Meteorologia

  • 23 NOVEMBER 2024
Tempo
14º
MIN 13º MÁX 22º
Vozes ao Minuto

Vozes ao Minuto

Vozes com opinião. Todos os dias.

"Nós temos fado na voz. Na forma como cantamos. E também somos bichas"

Os entrevistados de hoje do Vozes ao Minuto são Tiago Lila e João Caçador, do Fado Bicha. Um projeto musical que pretende mostrar ao mundo que o fado pode (e deve) surgir de variadíssimas formas, ser ativista e contar todas as histórias de amor.

"Nós temos fado na voz. Na forma como cantamos. E também somos bichas"
Notícias ao Minuto

18/10/19 por Natacha Nunes Costa

Cultura Fado Bicha

Lila Fadista, pseudónimo de Tiago Lila, e João Caçador são os autores do primeiro fado gay. Ou melhor dizendo, bicha. Mas são também os primeiros fadistas que se propuseram a dar ao fado - desde 2011 Património Imaterial da Humanidade -, versos contra o racismo, palavras sobre a igualdade de género, romances fora da caixa e melodias de uma guitarra elétrica.

Juntos quebraram as normas do fado tradicional. Tornaram-no num instrumento de luta. Chocaram os mais puristas e foram alvo de ódios. Mas continuam unidos a exorcizar as suas dores através de letras reconstruídas e de índole ativista que pretendem dar visibilidade às histórias da comunidade Lésbica, Gay, Bissexual, Trans e Intersexo (LGBTI), e a tocar em problemas que afetam a sociedade em geral.

Na voz de Lila Fadista, o pedido é que Lisboa não seja racista, ao invés da tão afamada ‘Lisboa Não Sejas Francesa’. ‘O Namorico da Rita’, interpretado por Amália Rodrigues, passou a contar a história de amor de André e de um outro homem. Já ‘A Bia da Mouraria’ continua a ser a Bia da Mouraria, mas já não namora com o Chico, namora a Adelaide.

O fado, que sempre esteve colado à submissão dos portugueses ao destino e ao otimismo trágico do povo luso, surge desta vez com uma rebeldia gerada à margem das normas que a sociedade impôs ao longo da história a minorias e a quem arrisca ser diferente. Surge como forma de insurreição, de catarse. Sem medos.

E é por isso que o Fado Bicha, criado em 2017, está a dar que falar. Em Portugal e pelo mundo. No próximo mês de dezembro a dupla de fadistas vai fazer uma mini tour pelo Brasil. Antes, vai dar vários concertos pelo nosso país, em Liverpool, no Reino Unido, e lançar o seu primeiro álbum.

Surgiram em 2017, mas ainda nem todas as pessoas vos conhecem. Como é que descreveriam o Fado Bicha?

Tiago – Eu diria que há muitas pessoas que não nos conhecem.

João – E ainda bem…

Tiago – Vá João! Força… [risos]

João – É uma banda musical composta por guitarra e voz, que revisita o reportório do fado e não só e dá uma nova leitura. Uma leitura dos temas do fado com preocupações e inquietações que fazem parte da nossa vivência enquanto pessoas homossexuais, essencialmente é isso...

Sempre gostaram de fado? Como é que o fado surgiu na vossa vida?

Tiago – Nenhum de nós é de famílias ligadas ao fado ou com uma particular inclinação para o fado, pelo menos mais do que uma família portuguesa comum. Crescemos nos subúrbios de Lisboa. Eu cresci num bairro de Odivelas e o João cresceu num bairro de Loures. Somos ambos de famílias migrantes, ou seja, os nossos pais vieram de outros sítios. No meu caso do Ribatejo, no caso do João, de Trás-os-Montes…

João – O êxodo rural…

Tiago – É verdade! Na minha vida o fado surgiu como surge na vida de todas as pessoas que crescem em Portugal. Vais ouvindo. No meu caso em particular, e acho que no do João também, até determinado ponto da nossa vida não era propriamente um estilo musical que fosse muito apelativo para nós, estava muito catalogado como um estilo musical de velhos, com o qual não nos conseguíamos ligar. Até que, a partir dos meus 14/15 anos, comecei a sentir o fado de outra forma e, particularmente, pela Amália. Comecei a sentir que muitas das coisas que ela cantava e, principalmente, nas coisas mais densas, mais tristes, mais desesperadas, havia elementos com os quais eu me identificava e com os quais me conseguia relacionar do ponto de vista emocional e relativamente com aquilo que eu estava a viver na altura. Estava a descobrir-me como pessoa homossexual, a atravessar e a tentar sobreviver a um processo enquanto vítima de bullying bastante prolongado e intenso, a problemas de familiares também. Portanto, foi assim que eu descobri o fado. Com essa capacidade que a maturidade foi trazendo de me conseguir ligar emocionalmente com aquilo que o fado me trazia e que eu não encontrava noutros tipos de música.

