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"Fui ingénuo. Mourinho disse-me 'Fica comigo', mas não o ouvi e saí"

Em entrevista exclusiva ao Desporto ao Minuto, Hamit Altintop recorda como foi trabalhar com o Special One em Madrid, e aconselha Cristiano Ronaldo a abandonar a seleção portuguesa após o Campeonato da Europa.

"Fui ingénuo. Mourinho disse-me 'Fica comigo', mas não o ouvi e saí"
Notícias ao Minuto

19/02/20 por Carlos Pereira Fernandes

Desporto Exclusivo

Aos 37 anos, e após passagens por alguns dos principais clubes do futebol europeu, como é o caso de Real Madrid e Bayern Munique, Hamit Altintop permanece intimamente ligado ao desporto-rei, mas enquanto parte ativa fora das quatro linhas.

O Desporto ao Minuto chegou à fala com o agora membro da direção da Federação turca, que repassou os momentos mais marcantes da carreira, desde os primeiros toques dados em Gelsenkirchen na companhia do irmão, Halil.

O também embaixador da final da Liga dos Campeões, que se disputa a 30 de maio no Estádio Olímpico de Ataturk, em Istambul, abriu o livro e admitiu guardar boas memórias dos tempos passados com José Mourinho no Real Madrid.

Hamit Altintop, que 'pendurou as chuteiras' em 2018, não poupa, ainda, nos elogios a Cristiano Ronaldo, e chega mesmo a deixar-lhe um conselho... que certamente não cairá bem junto dos mais ávidos adeptos da equipa das quinas.

José Mourinho criou o patamar seguinte para os treinadores

Nasceu em Gelsenkirchen. É um lugar muito especial para o futebol português...

Eu sei, eu sei. Por causa da final de 2004, que venceu o FC Porto.

Recorda-se desse jogo?

Sim, lembro-me. Toda a gente estava surpreendida com a final entre o FC Porto e o Monaco. Mas o futebol é apaixonante porque não sabes o que acontece quando a bola começa a rolar, percebes? Podes jogar muito bem durante 90 minutos e perder.

Foi a primeira Liga dos Campeões da carreira de José Mourinho. Como foi trabalhar com ele?

Mourinho é um caso curioso... Há 10 ou 15 anos, criou o patamar seguinte para os treinadores. Penso que, com ele, começaram a aparecer treinadores mais respeitáveis. Vês isso pelos novos contratos dos treinadores, com estes ordenados. Tornou também essa faceta num mundo do espetáculo. É como na escola... Se um professor é bom, tens uma boa educação. Mourinho é assim. Ele sempre colocou o coração, o 'corazón', neste negócio.

Muitos dizem que não é um treinador simples de se trabalhar...

Não, não é fácil... Mas por que é que não é fácil? Porque quer sempre ganhar. Coloca essa pressão, mas se tens essa mentalidade, se queres sempre o melhor, é fácil. Nas palestras e nas conferências de imprensa, se ele fala de futebol, vais sempre aprender. Para alguns jogadores ou treinadores, por vezes, pode parecer demasiado, mas gosto dele. Neste negócio, tem emoção, consegue sentir o que se passa, consegue perceber os adeptos e a comunicação social. Abrange todos os tópicos de que o futebol precisa.

Foi Mourinho que pediu para que assinasse pelo Real Madrid?

Foi o primeiro a falar comigo. Estava livre de contrato após boas passagens por Bayern Munique e Schalke 04. Era um jogador de equipa, conseguia jogar a lateral-direito, no meio-campo, a extremo... Tive algum azar porque sofri uma lesão grave. Mas ele conhecia-me muito bem. Quando estava em forma, era muito importante para a equipa.

O Real Madrid tinha jogadores como Xabi Alonso, Kaká ou Khedira. Se não fosse a lesão teria sido possível lutar pela titularidade?

Claro que sim. Acredita, no meu melhor período, com a confiança e a condição física em alta, era tal e qual esses jogadores. O meu problema não era a concorrência ou a equipa, era o meu corpo. Perdi confiança no meu corpo, perdi o meu poder. Não conseguia jogar como joguei no Bayern Munique ou no Schalke 04. Mas foi uma boa experiência, conheci pessoas muito boas, como Mourinho e a sua equipa técnica, o presidente [Florentino] Pérez, Butragueño... Tive a oportunidade de jogar com Iker Casillas e Cristiano Ronaldo. A história não foi tão bela, mas a experiência com o clube e os companheiros de equipa foi ótima, e estou muito grato.

Apesar desse problema, esteve em jogos importantes, como contra Barcelona ou Ajax. Sentiu que era um jogador especial para Mourinho?

