"Espero que Marega não se transforme num herói de um dia"
Mamadou Ba, dirigente do SOS Racismo, é o entrevistado de hoje do Vozes ao Minuto.
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País Mamadou Ba
Nos últimos dois meses, o debate sobre o racismo, em Portugal, voltou a ser recorrente no espaço público devido ao assassinato do jovem estudante de Bragança, Luís Giovani, e à polémica detenção levada a cabo pela PSP de uma mulher - Cláudia Simões -, na Amadora. Entre manifestações e reivindicações, esta semana, o ataque racista ao futebolista do FC Porto, Moussa Marega, mostrou que a questão racial no país continua a marcar o início de 2020.
Em entrevista ao Notícias ao Minuto, Mamadou Ba, ativista anti-racista e dirigente do SOS Racismo, faz uma análise destes recentes episódios, sublinhando a impossibilidade de adiar mais a criação de políticas públicas concretas que enfrentem o racismo em Portugal de uma "forma estrutural".
Reforçando que a existência de racismo por cá já deu provas suficientes de ser "uma realidade transversal" a todos os espaços da nossa sociedade, o responsável reitera serem insuficientes as "medidas avulso" levadas a cabo pelos governos e pelos partidos, nos últimos anos, no combate ao racismo.
Passando pela sua desvinculação do Bloco de Esquerda até à sua opinião sobre a retirada de confiança política do Livre a Joacine Katar Moreira, Mamadou Ba fala ainda de uma esquerda adormecida, que tem de rapidamente enfrentar a ascensão da extrema-direita no país, para um dia não "acordarmos num pesadelo".
O Marega foi, de facto, um herói. Mas espero que não se transforme num herói de um dia porque o combate ao racismo não pode ser um homem sozinho a enfrentar o problemaA condenação dos insultos racistas a Marega foi generalizada no espaço público. Considera que este episódio demonstrou uma maior intolerância ao racismo por parte da sociedade portuguesa?
O Marega foi, de facto, um herói. Mas espero que não se transforme num herói de um dia porque o combate ao racismo não pode ser um homem sozinho a enfrentar o problema. Não podemos esquecer, que houve uma certa passividade demonstrada pelos seus colegas e pelos responsáveis do jogo no momento em que se deram os insultos. A partida devia ter parado e não parou. Não há nenhum espetáculo que esteja acima da dignidade de qualquer pessoa. Também esperamos que as autoridades e as entidades responsáveis, como a Federação Portuguesa de Futebol, a Liga de Futebol e a própria tutela punam o clube e os criminosos. Há que ter em mente que não é (nem de longe) a primeira vez que há um caso de racismo no futebol ou no desporto. Acho que chegou a altura classificarmos o racismo como um crime público, de uma vez por todas. Se já fosse um crime público, o que se passou com o Marega podia ter sido tratado com uma intervenção muito mais rápida e eficaz.
Sobre a atuação de Marega, o que se percebeu é que não basta as pessoas ficarem sentadas e manifestarem indignação pelo racismo. Nunca vamos conseguir combater o racismo só com intenções, declarações ou com frases bonitas, tem de haver medidas concretas de alteração do quadro jurídico que torne a Lei muito mais dissuasiva de práticas racistas..
Espero que este episódio que sirva para catapultar uma transformação de que precisamos. Quero também ressalvar que o primeiro-ministro esteve muito bem nas declarações que fez sobre o caso. Contudo, ainda houve pessoas, como André Ventura, que vieram dizer que não houve nenhum ataque racista contra Marega. E, por isso, deve perceber-se que temos de estar convictos e não dar nenhuma abébia a nenhum espaço que permita a banalização ou a desvalorização do racismo. Qualquer ato de racismo , seja onde for ou por quem for, tem de ser tratado pelo aquilo que é: um ataque à dignidade humana e à democracia. Marega disse basta, agora, o que se espera é que toda a sociedade diga com Marega: Basta!
Olhando agora umas semanas para trás, considera que o caso de Giovani foi também um catalisador que deu força à realização do protesto contra a violência policial, na sequência da detenção de Cláudia Simões?