Foi um bocadinho cedo, não? Aos 14/15 anos os adolescentes ainda não ouvem muito fado, ou ouvem?

Tiago - Sim, é. Mas lembro-me de que estava no 11.º ano quando a Amália morreu e foi um choque. Lembro-me da sensação.

E para o João, como é que surgiu o Fado?

João – A minha ligação veio com a tuna. É muito parecida com o que o Tiago disse, mas foi mais tarde, foi aos 18/19 anos, quando frequentei a tuna do Técnico [universidade]. Esta tinha um grande reportório da Amália Rodrigues e foi aí que me liguei com a arte poética e lírica do fado, que é das coisas que mais me excita no fado, que me dá mais estímulos. O fado trata temas que nós não vemos tão retratados, ou de uma forma tão profunda, noutros géneros musicais. A forma como se canta, como se exorciza aqueles males todos que vêm do povo. Um sentimento, seja ele qual for, pode ser de amor, desamor, pode ser reivindicativo… E essa forma de cantar o fado foi para mim muito estimulante. Depois comecei a frequentar casas de fado, comecei a tocar, a cantar e desenvolveu-se uma grande paixão.

E como é que se juntaram? Já se conheciam?

João – Não nos conhecíamos. O Tiago já tinha começado o Fado Bicha, tinha feito dois shows no FavelaLX, que era um bar muito pequenino em Alfama e, por coincidência, calhei a lá ir. Já tinha visto uns vídeos de uma atuação anterior do Tiago e, nessa altura, propus-lhe marcarmos um ensaio. Esta ideia do Fado Bicha é dele e foi ele que o criou. Essa iniciativa de uma necessidade de criar uma narrativa que não existia, sobre pessoas homossexuais, sobre a vivência, sobre a marginalidade, sobre o direito ao prazer, sobre o direito ao corpo, o direito à existência poética, isso tudo e muito mais, foi ele que criou. Eu simplesmente revi-me na ideia que ele tinha feito. Era uma coisa que sentia já há muito tempo, mas que nunca tinha pensado em criar. Nunca pensei nessa possibilidade. E acho que esse é o exercício mais difícil. Nós sentirmos uma necessidade e conseguirmos criá-la, passa por uma inteligência artística. Ter um pensamento e transpô-lo para uma coisa real e concreta. E esse exercício foi o Tiago que o fez.

Tiago - Não concordo, no sentido em que eu de facto trouxe essa iniciativa, trouxe o ímpeto inicial, mas a partir do momento em que o João se juntou, e foi praticamente no início, o projeto evoluiu, ganhou camadas, por isso a responsabilidade e o mérito é inteiramente dos dois.

Eu gosto muito da palavra bicha. É claro que tem uma associação muito negativa, mas já há algum tempo que esta palavra tem sido apropriada pela comunidade LGBTI como palavra de empoderamento

É a primeira vez que este género de música tão tradicional surge, pelo menos de uma forma direta, tão relacionado com temas como LGBTI, intolerância e racismo. Como é que surgiu esta ideia?

Tiago - Nunca tinha cantado profissionalmente fado antes, mas cantava muito em casa, ouvia muito fado. Sempre tive a tendência para querer cantar fado e para me expressar no canto de uma forma que estava ligada à expressividade do fado. No estrangeiro tive oportunidade de começar a cantar para pessoas que não conheciam fado e, com essa oportunidade, comecei a sentir-me mais confiante, a sentir que as pessoas gostavam e que até se emocionavam. Comecei a pensar que se calhar até podia fazer alguma coisa em relação a isto. E quando voltei a Portugal o meu grande objetivo era perseguir esse sonho e ver o que é que dava. O caminho que tentei inicialmente foi o normativo, mas percebi que isso não me servia. Numa escola de fado tradicional eu não cabia por inteiro. Percebi que para estar no fado tradicional teria de deixar de lado coisas minhas, formas de expressão e elementos da minha identidade que não estava disposto a deixar de lado. Eu já era uma pessoa fora do armário, já era uma ativista LGBT, ou seja, não fazia sentido nenhum. Então, comecei a questionar se conseguia criar um espaço onde conseguisse fazer isso. Onde conseguisse cantar fado, sendo eu por inteiro. E depois, ao longo do tempo e, principalmente, quando o João se juntou, fomos explorando cada vez mais não só o lado estético e visual como o lado político, musical. Eu nunca tinha cantado antes, não tenho formação musical e ter uma pessoa que tem formação musical e cantar tantas vezes muda muitas coisas. Canto agora muito melhor do que cantava há dois anos. Fomos melhorando, adaptando e aprendendo.