Ele deu-me a confiança de que precisava para regressar. Quando joguei, não joguei mal. Estive muito bem. Ninguém se interessa verdadeiramente por aquilo que fazes nos treinos... Trabalhei sempre bem nos treinos sabendo que havia essa pressão de jogar sempre com alta intensidade e concentração. O futebol não é só 11 jogadores. O futebol é todo o plantel, com 25 ou 30 jogadores. Tínhamos um bom espírito de equipa. O chefe era Mourinho, e ele esteve bem. Vencemos La Liga e quebrámos aquele período de domínio do Barcelona. Antes o Barcelona ganhava tudo, mas Mourinho quebrou isso.

Foi simples tomar a decisão de deixar o Real Madrid?

Foi simples... Tive um mau início devido à cirurgia às costas, mas sentia que tinha de partir para Istambul, porque o Galatasaray tinha grandes objetivos. No final, foi uma boa experiência. Depois do Real Madrid, sofri muito com lesões, mas, ao cabo de toda a minha carreira, aprendi muito. Agora, posso partilhar tudo isso no meu novo papel enquanto membro da direção da Federação turca. Sou responsável pelas camadas jovens e faço o que quero.

Notícias ao MinutoAltintop e Ricardo Carvalho numa disputa de bola com Lionel Messi© Getty Images

Estava muita gente fora do Bernabéu, talvez 50, 60 ou 70 mil pessoas. Pensei 'Por que é que esta gente não vai para o estádio?'. Mas depois entrámos e estava cheio

Jogou com vários jogadores portugueses no Real Madrid, como Cristiano Ronaldo, Pepe, Ricardo Carvalho... Mantiveram uma boa relação?

Penso que também consegues sentir que somos muito próximos do ponto de vista da mentalidade [risos]. Somos um pouco relaxados, ao contrário dos tradicionais países europeus. Queremos desfrutar da vida e não estarmos sempre tão rígidos. Temos muita paciência com algumas coisas. Também joguei com o Bruma e senti o mesmo. Somos próximos uns dos outros. O Pepe era uma excelente pessoa, assim como o Fábio Coentrão, e o Cristiano é fantástico.

Aos 35 anos, Cristiano Ronaldo continua a jogar ao mais alto nível. Tendo jogado com ele, surpreende-o?

Ele marcava muitos golos e era o melhor exemplo para nós. Ele gosta de trabalhar, está sempre concentrado e tem constantemente novos sonhos e objetivos. Penso que também está rodeado de uma boa equipa, com o empresário e a família. Ele trabalha com pessoas muito profissionais nos campos da estatística e da medicina. Aí, é o melhor.

Agora, enquanto antigo jogador, tenho de lhe fazer esta pergunta: Cristiano Ronaldo ou Messi?

Para mim, Ronaldo. Joguei com ele, claro, temos uma história juntos, mas ele jogou por clubes diferentes e esteve sempre bem. Messi também é ótimo, tem um pé esquerdo fantástico, é muito inteligente no relvado, talvez como o Cristiano. Mas o Cristiano não trabalha só no relvado, é um tipo responsável fora dele também. Faz muitos trabalhos solidários, quer ajudar os mais velhos, precisa disso. Por causa disso, para mim, é mais líder e tem um caráter muito forte.

Falava-me há pouco da rivalidade entre Real Madrid e Barcelona. Quão importante foi aquele título conquistado por Mourinho?

Após vários anos, conquistámos o campeonato e foi muito importante para La Liga, no geral. Com o Barcelona a ganhar era um pouco aborrecido [risos]. Para o Real Madrid, a atmosfera que se viveu foi muito importante. Depois disso, as pessoas passaram a ter mais confiança no clube e nos jogadores, que depois acabaram por também ganhar com Ancelotti e Zidane. Tudo começou com Mourinho.

Jogou contra o Barcelona. Como foi viver aquele ambiente?

Lembro-me bem. Foi o primeiro jogo dos quartos-de-final da Taça do Rei, no Santiago Bernabéu. Fiquei surpreendido porque, fora do estádio, estava muita gente, talvez 50, 60 ou 70 mil pessoas. Pensei 'Por que é que esta gente não vai para o estádio?'. Mas depois entrámos no estádio e estava cheio! Muita gente adora estes clubes, e isso gera mais negócio, mais interesse da comunicação social. Tudo faz parte deste negócio. Muitos milhões de pessoas em vários países veem este jogo. Isso cria mais pressão e obriga-nos a estar mais focados. Os melhores jogadores do mundo estão lá. Há tantos milhões de pessoas que sonham ser jogadores de futebol, mas só 50 conseguem chegar a Real Madrid e Barcelona. Se perguntas a um jogador, ele diz-te que quer jogar no Real Madrid ou no Barcelona. Percebi mais isso depois do final da minha carreira do que enquanto jogador.