Sim, considero que deu porque o caso do Giovani evidenciou aspectos que estavam ausentes do debate público sobre racismo. Durante muito tempo, os portugueses convenceram-se de que quem se manifestava sobre a questão racial eram mais jovens, nascidos em Portugal, residentes em bairros periféricos, que eram confrontados sistematicamente com racismo. Havia a ideia de que o racismo era uma realidade confinada e que era exagerada por estes sujeitos porque havia outras pessoas racializadas no país que nunca se queixavam de racismo. O facto do Giovani ser um estudante, negro, de uma zona do Interior do país, no Norte de Portugal, são elementos novos. E ao ter havido um silenciamento sobre a sua morte e ao ter acontecido longe dos epicentros do racismo no país provou uma coisa, que já era óbiva para muitas pessoas: a questão racial é uma realidade transversal na sociedade portuguesa e que já não há condições para continuarmos a segmentar o racismo e a dividir os seus focos, dispersando-o da sua afirmação no espaço público.
O caso do Giovani mostrou-nos que o racismo tem uma porosidade em todos os espaços da sociedade portuguesaEntão, defende que o caso do Giovani foi também uma tomada de consciência coletiva tanto para as próprias comunidades racializadas como para a população em geral?
Sim, essa bolha acabou. O caso do Giovani mostrou-nos que o racismo tem uma porosidade em todos os espaços da sociedade portuguesa. E, o facto de esses segmentos das comunidades racializadas terem sentido a necessidade de se mobilizar, também tem a ver com uma situação antecedente: o caso do Bairro da Jamaica. Há, claramente, uma relação de pertença social entre os jovens que se manifestaram no dia 21 de janeiro de 2019 [caso da Jamaica] e os que se manifestaram no dia 11 de janeiro de 2020 [caso do Giovani] e há também outra ligação, que é o espaço académico. Estes pontos em comum mostram ainda que, finalmente, temos vindo a ganhar corpo político na forma como o racismo se discute no espaço público.
Outro fenómeno que é preciso sublinhar é que tanto nas mobilizações referentes ao caso da Jamaica, como do Giovani e de Cláudia Simões, deparámos-nos com muitas pessoas a manifestarem-se pela primeira vez. Aliás, no protesto de dia 1 de fevereiro, uma senhora da Quinta do Mocho disse que era a primeira vez que tinha vindo a uma manifestação e que falava em público e que tinha vindo porque já não podia mais ficar calada. Esta cidadã disse que sempre achou que estas situações estavam localizadas mas ao olhar para as histórias de Giovani e Cláudia Simões percebeu que não. Estas palavras foram muito representativas daquilo está a acontecer mas, sobretudo, diz algo muito revelador: Esta mulher também mencionou a deputada Joacine Katar Moreira, como uma vítima de racismo. Esta menção é muito importante porque significa que estas pessoas, que antigamente pensávamos que estavam arredadas do debate público sobre a questão racial, já estão dentro e sabem como está a ser discutida a questão racial. Isto é muito importante.
Não esquecendo a manifestação em 12 de fevereiro de 2015 à frente a Assembleia da República sobre violência policial e o caso da esquadra de Alfragide, verificamos que há toda uma cadência, uma uma cronologia de continuidade da capacidade de mobilização das comunidades racializadas que também demonstra que se este debate está assim tão presente e tão crispado na opinião pública é porque realmente quem é vítima já toma a palavra e já tem uma voz sobre debate. É uma grande mudança.
Aquele aparato passou uma péssima mensagem porque a manifestação era sobre violência policial e polícia a decidiu ir para uma manifestação de arma em punhoNa manifestação em nome de Cláudia Simões considerou que houve um "aparato policial assustador". Achou excessiva a presença da polícia no protesto em comparação com as mobilizações anti-racistas anteriores?
Na mobilização pelo Giovani, não tanto. Mas, no caso de Cláudia Simões houve duas circunstâncias sobre a atuação da força policial muito estranhas, a meu ver. Primeiro, não me lembro de alguma vez ter visto um sindicato da polícia [ASPP/PSP - Associação Sindical dos Profissionais da Policia] emitir um comunicado que, na minha opinião, foi um aviso. Esta nota, que tinha uma linguagem bastante peculiar e uma mensagem longe do que deve ser o papel de uma estrutura sindical, dizia que o sindicato não iria permitir acontecer o que se passou nas manifestações relativas ao caso de Alfragide e da Jamaica, no caso de Cláudia Simões, garantindo que poria qualquer pessoa no devido lugar. Ora, isto foi uma ameaça clara.
Depois, para além desta posição inédita e incompreensível, para não dizer outra coisa, a direção nacional da PSP veio logo solidarizar-se com o agente [que realizou a polémica detenção de Cláudia Simões], alinhando-se também com o discurso do sindicato sobre aquilo que consideravam ser a mediatização do caso. O dispositivo policial correspondeu a este aviso, mesmo depois de no próprio comunicado entregue à autarquia a dar conta da realização da manifestação estar escrito que era um protesto pacífico e mesmo depois de termos tido uma reunião com as autoridades a explicar o objetivo daquela mobilização.