E porquê Bicha? Trata-se de uma catarse? É que esta palavra está sempre associada a algo pejorativo, a linchamentos…

Tiago – Eu gosto muito da palavra bicha. É claro que tem uma associação muito negativa, mas já há algum tempo que esta palavra tem sido apropriada pela comunidade LGBTI como palavra de empoderamento e por outros artistas inclusive, mais no Brasil. Gosto muito da palavra bicha em particular, mas podiam ter sido muitas. Podia ser fado paneleiro, fado maricas, enfim... termos não faltariam. Mas através da palavra bicha, além de esta beber muito da homofobia, conseguimos perceber o elo entre homofobia e misoginia, o ódio às mulheres ou sexismo e, de certa forma, pegar nessa palavra e fazer uma análise em como a homofobia tem na verdade por base uma conceção do que é feminino como negativo, como inferior. A palavra bicha é usada não só para homens homossexuais mas, particularmente, para homens, sejam homossexuais ou não, que são lidos como aproximados às mulheres, ou que se comportam como mulheres ou que gesticulam como mulheres. Então, utilizar a palavra bicha fazia todo o sentido. Além disso, eu queria precisamente explorar a minha feminilidade, porque para mim o fado é uma energia muito feminina.

A forma como nos expressamos tem um lado de ativista que se mistura através da arte e do fado. Grande parte das músicas surgiu como uma necessidade. É uma necessidade, uma forma de catarse sobre vários temas que nos incomodam, que fazem parte do nosso dia a dia.Adaptaram as letras e deram uma nova roupagem a temas que são tão tradicionais como atuais. O amor de um poeta por um marinheiro, os problemas de uma mulher transexual, a violência, o racismo… Onde é que vão buscar inspiração?

João – São abordagens diferentes. A música ‘O Rapaz da Camisola Verde’ vem de um poema original do Pedro Homem de Melo, muito mais comprido do que aquele que é tradicionalmente cantado pelo Frei Hermano da Câmara e é um poema claramente homoerótico, em que foram retiradas as partes mais explícitas. Além disso, foi cantado num tom de marcha, num tom alegre. O que nós fizemos foi cantar o poema todo completo, em que fica explícito o homoerotismo do poema, e numa tonalidade menor, muito mais triste, mais lento, porque esse poema aborda temáticas como o trabalho sexual, a solidão, o sentimento de posse e de salvação da homossexualidade, ou seja, da negação desta. É curioso como durante tanto tempo um Frei, que se apresenta como assexual ou que não se permite ter sexo, canta algo tão claramente erótico. São muito curiosas estas incongruências  que acontecem no fado e que estão tão sublimadas.

Nós no Fado Bicha procuramos fados em que isto aconteça. Escritos por poetas homossexuais, como o Ary dos Santos, ou temáticas que não sejam muito convencionais como a traição vista pela perspetiva da pessoa que traiu, o que não é muito comum. Por outro lado, há casos como a canção ‘Lisboa não sejas Racista’, em que as letras são novas, escritas pelo Tiago. Essa música, por exemplo, surgiu em resposta a uma série de acontecimentos no início do ano, como o caso da violência no Bairro Jamaica, o caso da esquadra de Alfragide, o Mário Machado ter ido à televisão, aquele branqueamento todo, os discursos fascistas. Foi quase uma resposta, uma necessidade prática e imediata e o vídeo retrata mesmo isso, foi filmado em casa, na sala, fizemos um vídeo com o telemóvel. É quase uma necessidade que ultrapassa o lado artístico. A forma como nos expressamos tem um lado de ativista que se mistura através da arte e do fado. Grande parte das músicas surgiu como uma necessidade, não tem muito mais para além disso. É uma necessidade, uma forma de catarse sobre vários temas que nos incomodam, que fazem parte do nosso dia a dia.

A nossa crítica que, obviamente, tem bastante sarcasmo à mistura, é mais para as pessoas que são homossexuais como nós, que são fora do armário, que são até ativistas, mas têm uma cultura de masculinidade que, muitas vezes, é tóxica até dentro da comunidade gay

A ‘Crónica do Maxo Discreto’ é uma canção bastante provocadora. Ainda há muitos homens/mulheres que mantêm relações de fachada? Que não assumem a verdadeira identidade?

Tiago – Sim! Nós não achamos. Nós sabemos que há bastantes pessoas que… enfim! [Suspiro]. Essa canção tem um lado bastante erótico, humorístico e faz as pessoas rirem. Nós não consideramos que isto seja uma situação risível até porque muitas vezes, não sempre, há pessoas que têm relações com o sexo oposto e que, eventualmente, podem ter relações sexuais com pessoas do mesmo sexo, mas que não têm, necessariamente, de ter relações de fachada ou que não são necessariamente homossexuais. Podem ser pessoas bissexuais ou podem ter um fetiche em fazer sexo com pessoas do mesmo sexo por variadíssimos motivos. Não é uma realidade fixa e monotemática. Há muita variedade nessa situação. A nossa crítica que, obviamente, tem bastante sarcasmo à mistura, é mais para as pessoas que são homossexuais como nós, que são fora do armário, que são até ativistas, mas têm uma cultura de masculinidade que, muitas vezes, é tóxica até dentro da comunidade gay. As bichas são discriminadas não só por pessoas heterossexuais, mas também por muitos homens homossexuais.

