses sem sair. O presidente do PAOK agora é outro e recebe outro tipo de financiamento. Abel Ferreira teve de ter muita coragem para tomar esta decisão, porque apesar de ser um clube com bom coração, vive-se envolvido numa atmosfera realmente muito difícil.
Pinto da Costa e eu estivemos juntos, algumas vezes, numa casa de fados em LisboaAtualmente treina o Antuérpia, na Bélgica. 17 anos passaram desde a sua saída de Alvalade, o que vemos de diferente do Boloni de 2002 para o de 2019?
A maior diferença é o número de cabelos brancos [risos]… Eu sei mais coisas do que quando estive no Sporting….
Gostava de regressar a Portugal?
Adoro esse país e sou treinador profissional. Porque não?
E aceitaria um convite para treinar Benfica ou FC Porto?
Teria de ser um louco para dizer que não. FC Porto, Benfica e Sporting são três clubes enormes na Europa. Mesmo Sporting de Braga e Vitória de Guimarães. Quem não gostaria de treinar esses clubes?
Privou em algum momento com Luís Filipe Vieira ou Pinto da Costa?
Privei mais momentos com Pinto Costa do que com Vieira, por duas razões. Primeiramente, porque o meu empresário sempre teve uma ligação muito próxima do presidente do FC Porto. E, depois, porque Pinto da Costa adorava ir à mesma casa de fados do que eu. Algumas vezes reunimo-nos na mesma casa de fados, em Lisboa. Era uma paixão que nos unia.
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