Aquele aparato passou uma péssima mensagem porque a manifestação era sobre violência policial e polícia a decidiu ir para uma manifestação de arma em punho. Isto foi para além da intimidação, foi na lógica de confronto. Não é o que se espera da PSP.
Espero que a polícia e os sindicatos entendam que o seu inimigo não são os pobres ou as pessoas racializadas, mas sim quem lhes nega os direitos e condições de trabalhoAcha que as forças policiais foram um elemento dissuasor daquela manifestação?
Claro. Acho que aquele aparato e o próprio aviso do sindicato foram dissuasores do exercício de cidadania. Foi um protesto muito claro em termos de reivindicações: 'Não queremos ter medo da polícia’. Acho que se a polícia se visse ao espelho com estas palavras, que estavam escritas em cartazes, deveria sentir-se envergonhada com a postura que teve porque foi agressiva e provocatória. Espero que a polícia e os sindicatos entendam que o seu inimigo não são os pobres ou as pessoas racializadas, mas sim quem lhes nega os direitos e condições de trabalho. É bom que percebam que em democracia a polícia não deve substituir o poder político. A polícia tem de mudar a sua atitude e o seu comportamento se quer participar democraticamente numa sociedade em que as pessoas são livres e respeitadas com igualdade.
Ainda sobre o caso de Cláudia Simões, o novo diretor nacional da PSP considerou que o vídeo da detenção mostra “um polícia a cumprir as suas funções” e o que aconteceu depois será devidamente esclarecido no âmbito do processo crime e processo disciplinar a decorrer na IGAI. Como vê estas palavras?
As palavras do novo director nacional da PSP são absolutamente insultuosas para as vítimas de violência racial e para com o respeito pela integridade física e moral das pessoas que são vítimas de violência. É uma afronta à democracia. Se o diretor nacional da PSP diz que não vê violência naquelas imagens está literalmente a passar uma carta branca a certos polícias para continuarem a usar e abusar da força, muitas vezes, por motivos racistas. O novo diretor da PSP deixou claro não quer enfrentar a questão da violência policial e racial na força policial.
Quando assumiu funções, começou por dizer que iria responsabilizar agentes que tenham “comportamentos discriminatórios”.
Há aqui uma contradição nas suas palavras que me parece resultar de uma questão muito mais estrutural: A polícia sempre se recusou a admitir que tinha este problema e, tal e qual como a sociedade, instalou-se num estado de negação permanente sobre a existência do racismo. Depois, é completamente absurdo ter afirmado que não vê uma infiltração da extrema-direita na força policial quando há efetivamente um movimento social de extrema-direita, o Movimento Zero, organizado no seio da sua instituição que capturou um sindicato, o Sindicato Unificado da PSP. Se o diretor nacional não vê estes fenómenos, não tem condições para desempenhar aquele cargo, lamento. Ou há uma seriedade na forma como o diretor encara este problema ou então estará a ser conivente com a extrema-direita, o que revela que não tem condições para desempenhar o cargo em causa.
Como é que explica que a extrema-direita esteja a conseguir infiltrar-se na força policial e de segurança?
Há dois fatores que podem explicar esta infiltração. O primeiro, devido a uma degradação das condições laborais das forças de segurança que são transversais às da Função Pública. Depois, na minha opinião, enquanto sociedade, temos vindo a demitir-nos da nossa própria responsabilidade no que diz respeito à reparação das desigualdades e passámos a achar que podemos usar a polícia como um tampão para solucionar estes problemas sociais, sobretudo os relacionados com o factor racial. Ora, a polícia não tem como função resolver os problemas da desigualdade social. Se a polícia se transformar numa espécie de sentinela do sistema acabará por tornar-se num instrumento que leva com o choque com que a sociedade reage às dificuldades sociais.
Ou seja, enquanto a sociedade não for capaz de entender que não é através da repressão que se vai conseguir estancar o conflito social, atirando para cima de quem sofre mais com a desigualdade, a polícia vai ser vista como um instrumento mais atrativo para pessoas e cidadãos que tenham propensão para o autoritarismo.
Por fim, o facto de termos durante muito tempo estado adormecidos sobre a retórica pública de alguns agentes políticos que visavam precisamente determinadas comunidades racializadas é um fator indissociável.
A quem e sobre que narrativas é que se refere?