E o processo de autorização de gravação de músicas já antigas com uma nova roupagem, como tem sido? É que a maioria dos autores já morreu…

Tiago - É mais as que não conseguimos do que as que conseguimos autorização. Nós não temos indicação dos motivos, porque os herdeiros ou os autores não são obrigados a justificar, só dizem sim ou não. Mas sim, nós cremos que muitas dessas rejeições se devem à nossa natureza e à forma como abordamos as canções e, ao fundo, a quem somos.

Como está a reagir o universo mais purista do fado?

Tiago – Cada vez melhor [risos].

João – Dentro da comunidade do fado até agora não é positiva. É como na sociedade portuguesa que já não é tanto de agressividade, é mais de indiferença. Não gostam, mas também não expressam muita coisa em relação a isso. No início recebemos muito ódio, mas hoje em dia é mais isso. Não apreciam, não valorizam, não querem saber. Pode ser bom.

Tiago – Mas tem estado a mudar, por acaso. Nós fomos cantar, a convite da Gisela João, ao Santa Casa Alfama, que é o festival de fado, e houve muitas pessoas ligadas ao fado tradicional que nos vieram parabenizar no final e dizer que tinham ficado surpreendidas.

João – Mas mais se calhar devido à reação do público, que validou, assim como a Gisela João. Como o público valorizou muito, eles também valorizaram.

E a comunidade LGBTI?

Tiago – No geral tem sido maravilhosa. Dão-nos imenso apoio, assim como as comunidades migrantes em Portugal, particularmente, a comunidade brasileira.

Pois, têm tido algum projeção no Brasil, assim como noutros países na Europa. Como têm visto esse sucesso? E como é que esse sucesso tem surgido?

João - Tem sido uma delícia para nós. Vamos em dezembro fazer uma pequena tour de 20 dias no Brasil. Acho que isso acontece por vários motivos. Porque a cultura queer no Brasil já está muito desenvolvida e também porque não existe uma fórmula fixa e cristalizada do fado no Brasil. As pessoas que ouvem fado no Brasil não têm uma cultura tão assimilada e tão resistente à mudança e ao exercício artístico de alteração e de osmose do fado. Eles não exigem que o fado não crie ligações com outros géneros musicais, com outras vivências e outras narrativas. Além disso eles entendem muito bem as letras.

Não aceitamos que a normatividade dentro da tradição do fado nos diga o que é que podemos ou não podemos fazer. Nós somos desta maneira, nós queremos cantar desta maneira. Nós temos fado na voz. Na forma como cantamos. Nas referências. E também somos bichas, também queremos fazer intervenção e queremos reivindicações e queremos fazê-las através do fado

Mas também têm dado concertos com casa cheia por vários países europeus...

Tiago – Nós já cantámos em Espanha, França, na Bélgica e no Luxemburgo, fora Portugal. Tem sido um bocadinho sempre por pessoas que conhecemos e que nos levam lá, mas as receções têm sido incríveis. Fomos cantar a Bruxelas, ao festival de cinema queer, e fomos cantar a uma sala que dava para 200 pessoas e estavam 500. Em países onde há algum conhecimento sobre o que é que é o fado, mesmo antes de saberem exatamente qual é a abordagem, se temos qualidade ou não, as pessoas já abraçam isso à partida. E depois é apelativo para as pessoas o exercício de reconhecer a tradição e ao mesmo tempo perceber que esse grupo não tem de ter as mesmas características, que foram sujeitas a opressão e violência endémica, mas reconhecer que ambas as coisas vivem nessas pessoas em particular e reconhecer que a tradição, ao contrário do que somos levados a crer culturalmente, não é ela própria negadora de vivências não normativas.

Aquilo que na tradição coíbe e restringe as pessoas a não se expressarem de formas, se calhar, socialmente reprováveis ou socialmente menos bem vistas, não é a tradição em si. É a normatividade dentro da tradição. E nós queremos mostrar que são duas coisas diferentes. Nós gostamos de fado. Nós ligamo-nos ao fado. A vários elementos do fado. Mas não aceitamos que a normatividade dentro da tradição do fado nos diga o que é que podemos ou não podemos fazer. Nós somos desta maneira, nós queremos cantar desta maneira. Nós temos fado na voz. Na forma como cantamos. Nas referências. E também somos bichas, também queremos fazer intervenção e queremos reivindicações e queremos fazê-las através do fado. Acho que muitas pessoas em Portugal e fora de Portugal, compreendendo a língua ou não, acham muito excitante essa premissa.