Depois do Real Madrid, seguiu-se o Galatasaray. Como foi jogar na Turquia?

Jogar na Turquia parece fácil, mas é complicado. Se seguires o campeonato turco, vês que há muita emoção, ação e energia, mas não as conseguimos usar da melhor maneira. Talvez seja um pouco um problema na educação. Mas agora, com a nova direção da Federação, estamos focados na educação e no desenvolvimento dos jogadores. Para nós, é um grande objetivo construir um futuro melhor do que o presente.

Notícias ao MinutoHamit e Halil Altintop ao serviço do Schalke 04© Getty Images

Eu e o meu irmão partilhámos um quarto durante 20 anos

Regressando às suas raízes... Como foi para um jovem rapaz turco crescer na Alemanha?

A integração dos imigrantes na Alemanha era normal. Os meus pais chegaram lá em 1971, para trabalhar e juntar dinheiro. A Alemanha era a casa dos meus pais. Nasci lá, foi lá que tive a minha educação e a oportunidade para jogar. Tive bons professores, companheiros de equipa, vizinhos... Claro que, por vezes, as coisas são complicadas, mas, no geral, não foi mau. Estou feliz com a educação que tive e estou muito grato por esta oportunidade.

Teve a oportunidade de jogar por Turquia e Alemanha. Porquê a Turquia?

Tinha essa oportunidade, mas sou turco, os meus pais são turcos, falo turco, sinto-me turco. Consigo perceber, por vezes, que alguns jogadores prefiram jogar pela Alemanha, porque não têm esta ligação ao país dos pais, como eu. Mas tive sempre uma ligação ao meu país. Temos que respeitar as escolhas dos jogadores, mas sinto-me turco e é a minha realidade.

Jogou em várias posições durante a carreira, mas qual era a sua preferência quando começou a jogar?

Quando comecei nas camadas jovens, era líbero, como Lothar Matthaus. Pegava na bola, driblava todos e marcava [risos]. Foi a minha primeira posição, mas a partir dos 16 ou 17 anos o treinador disse-me que tinha que jogar a número 8 ou 10, porque era poderoso, rápido e conseguia jogar de área a área. Depois, aos 21, 22 e 23 anos, joguei mais como médio-defensivo, mas também a lateral-direito. Era um jogar muito completo. Nas minhas últimas épocas, depois das lesões, passei a jogar mais como um número 6 estratégico.

O seu irmão, o Halil, sempre jogou mais adiantado no terreno. Havia alguma rivalidade entre os dois?

Joguei com o meu irmão até aos 20 anos. Partilhámos um quarto durante 20 anos. Ele sempre foi mais atacante, marcava mais golos do que eu. Todos sabem que, enquanto jovens, é sempre mais difícil jogar em posições mais adiantadas, mas ele teve uma grande carreira, fez mais de 350 jogos na Bundesliga e teve cerca de 35 internacionalizações. Agora, é treinador e estou certo de quem tem talento mais do que suficiente para fazer uma boa carreira.

Ser treinador foi algo que nunca lhe passou pela cabeça?

Não, não. Sou membro da direção da Federação, foco-me na educação e no que se passa fora do relvado. O meu irmão está dentro do relvado, e é o melhor equilíbrio para a família [risos].

Como tem sido a sua vida desde o final da carreira?

Agora, tenho mais qualidade de vida. Estou casado, tenho quatro filho, e posso concentrar-me na família. Mas tenho o objetivo de criar um novo futebol turco. Vou partilhar a minha experiência com o futebol turco, e espero ajudar os jovens jogadores a terem uma melhor carreira do que eu. Também cometi erros durante a minha carreira. Talvez tenha sido um pouco ingénuo ao deixar o Real Madrid... Tinha mais três anos de contrato, mas saí. A escolha foi minha. Mourinho disse-me 'Fica aqui comigo. Talvez não sejas o jogador que eras antes, mas és muito importante para a equipa', mas não o ouvi e saí. O meu objetivo é ajudar os jogadores e os treinadores com a minha experiência nos últimos 20 anos.

É o embaixador da final da Liga dos Campeões deste ano. Acredito que seja um papel que o deixa orgulhoso.

Sim, claro. Estou muito orgulhoso. Esta oportunidade é muito importante para o futebol turco e para a nova geração. Esta talvez seja a maior final a nível mundial, e temos que dar esta motivação à nova geração, aos treinadores, aos árbitros, aos jogadores... Para que este negócio tenha uma qualidade superior nos próximos anos. Penso que temos muita qualidade, mas temos que perceber como a usar no sistema certo.

Como explicaria esta função?