Refiro-me, por exemplo, a toda a retórica que se fez à volta do Rendimento Social de Inserção (RSI), contra a comunidade cigana levada a cabo por Paulo Portas. Refiro-me ao que foi toda a engenharia criada sobre a perigosidade de certas zonas periféricas das nossas grandes cidades trazidas por políticos, até com responsabilidades governativas.
Temos de perceber quem é que tem de pagar a fatura do crescimento da extrema-direita ou do populismo em Portugal. Lembro-me também de que quando foi aquele arrastão, que não existiu, na praia de Carcavelos, [em 10 de junho de 2005] tivemos figuras gordas da nação a apelarem para uma mão dura das forças de segurança contra esses 'bandidos' das comunidades racializadas. António Capucho (PSD), que era na altura presidente da Câmara Municipal de Cascais, disse que era preciso repor a ordem pública. Este tipo de declarações e manipulação da opinião publica foi crescendo contra determinadas comunidades da nossa sociedade. E agora conseguiu ter um intérprete na Assembleia da República.
Refere-se a André Ventura. Considera, portanto, que o líder do Chega instrumentalizou um racismo que foi promovido e legitimado no espaço público?
André Ventura conseguiu perceber que havia debilidades nas condições laborais das forças policiais e de segurança, que havia problemas de desigualdades na sociedade - sobretudo nas camadas mais baixas que se sentem abandonadas e desprotegidas - que o tema da corrupção era apelativo. Juntando todos estes ingredientes poderosos, o ex-vereador conseguiu manipular completamente a opinião pública e mobilizar uma parte da sociedade, que acha que a solução dos seus problemas de fragilidade social passa pelo aumento do autoritarismo do Estado.
André Ventura já é o megafone da ciganofobia estrutural no nosso país e acho que, no dia em que o deixarmos a falar sozinho, ele irá tornar-se mais do isso, irá tornar-se no megafone do racismo estrutural do paísPor falar no deputado único do Chega, após o parlamentar ter afirmado que Joacine Katar Moreira devia ser “devolvida ao seu país de origem”, o SOS Racismo repudiou as declarações em causa. Em comunicado, apelou a todos os órgãos de soberania e forças político-partidárias que manifestassem "repúdio pelas declarações extremistas e racistas" de André Ventura. Os partidos lamentaram o "episódio infeliz da democracia" mas decidiram não avançar para um voto de condenação para não "amplificar" a polémica. Como avalia esta decisão?
Acho que abriu um precedente gravíssimo. Costuma-se dizer que ‘não se fala com fascistas’. Mas não se falar com fascistas não é sinónimo de que não se fala de fascistas. É muito diferente. Uma das estratégias do fascismo, sobretudo do neo-fascismo, é aumentar a fasquia para ver até onde é que o sistema é capaz de o resistir. André Ventura já é o megafone da ciganofobia estrutural no nosso país e acho que, no dia em que o deixarmos a falar sozinho, ele irá tornar-se mais do isso, irá tornar-se no megafone do racismo estrutural do país. Não há nenhum benefício em tentarmos construir uma barreira à volta de André Ventura esperando que fique a falar sozinho porque, ao mesmo tempo, estamos a reconhecer-lhe legitimidade institucional para o fazer.
A não condenação das palavras de André Ventura foi justificada com dois argumentos que 'não colam'. O primeiro, foi de que não queriam dar seguimento para matar ali o assunto. Masninguém matou o assunto. Depois, também apresentaram um argumento que me parece estranho que se prendeu como uma questão de 'timing'. As pessoas que são vítimas de racismo estão a borrifar-se para o taticismo institucional ou para o calculismo eleitoralista dos partidos políticos. As vítimas querem alguém que resolva, enfrente e trave o racismo, não querem paninhos quentes porque são séculos e séculos dos mesmos erros e situações de impunidade. Não há nenhuma coreografia institucional que possa superar a violação à dignidade de uma pessoa.
O André Ventura quando mandou deportar a Joacine para a sua terra, o que fez foi mandar todas as pessoas racializadas que combatem o racismo para as suas terras, que na verdade é Portugal. Esta inação por parte do tecido político é o mesmo que dizer às pessoas racializadas que têm de comer e calar. Tem de se fazer frente a André Ventura diretamente na Assembleia da República, mostrando-lhe que há limites que são intransponíveis em democracia e que se estes forem ultrapassados terá de enfrentar consequências.