A utilização da guitarra elétrica, ao invés da guitarra portuguesa ou guitarra clássica, também pretende ter esse papel de quebrar com a normatividade das tradições? Ou surgiu por acaso?

João – Surgiu como uma necessidade musical, de experimentação e de exploração. No início começámos só com viola, mas isso já existia nas casas de fado. Esta forma de tocar muito rígida. Da mesma forma como há na narrativa, que fala quase sempre sobre os mesmos temas, o amor heterossexual, o ciúme, a traição, quase sempre uma masculinidade tóxica dentro das relações, relações violentas, abusos dentro das relações, dependência, isso também acontece na parte musical. Também existem regras muito claras e muito restritas na forma de tocar viola, na forma de tocar guitarra, com linguagens muito definidas e nós sentimos essa necessidade de recriar musicalmente e de subverter musicalmente o fado. E a guitarra elétrica era o veículo com que eu me sentia mais identificado para reproduzir o fado.

Li algures que no lançamento do videoclipe ‘O Namorico do André’, em abril, a vossa página de Facebook foi alvo de várias denúncias por discurso de ódio e que foi encerrada temporariamente no decurso das mesmas. Costumam receber muitas mensagens de ódio?

Tiago - A nossa página foi encerrada já por duas vezes. No lançamento do ‘Lisboa Não Sejas Racista’ e logo a seguir ao ‘O Namorico do André’. Quanto às mensagens de ódio depende das alturas. No início recebemos muitas, muitas, muitas. Para mim foi difícil lidar com isso. Recebemos muitas também depois de uma música que escrevemos contra as touradas, na altura em que o PAN fez uma proposta de lei para abolir as touradas e fizemos uma campanha conjunta. Recebemos muitas mensagens de ódio aí e quando eu digo mensagens ódio não é ‘eu odeio-vos’ é do estilo: ‘Temos pena de não haver Auschwitz em Portugal para pessoas como vocês’. Assim no geral, tirando esses focos, recebemos uma de vez em quando, mas não é assim muito expressivo.

Eu percebo que as pessoas tenham resistência ou que não gostem, que achem bizarro, achem grotesco. E pessoas que estão muito ligadas ao fado tradicional, percebo que tenham essa resistência porque encaram o fado como uma coisa tão preciosa. Alguns encaram mesmo o fado como uma coisa em risco - embora, na verdade, o fado esteja bastante vivo -, que qualquer mudança que se imprima ao fado é uma ameaçaDe quem vêm essas ameaças?

Tiago - Já veio da comunidade de fadistas, da comunidade LGBTI, gerações mais antigas, homens homossexuais, transformistas. Inclusive, a Belle Dominique já nos enviou duas mensagens de ódio. Nessa altura das touradas, pessoas ligadas à tauromaquia, os agrobetos da vida, mas depois no geral não conseguimos realmente estabelecer um padrão. São muitos mais homens do que mulheres, de longe. Tirando esse padrão, naturalmente, que serão pessoas mais conservadoras. Eu percebo que as pessoas tenham resistência ou que não gostem, que achem bizarro, achem grotesco. Lógico que percebo isso. Aliás, a nossa existência e a violência a que fomos sujeitos desde sempre é a prova de que as pessoas olham para nós com esses olhos. Mesmo em relação ao fado. E pessoas que estão muito ligadas ao fado tradicional, percebo que tenham essa resistência porque encaram o fado como uma coisa tão preciosa. Alguns encaram mesmo o fado como uma coisa em risco - embora, na verdade, o fado esteja bastante vivo -, que qualquer mudança que se imprima ao fado é uma ameaça. E eu consigo perceber essa reação, mas depois é o que se faz com ela.

E alguma vez as palavras passaram a atos? Já sentiram que, por darem corpo e voz ao Fado Bicha, correm perigo?

Tiago – Não.

João – Não.

E antes de serem artistas, sofreram de algum tipo de preconceito?

Tiago – Até antes de eu perceber que era homossexual.

João – Eu não sofri tanto porque não tinha uma expressão corporal tão efeminada, tão bicha. Mas obviamente que existe sempre uma violência. Só o simples facto de termos tanta dificuldade em nos assumirmos. Passamos por estados de culpa, de rejeição. É um ato muito solitário esse momento em que nos apercebemos. É quase um monstro, um conjunto de insultos, de coisas muito negativas que constrói a própria palavra gay e a conceção da palavra gay que está ligada ainda a conceitos como bicha, paneleiro, aberração, doente, imaginando isso, para um adolescente que se apercebe disso é um ato muito solitário esse da descoberta da sexualidade. Já é tão difícil segundo as normas crescer, quanto mais fora das normas, dessa margem. Qualquer pessoa LGBTI, mesmo que não sofra desta violência direta que ainda agrava mais toda a situação, é um processo muito violento o da descoberta de uma sexualidade não normativa, quanto mais de uma identidade de uma pessoa trans não normativa.