Fui eu que me voluntariei. É importante perceber as raízes. Se jogas este desporto com as raízes, consegues torná-lo belo. Se o jogas sem raízes, podes torná-lo em algo de muito negativo. Sou o melhor exemplo, porque tive a minha educação na Alemanha, mas joguei pela Turquia. Fui internacional e estou aberto a novas experiências, a novas abordagens.

Tem alguma aposta quanto a quem serão os finalistas?

É sempre bonito ver antigos clubes na final. Se visse o Real Madrid e o Bayern Munique seria muito bom. Mas sou um adepto de futebol, desejo o melhor a todas as equipas. Desejo uma final como a de 2005 [vitória do Liverpool sobre o AC Milan no desempate por grandes penalidades], que foi inesquecível. Talvez a consigamos repetir, é o meu sonho.

O que é que os adeptos podem esperar desta final?

Istambul é uma cidade muito histórica, cultural e colorida. Fora dos relvados, temos boas infraestruturas, um novo aeroporto. Já estamos numa posição de elevada experiência em grandes eventos, como demonstrámos na final da Liga dos Campeões de 2005 e no Campeonato do Mundo de basquetebol. Temos também vários museus, é uma cidade histórica. Penso que todos devem estar aqui para comprovar quão bela é Istambul, quão simpático é o povo turco, quantas oportunidades este país oferece.

A final está a poucos meses de distância. Já se sente esse entusiasmo na cidade?

Este ano é muito importante para o futebol turco. Já nos apurámos para o Campeonato da Europa de 2020, tivemos a Supertaça, entre Liverpool e Chelsea, e agora temos a final da Liga dos Campeões. Temos de estar gratos e desfrutar deste período. Temos de festejar o futebol e de juntar todos estes belos aspetos. Temos feito tudo por esta final, temos essa responsabilidade, e percebemos quão importante é para quem nos visita. Agradeço à UEFA pela escolha que fez. Estou um pouco nervoso, mas é positivo [risos].

Notícias ao MinutoHamit Altintop ao lado de Cristiano Ronaldo no Real Madrid© Reuters

Penso que chega de seleção para Cristiano Ronaldo

Falando agora do Euro'2020, a Turquia irá defrontar Itália, Suíça e País de Gales. É um grupo complicado...

É um grupo muito complicado, mas estamos satisfeitos. O primeiro jogo, contra Itália, será bom para a motivação, porque toda a gente irá assistir. Itália é favorita, mas, se vencermos ou empatarmos, será ótimo. Depois teremos dois jogos em Baku, no Azerbaijão, que é como se fosse o nosso país-natal. Teremos muitos adeptos turcos no estádio e temos boas hipóteses de chegar à próxima ronda. Mas temos uma equipa jovem, com bons jogadores. Será uma boa experiência para o futuro desta equipa.

Até onde acha que a seleção turca pode ir?

Vamos ver... Veremos como corre o primeiro jogo e se conseguimos passar à próxima ronda. Precisamos de alguma sorte nestes jogos e nos sorteios. Vamos ver. Na fase de apuramento, por exemplo, vencemos França, que é a campeã do mundo. Num bom dia, podemos vencer qualquer adversário.

Tendo jogadores como Demiral, Soyuncu, Unal ou Under, há razões para acreditar que o futuro será risonho?

Sim, sim. Temos de proteger estes jogadores e dar uma boa formação à próxima geração. Temos de manter esta equipa unida para que seja possível dar os próximos passos.

Essa é, precisamente, a sua tarefa na Federação turca.

Exatamente. Vou apoiar e ensinar estes jogadores. Quero partilhar a minha experiência. Joguei na meia-final de 2008, por isso, por que não chegar à final este ano? O último Campeonato da Europa, que Portugal venceu, é um ótimo exemplo para nós. Não era a melhor equipa, mas, no final, conquistou a taça porque todos acreditaram que era possível. Foi uma história fantástica.

Qual vai ser o jogador mais importante para esta caminhada turca?

Temos vários jogadores muito importantes. Nestas alturas, o mais importante é o trabalho enquanto equipa. No futebol, se tens um bom guarda-redes e um bom avançado, consegues fazer a diferença [risos].

E Portugal? Tem o que é preciso para revalidar o título?

Preservar este título é muito difícil... Mas Portugal tem uma equipa muito equilibrada. Tem jogadores jovens, mas também jogadores com muita experiência. Isso pode fazer a diferença, mas será preciso um elevado desempenho. Tendo o Cristiano, tudo é possível.

E vai ser a última grande competição de Cristiano Ronaldo pela seleção?

Penso que chega de seleção para o Cristiano [risos]. Tem de dizer 'Vou focar-me no meu clube', que será o melhor para ele. Com tantos jogos, o corpo dele precisa de descanso, de equilíbrio. Mas ele conhece o corpo dele melhor do que eu e do que qualquer um. Sei que vai tomar a decisão mais acertada.

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