Há um medo tremendo de nos olharmos ao espelho e percebermos que esta sociedade é diversa e que não é somente branca. (...) As pessoas têm medo de se verem como os monstros da história, aqueles que fizeram atrocidades e que através da racialização desumanizaram pessoasDefende que enquanto não for feita uma "catarse histórica relativamente à escravatura e ao colonialismo" vamos ter sempre pessoas que vão justificar o racismo. Na prática, no que se traduz essa "catarse histórica"?
As pessoas acham sempre que falamos do colonialismo ou da escravatura numa lógica de ressentimento, de refutação ou de uma necessidade de atribuir responsabilidades. Mas, nós não temos nada a refutar. A responsabilidade está estabelecida historicamente, é irrefutável. Posto isto, a primeira dívida histórica que deve ser saldada é garantir o compromisso de que as barbaridades que aconteceram nunca mais irão ocorrer. E é para isto que é necessário assumir as responsabilidades, para que haja uma reparação. Depois, uma vez reconhecido que houve crimes contra a humanidade - que são imprescritíveis - tem de haver disponibilidade para serem criados mecanismos para que as pessoas que foram despojadas da sua humanidade se possam reabilitar enquanto sujeitos inteiros e donos da sua própria história. Uma forma de reparação dá-se através da garantia de que ninguém se vai sentir menos humana pelo aquilo que é, seja ela negra, indígena ou cigana, por exemplo.
Tem de se rescrever a história para que estas pessoas possam entrar na narrativa coletiva. Ou seja, é preciso rescrever a história do colonialismo, da descolonização e escrever a contemporânea, incluindo sempre as pessoas que foram excluídas anteriormente. Isto obriga a um investimento coletivo grande, como por exemplo, no que diz respeito a alterações de conteúdos curriculares ou elaboração de leis de memória. E por fim, claro, tem de se criar políticas públicas concretas, cujo maior entrave é o investimento financeiro que tem de ser feito para avançarem. Mas há políticas que não têm nenhum impacto orçamental, como por exemplo a criação de políticas de quota. Contudo, estas políticas não podem ir para a frente sem que haja uma recolha de dados étnico-raciais.
Está a falar da inclusão da pergunta étnico-racial nos Censos 2021 que não foi admitida, em junho do ano passado, pelo Instituto Nacional de Estatística (INE). Na altura, o organismo justificou que o Censos não era o meio mais adequado para a recolha de dados cujo objetivo é caracterizar a discriminação e a desigualdade com base na origem étnico-racial. Percebe este argumento?
A recusa da recolha de dados étnico-raciais é uma recusa que se ancora num problema muito mais profundo do que aparentou ser. Não querendo ser mau, o ponto central da recusa da inclusão da pergunta no Censos não teve nada a ver com questões técnicas. Há um medo tremendo de nos olharmos ao espelho e percebermos que esta sociedade é diversa e que não é somente branca.
No grupo de trabalho que o Governo criou para tratar desta questão, do qual fiz parte, estivemos a trabalhar durante um ano e pouco e os argumentos subterrâneos por parte de quem era contra baseavam-se na ideia de que falar da questão racial ia legitimar o racismo. Por que é que há esta preocupação? (E, atenção, isto é a minha leitura) Acho, francamente, que a questão racial toca no âmago da consciência de que o processo de racialização é uma coisa má. As pessoas têm medo de se verem como os monstros da história, aqueles que fizeram atrocidades e que através da racialização desumanizaram pessoas.
Isto também mexe com outros assuntos de que não se falam. Na minha opinião, Portugal é uma das potências coloniais que pior lidou e, ainda lida, com o processo de descolonização. Há a preocupação e um certo medo de reversão ou vingança histórica. É uma loucura, mas é uma tese que está, por vezes, até no subconsciente. Entre a nossa elite académica e política, ainda há muita gente herdeira desse período e há uma ferida que não está sarada, que é a ferida dos retornados. Os retornados são provavelmente o maior fantasma do processo de racialização que sobrou na sociedade portuguesa.
Na altura em que se discutiu a inclusão da pergunta étnico-racial, disse que tinha esperança de que o Governo estivesse disponível para reformular o grupo de trabalho e que a pergunta em causa entrasse na próxima geração dos Censos. Houve algum avanço neste sentido até agora?
Na altura, o Governo recebeu as pessoas que votaram a favor da inclusão da pergunta no Censos após ter sido pedida uma audiência. Foi-nos garantido que iria ser retomado o grupo de trabalho, apesar de não ter ficado esclarecido em que termos iria ser reativado, em que mandato, com que objetivos ou em que estrutura. Portanto, acredito no compromisso afirmado pelo Governo, que é o mesmo que está hoje no poder. Agora, se o Governo quer avançar com um grupo de trabalho terá de o fazer o mais rapidamente possível porque não pode haver nenhuma política de ação afirmativa sem um conhecimento estrutural das condições de desigualdade em que se encontram as pessoas racializadas no país. Depois, é urgente com o crescimento e instrumentalização das identidades pela extrema-direita, que, rapidamente, o Estado assuma e garanta que todas as identidades que estão em território nacional são iguais e tratadas de igual forma.