Pela experiência que eu tenho, quando vou às escolas fazer sessões de voluntariado sobre questões de bullying, questões de género, a perceção que tenho é que não existe ainda uma resposta adequada e satisfatória

Acham que com o passar dos anos isso tem mudado? Há menos preconceito?

Tiago – Ambas as coisas. Acho que continua. Continua a haver situações de bullying, continua a ser difícil para muitas famílias reconhecerem, aceitarem, apoiarem as crianças e os jovens que são gays, que são lésbicas, que são bissexuais, que são trans, que são intersexo, mas acho que, de uma forma geral, a sociedade teve uma evolução positiva. Isso é um facto inegável. Muito graças ao trabalho dos ativistas e às mudanças na legislação. O facto de haver mais visibilidade das pessoas LGBTI na política, em todos os meios, mas acho que ainda há um caminho a percorrer.

João – Acho que continua a não haver uma resposta satisfatória da parte de vários órgãos. Do Sistema Nacional de Saúde, sistema educativo, das famílias, da cultura em geral. Ainda não é uma resposta satisfatória. Pela experiência que eu tenho, quando vou às escolas fazer sessões de voluntariado sobre questões de bullying, questões de género, a perceção que tenho é que não existe ainda uma resposta adequada e satisfatória.

Ou seja, há ainda uma lacuna?

João – Sim, sinto isso. Está melhor e é graças muito ao que o Tiago estava a dizer. Ao trabalho dos ativistas e da visibilidade das pessoas LGBTI e da marcha que tem crescido de ano para ano, mas em relação a respostas de órgãos oficiais ainda não é satisfatória de todo. Nunca, por exemplo, num consultório médico, me foi perguntada a minha orientação sexual, foi sempre assumido que era heterossexual. Nas escolas, ‘n’ professores que eu conheço não têm conhecimento sobre os termos.

É então importante, neste momento, questionar todas as pessoas sobre a sua identidade, género ou orientação sexual?

João - Sim, pelo simples facto de que é assumido que todos somos heterossexuais por natureza. E eu, por não fazer parte dessa expectativa que é criada, tenho de estar sempre a dizer isso. Porque é sempre assumido e eu tenho sempre de me estar a colocar no lugar de ‘eu não faço parte, eu não sou assim’.

Tiago – O João contou-me uma história que é bastante demonstrativa disso. Ele foi ao médico há uns meses, a um médico a que nunca tinha ido e depois de se sentar…

João – Antes de me sentar até… O médico de forma tranquila e quase inconsciente disse-me: ‘Então como é que isso anda da caça [um trocadilho com o apelido Caçador], de mulheres, namoradas’. Eu ainda nem me tinha sentado na cadeira do consultório e já me sentia um ladrão. Criou uma expetativa em cima de mim que eu não ia cumprir. Foi algo que me fragilizou e que me deixou vulnerável. Eu assumir que sou homossexual não é uma questão clubística. Eu sabia que era uma coisa que o ia deixar desconfortável. E eu, que sou uma pessoa tão ativista, tão fora do armário, naquele momento senti-me fragilizado e incapaz de, até ao final da consulta, interromper e dizer. E ele sempre a perguntar como eram as minhas práticas sexuais e tudo mais e eu sempre incapaz de contrariar essa expectativa. Por exemplo, desde pequeno, que os meus pais me perguntavam por namoradas e sempre assumiram que eu era heterossexual, daí essa necessidade de constantemente estar a reafirmar ‘eu não sou heterossexual, sou homossexual’. E hoje fazem a mesma coisa com os meus sobrinhos. À minha sobrinha estão sempre a perguntar: ‘Então e namoradinhos?’. E é essa expectativa e essa normalização em tudo. Nos transportes públicos, no médico, na escola. Em todo o lado.

Tiago – Por isso é que é também importante que pessoas com visibilidade e com posições políticas, na arte ou seja onde for se assumam. Nós não estamos a bater palmas por ela dizer que é lésbica, é por ter a capacidade e a coragem de dizer, sabendo que isso poderá trazer repercussões que não são muito positivas para elas mas que, para quem está a ver, para nós, para a nossa comunidade, para as pessoas que estão a crescer, para os miúdos de 11/12 anos que estão a começar a achar que são gays, é muito importante. É completamente diferente a forma como as pessoas crescem, as possibilidades que vêem para elas próprias.