Acho que a esquerda se engana a si própria ao achar que fazendo apenas propostas legislativas sem tradução programática está a combater o racismo. Claro que está, mas não completamenteE como é que avalia o desempenho dos partidos, atualmente, no combate ao racismo?
Nenhum partido tem neste momento um programa para o combate ao racismo. Acho que o grande problema da esquerda relativamente à questão racial é que se confundiu a si própria e aos seus militantes e ativistas. É preciso recordar que há uma diferença entre um partido e um movimento social. Um movimento social tem uma agenda e propostas, um partido tem de ir para além disso, tem de ter um programa. Sem substância programática não há hipóteses de tornar central a questão racial, que se torna sempre o parente pobre das questões de desigualdade. Acho que a esquerda se engana a si própria ao achar que fazendo apenas propostas legislativas sem tradução programática está a combater o racismo. Claro que está, mas não completamente. Contudo, a esquerda está muito melhor, claro.
Outro erro que denoto prende-se não só com a esquerda mas com todo o espectro partidário e político. Foi até há muito pouco tempo que as minorias raciais deixaram de ser tratadas como se não fizessem parte do tecido nacional, como se fossem estrangeiras.
Há ainda outro problema que é os partidos não perceberem que o que pode colocar a democracia em causa no século XXI na Europa é a questão racial. Ou a esquerda, principalmente, se apercebe disto, rapidamente, e dá centralidade a estas questões do ponto de vista programático ou podemos-nos arriscar a acordar num pesadelo. Basta olhamos para os grandes países da União Europeia para constatar que não há nenhum que não esteja a ser fustigado pela a ascensão da extrema-direita ancorada na questão identitária.
O conselho que deixo às três deputadas eleitas sobre a questão racial é que acho que devem estar acima dos seus partidos nesta agenda e ter a capacidade de acolher as reivindicações do movimento social, para não caírem num tique sectário.Mas, recentemente, também se fez história, em Portugal, com a entrada de três deputadas negras no Parlamento [Joacine Katar Moreira, atualmente deputada independente eleita pelo Livre, Beatriz Dias, eleita pelo BE, e Romualda Fernandes, eleita pelo PS] . É um bom sinal...
É, sem dúvida, um bom sinal. Já me perguntaram se me sinto representado pela Joacine, pela Beatriz e pela Romualda, e eu digo que sim, mesmo com todas as divergências que possa ter com estas parlamentares, sinto-me perfeitamente representado. A minha única questão é saber se estas deputadas vão ter condições para introduzir na agenda dos seus respetivos partidos - no caso da Beatriz e da Romualda - uma componente estruturalmente transformadora da questão racial. Tenho de aguardar porque o mandato acabou de começar.
De qualquer forma, é uma grande conquista e é uma alteração do paradigma do que foi até agora o comportamento do nosso sistema político. Mas, claro, há riscos. Um conselho que deixo às três deputadas eleitas é que acho que devem estar acima dos seus partidos nesta agenda e ter a capacidade de acolher as reivindicações do movimento social, para não caírem num tique sectário que é o que, normalmente, acontece no jogo parlamentar. Espero que possam ser porta-vozes da nossa comunidade e que contribuam para a construção de uma via aberta das reivindicações do movimento anti-racista no hemiciclo.
Dizem que defendo cegamente a Joacine, eu recuso estas acusações. A verdade é que tenho divergências políticas da Joacine, mas continuarei a defendê-la sempre que for vítima de racismo. (...) Não admito que os erros que ela possa ter cometido ou cometer, como qualquer outro novato no espaço político, sejam mobilizados para lhe fazer ataques racistasPor falar na Joacine, escreveu no Facebook que "há quem não saiba nunca estar à altura da sua responsabilidade histórica. E o Livre não está à altura da sua responsabilidade histórica". O que quis dizer concretamente com esta frase?