Lembro-me que quando tinha 12/13 anos, tinha a certeza nesse momento que ia morrer de SIDA. Ou seja, quando comecei a perceber que era homossexual era óbvio, para mim naquele momento, que ia morrer de SIDA. E muitas outras coisas eram óbvias. Que nunca ia poder dizer à minha família, que nunca ia ser feliz, que nunca ia ter uma relação estável, que nunca ia ter filhos. Uma série de crenças que nos são passadas por essa falta de visibilidade. Eu não via outras pessoas homossexuais quando era pré-adolescente que não tivessem SIDA, que fossem felizes, que tivessem família, mas elas existiam. Se elas fossem visíveis nessa altura, se tivessem vindo à televisão e tivessem dito ‘eu sou homossexual’, tinha ajudado muito.

João – É que há um contexto. Não podemos dissociar a ideia de assumir, obviamente se fosse num mundo em que não houvesse homofobia, não havia necessidade de assumir. É num contexto concreto de violência diária que estas pessoas sofrem. A própria ideia das marchas e do assumir, é muito mais do que um orgulho e da ideia do orgulho gratuito. É a marcha da não vergonha, uma vergonha que nos foi incutida desde pequenos sobre a nossa identidade, essa marcha em ocupação do espaço público é uma manifestação de não vergonha e não de um orgulho gratuito.

Ainda este mês vamos iniciar uma campanha de crowdfunding para nos ajudar a gravar o álbum porque nós não estamos, nem queremos neste momento, estar ligados a nenhuma editora. Queremos fazê-lo independentemente

O João continua a tocar em casas de fado tradicional certo? Quais são as principais diferenças? E sentiu algum preconceito desde que abraçou o projeto Fado Bicha?

João - Sim, ainda ontem [em referência ao dia em que foi feita a entrevista] toquei na Tasca do Chico. É uma dualidade. Já passou por várias fases. Foi super tranquilo. Depois não foi nada tranquilo. Houve fadistas que deixaram de me falar por saberem que faço o Fado Bicha. Agora está novamente numa fase um bocadinho mais tranquila, mas as casas de fado continuam a ser um ambiente conservador. Como sei que não crio muita empatia quando falo do Fado Bicha, por mais que me esforce em explicar o exercício artístico, a construção, a simbologia, a representatividade do que é o Fado Bicha, não abraçam essa ideia. Portanto, tento abstrair-me um bocadinho e sobre muitos temas. O racismo, a homofobia, sobre o direito ao prazer, sobre a igualdade de género, sobre o feminismo. São temas que procuro não ter nas casas de fado, porque não me identifico com o pensamento e com as correntes.

Tiago – Acho que fazer um bocado uma cisão, não é? Quase como se fosses visitar uma realidade que já foi a tua e que entretanto deixou de ser.

João – Mas se tivesse de optar não havia dúvidas, escolhia o Fado Bicha.

E o Tiago? Também tem em braços outros projetos?

Tiago – Não, nós estamos 100% dedicados ao Fado Bicha. Mesmo o João vai tocar e cantar a casas de fado pontualmente. Ainda este mês vamos iniciar uma campanha de crowdfunding para nos ajudar a gravar o álbum porque nós não estamos, nem queremos neste momento, estar ligados a nenhuma editora. Queremos fazê-lo independentemente. Já temos um produtor que é o Moulinex e que vai produzir o nosso álbum. Já começámos a trabalhar com ele e vai ser mês a mês a ver quanto é que angariamos.

E quando é esse lançamento?

Tiago – Em princípio será em março de 2020.

A música de campanha do Livre é vossa. São apoiantes deste partido? O que é que a deputada Joacine Katar Moreira vai trazer de novo à nossa sociedade?

Tiago - Não somos militantes, mas fomos apoiantes. Eu gosto muito da Joacine pessoalmente. Nós tornámo-nos amigos dela ao longo deste processo. Eu já a conhecia antes de ela me conhecer a mim. Conheci-a enquanto presidente da IMUNE, que é um instituto da mulher negra em Portugal, principalmente, através das ‘Conversas às Escuras’, que são entrevistas que a Joacine faz com mulheres negras relevantes na nossa sociedade. Já a conhecia através de artigos que ela escrevia também. Já a admirava tanto que incluí o nome dela na letra ‘Lisboa Não Sejas Racista’. Ela foi uma das três ativistas, assim como a Beatriz Gomes Dias, que foi eleita pelo Bloco, e o Mamadou Ba que, infelizmente, não era candidato. Quando surgiu o convite para escrever a letra e para cantarmos a música, a melodia já estava feita pelo André Teodósio.

Quanto àquilo que eu acho que a Joacine vai trazer seguramente de bom é, em primeiro lugar, toda esta simbologia de entrada de mulheres negras no Parlamento pela primeira vez enquanto deputadas, ela, a Beatriz e a Rumoalda Fernandes, tudo mulheres ligadas à Esquerda e ativistas anti-racismo. Acho que é um momento simbólico. É claro que as pessoas não valem enquanto políticas, nem enquanto nada, pela sua cor, por pertencerem a uma etnia ou por outra coisa qualquer, mas não podemos deixar de ressalvar o momento simbólico e aquilo que s ignifica. Isto não aconteceu agora porque só agora é que as mulheres negras começaram a ter capacidade de pensar sobre o país. Aconteceu agora porque só agora é que lhes foi dada a possibilidade de serem eleitas.

A Joacine, mais especificamene, apresentou três requisitos para o Livre considerar fazer uma coligação com o PS. Um deles era considerar fazer a revogação da nacionalidade, o outro era a subida do ordenado mínimo para 900 euros, porque é muito difícil uma pessoa viver com 600/ 700 euros, isso é uma sobrevivência, não é vida. E o terceiro era a inclusão de profissionais de psicologia em todos os centros de saúde de Portugal. Eu estudei psicologia e a saúde mental é o parente pobre da saúde que, já em si, é um parente pobre em Portugal atualmente. O Sistema Nacional de Saúde está em pré-rutura e a saúde mental é, ao mesmo tempo, um parente pobre e um parente rico no sentido em que está completamente elitizada em Portugal. Só as pessoas que têm uma determinada capacidade financeira conseguem de facto assegurar uma saúde mental de continuidade e eficaz a si e aos seus.

Fiquei mesmo muito surpreendido pela Joacine ter apresentado esta medida como uma bandeira tão importante, mas acho que é super necessário e está ligada a muitas outras questões difíceis na nossa sociedade, inclusivamente à violência, à violência de género. A depressão é uma epidemia, portanto, acho que é estritamente necessário que se olhe para a saúde mental de forma muito concreta e que se tomem medidas para que ela seja universalizada e que deixe de ser elitizada.

Que mensagem é que gostariam de deixar aos jovens que lutam diariamente com uma sociedade estereotipada?

João – A mim ajudou muito círculos de comunidade LGBTI, de semelhantes, com as mesmas vivências. E informação. Sinto que quanto mais informação tenho sobre os conceitos, sobre os processos de opressão, de violência, sobre os processos de resistência, conhecimento de cultura queer. Quanto mais representações eu tenho, quanto mais conhecimento tenho, melhor me sinto comigo próprio, melhor percebo o meu lugar no mundo, melhor me aceito, melhor é a minha vivência. Uma das coisas que mais me ajudou foi o conhecimento.

TiagoOuvir…

João – Sim criar essa rede de escuta e de fala foi a melhor coisa.

Tiago – Infelizmente isso não está disponível pelo menos numa lógica de proximidade para os jovens do país inteiro, está mais concentrado nos centro urbanos. Mas a internet tem resultados muito positivos nesse sentido. Há associações, há grupos que fazem esse apoio. A Rede Ex Aequo, a Associação de Jovens LGBTI e apoiantes que até está bastante espalhada pelo país e que responde às necessidades desses jovens. Tens ainda as Panteras Rosa, alguns mais descentralizados. A mim também o que me ajudou, porque tive um período de bullying muito forte durante a escola preparatória, porque no secundário foi-se amenizando ou pelo menos assumiu outras formas, deixou de ser tão física, por exemplo, e tão violenta. Mas depois, a partir da faculdade, também tive, o privilégio de encontrar uma série de pessoas com quem me pude desenvolver, partilhar, ouvir experiências e ir-me fortalecendo ao longo do tempo. A internet pode ser um veículo facilitador dessas relações. A única receita que poderíamos de facto dar é a pessoa tentar encontrar outras pessoas que sejam da comunidade e que possam apoiá-la na situação particular pela qual está a passar.

Onde e quando são os próximos concertos?

Tiago - O próximo concerto será dia 19 de outubro [amanhã] em Viseu, vamos cantar na festa da marcha do orgulho, no Carmo 81, que é um centro cultural. Dia 6 de novembro vamos fazer um concerto no Chapitô, em Lisboa, para assinalar o centenário do nascimento de Sophia de Mello Breyner, com uma convidada que é a Cláudia Jardim que é uma atriz do Teatro Praga e que vai declamar poemas da Sophia. No dia 16 de novembro, vamos continuar com as festas temáticas regulares ‘Fado Bicha Convida’, no Espaço Todo o Mundo, na Avenida Duque de Loulé, em Lisboa. Já fizemos uma com vários convidados e em novembro vamos fazer assim a número 2. A 31 de outubro vamos estar em Liverpool, no festival Homotopia, que é o festival LGBTI mais antigo do Reino Unido.

Campo obrigatório