Na minha opinião, o Livre falhou. Continuo convicto de que o Livre fez bem em ter escolhido a Joacine nas circunstâncias em que o fez porque engrandeceu naquele ato a democracia. Agora, o que aparentou ser um ato de grandeza e de nobreza política parece ter esbarrado numa grande incompetência por parte do Livre. Das duas uma: Ou o Livre foi incompetente ou escolheu a Joacine por mero oportunismo e não tinha a menor convicção em escolher uma mulher negra, nas circunstâncias que o fez tendo em conta todo o momento e natureza do debate público sobre a questão racial. Se sabia, não esteve à altura, se não sabia, também não esteve à altura.
Normalmente, como é que se perde confiança do partido ou no partido em política? Perde-se a confiança do partido por razões substanciais de traição programática irremediável. Mas não foi isso que aconteceu com a Joacine, pelo menos do que se sabe publicamente. E é por isso, que disse que o Livre não esteve à altura da sua responsabilidade histórica. Surpreendeu-me bastante.
Há pessoas que me ressaltam que a Joacine não é a única deputada negra. Com certeza que não é. Eu também não sou o único ativista anti-racista em Portugal, por que é que a extrema-direita me ataca a mim? Porque precisa de ter um alvo para atacar a causa e a Joacine é um alvo para se atacar a hipótese da consolidação da ideia de que pessoas podem aceder ao Parlamento.
Dizem que defendo cegamente a Joacine, eu recuso estas acusações. A verdade é que tenho divergências políticas com a Joacine, mas continuarei a defendê-la sempre que for vítima de racismo. Eu critiquei-a no voto sobre a Palestina e no voto sobre a taxa do IVA da eletricidade. Mas, não admito que os erros que ela possa ter cometido ou cometer, como qualquer outro novato no espaço político, sejam mobilizados para lhe fazer ataques racistas. Quantos deputados e deputadas de todos os partidos cometeram erros e gafes gravíssimos no Parlamento ou tiverem acessos de egos descontrolados e não foram tão escrutinados? Porquê? Porque ela é negra e mulher.
Na semana, em que há um deputado que diz que uma pessoa que representa outras deve ser expulsa do país, o Livre expulsa-a do seu partido E, há outra questão aqui que não se fala. Repare-se, como é que começou a escalada contra a Joacine? Com a bandeira da Guiné no dia das eleições. Há um desconsolo tremendo numa parte da direira relativamente à nossa história colonial e Joacine é vista como uma espécie de fantasma que assombra este imaginário. É responsabilidade da esquerda não cair neste engodo. É preciso ter a responsabilidade de perceber uma coisa básica em política: Não podemos responsabilizar alguém se não podemos também em momentos centrais nos solidarizarmos com ela.
Mas, resumindo, o Livre desiludiu-me bastante. O Livre podia ter protagonizado um momento que poderia ter acordado o resto da esquerda, que se tem vindo a instalar sobre a questão racial. Mas, no momento mais difícil de Joacine retirou-lhe a confiança política. Na semana, em que há um deputado que diz que uma pessoa que representa outras deve ser expulsa do país, o Livre expulsa-a do seu partido. A mensagem que é aqui transmitida para o resto das comunidades racializadas é que não podemos contar com o Livre quando estamos sob ataque. Duvido que seja esta a mensagem que quer passar, mas é o que fica. É tudo uma incompetência. Lamento e tenho muita pena que tenha sido assim.
Nunca quis falar muito sobre a minha saída do BE porque não foi uma questão pessoal. O BE falhou-me e falhou a comunidade racializadaEm novembro do ano passado, desvinculou-se do BE em “profunda divergência” com aquilo em que o partido “se tornou ao longo do tempo”, uma decisão que alegou ter tomado no rescaldo do caso Jamaica. Este abandono é uma perda de fé ou desilusão com a política portuguesa?
Sim, foi uma desilusão. O caso Jamaica, e agora, recetemente, o do Giovani e o da Cláudia Simões, provou-me que a nossa democracia não está também à altura da sua responsabilidade relativamente à questão racial. O caso Jamaica foi, para mim, o culminar de um desgaste na minha crença da hipótese de uma alteração de paradigma na forma como a esquerda olha para o racismo.
A posição da esquerda foi vergonhosa porque fugiu da sua responsabilidade naquela semana. Aliás, houve uma parte da esquerda que participa no linchamento dos jovens que apenas exerceram o seu direito de se manifestarem. Depois, não houve um único comunicado de imprensa, nenhuma posição de nenhum partido sobre a emboscada que o Partido Nacional Renovador (PNR) me fez naquela altura. É de sublinhar que não teve a ver comigo. Eu sou uma pessoa privilegiada na questão racial. Eu não vivo num bairro de lata, não sou confrontado todos os dias com violência policial, tenho perfeita noção disso. Mas quando o PNR me faz uma espera, não é a mim que está a fazer uma espera é a uma ideia, é a um projeto de sociedade. E quando ouvi dirigentes máximos dos partidos a dizerem que no caso da Jamaica que estavam do lado da polícia. “Nós estaremos sempre do lado das forças de segurança”. A pergunta que na altura coloquei ao BE foi: "O que é mais importante numa democracia, estar do lado da dignidade ou da força?" Então, se não são capazes de estar do lado dos mais fracos, não estou a fazer nada aqui. Fiquei muito triste.
Mas nunca quis falar muito sobre a minha saída do BE porque não foi uma questão pessoal, o compromisso político é um compromisso coletivo e o partido é um instrumento para transformação social não um fim. E, para mim, o BE deixou de estar ao serviço da causa que me mobiliza a partir daquele momento. O BE falhou-me e falhou a comunidade racializada.
Obviamente, que o BE não é meu inimigo. O meu inimigo é a extrema-direita e uma direita reacionária. Claro, que a minha exigência com o BE é a máxima e que não vou ter paninhos quentes quando não concordar com as suas posições. Aliás, recentemente, no Parlamento, aconteceram duas coisas vergonhosas com o BE. Para além de não terem tomado posição sobre o ataque racista do André Ventura à Joacine, votaram ao lado do Chega.
Considera que o BE não deveria ter feito parte da coligação negativa com o Chega mesmo concordando com o que é uma boa proposta?
É uma vergonha. Não há nenhum taticismo político que justifique alinhar com o fascismo. Se o Chega tem uma proposta boa não temos de votar nela, temos de a apresentar. É bom que a esquerda perceba uma coisa: Não há nenhuma maturidade democrática compatível com o fascismo. É o contrário. Acho que se brincarmos com este limiar de um dia sim e um dia não o que estamos a fazer é dar mais adubo para o crescimento do fascismo.
As pessoas perguntam-me porque é que não há um partido de negros ou de pessoas racializadas. Um partido não é um brinquedo. Não se faz um partido para satisfazer egos pessoais ou para acomodar mágoas ou agendas de pessoas individuaisRecentemente, foi divulgada através das redes sociais uma falsa notícia sobre si que dava conta de que iria criar um novo partido. Há alguma possibilidade de esta ideia um dia passar a ser verdadeira?
As pessoas perguntam-me porque é que não há um partido de negros ou de pessoas racializadas. Um partido não é um brinquedo. Não se faz um partido para satisfazer egos pessoais ou para acomodar mágoas ou agendas de pessoas individuais. Os partidos têm de ser a tradução de um programa político e isso não se faz só de vontades. É preciso condições, sujeitos políticos capazes, que haja capacidade de mobilização e que a organização institucional o permita. Essas condições ainda não existem.
Portugal não é um país em que possamos, neste momento, ter um partido de pessoas racializadas. É preciso ter noção. O que é possível é organizar a comunidade para que esta se possa afirmar. É preciso politizar as pessoas e que as pessoas se interessem pela política. O que não pode acontecer é a desorganização que se verifica até agora porque só vamos ser respeitados pelo sistema político quando formos uma força de pressão e é para isso que estou disponível. É esta a minha aposta.
Gostava que as pessoas percebessem que a minha 'obsessão racial' deve-se ao facto de achar que até agora a esquerda tem sido incapaz e incompetente em acomodar a questão racial de uma forma substancial. Mas isso, não me desvia da minha filiação marxistaE assumir um cargo numa estrutura partidária ou noutro órgão político, também está fora de questão?
Já aprendi a dizer 'nunca digas nunca'. Mas, com todo o respeito, não me imagino em nenhum partido. Gostava que as pessoas percebessem que a minha 'obsessão racial' deve-se ao facto de achar que até agora a esquerda tem sido incapaz e incompetente em acomodar a questão racial de uma forma substancial. Mas isso, não me desvia da minha filiação marxista. Continuo profundamente enraizado numa doutrina de esquerda.
Francamente, neste momento, a minha aposta é organizar a comunidade. Estou mesmo muito investido nisto. Hoje temos, finalmente, condições para criar um corpo político forte, de nos tornarmos na maior força de mobilização desta comunidade. Não sei que formas é que isto pode tomar no futuro, mas acho há muita gente que percebe que precisa de se organizar sem ser no sistema partidário tradicional porque não confia nos partidos. Acredito que temos de fazer com que os partidos percebam que não podem fazer nada das nossas vidas sem nós ou contra nós. É isto que me proponho a fazer.
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