"Estamos a antecipar um 'boom' de denúncias de violência doméstica"
Rosa Monteiro, secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade, é a entrevistada de hoje do Vozes ao Minuto.
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País Rosa Monteiro
Após a primeira semana de isolamento devido à pandemia do novo coronavírus, os casos de violência doméstica aumentaram um terço “de forma generalizada em vários países da União Europeia", de acordo com dados divulgados por Bruxelas.
Em Portugal, a situação apresenta-se até agora inversa: Segundo os números mais recentes da PSP, em março, as denúncias de violência doméstica diminuíram em 15%, comparativamente com período homólogo do ano passado. Já a GNR revelou que registou uma quebra de queixas de crimes desta natureza de 26%, também em relação aos dados de março do ano passado.
Em entrevista ao Notícias ao Minuto, Rosa Monteiro, secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade, esclarece que o país não é um caso atípico na União Europeia e que um aumento exponencial de denúncias ainda está para vir. "Foi também por isso que criámos um conjunto de respostas reforçadas antecipadamente", sustentou.
Apontando as medidas de reforço já implementadas e as estratégias em desenvolvimento para responder à escalada prevista, a governante detalha o plano estipulado realizado pela Secretaria de Estado para chegar o mais perto de todos os que sofrem ou estão em risco de sofrer de violência doméstica, designamente, as mulheres, os idosos e as crianças.
Mas, para as mulheres em particular, a violência poderá não ser a única ameaça que enfrentarão nesta crise. Segundo Rosa Monteiro, já é possível verificarem-se impactos negativos das consequências deste surto na qualidade de vida. Num futuro próximo, a secretária de Estado admite ainda a possibilidade de esta pandemia ter uma repercussão sócio-económica "tremenda" na vida das mulheres que poderá assemelhar-se às sofridas no período da "crise da 'troika'", repetindo-se um impacto diferenciado de género no desemprego que poderá conduzir "à precarização das mulheres".
Foram anunciadas, na semana passada, novas medidas para reforçar a capacidade de resposta da Rede Nacional de Apoio às Vítimas de Violência Doméstica (RNAVVD) para fazer face às consequências da pandemia da Covid-19 no país. A abertura de duas estruturas temporárias de acolhimento de emergência (com camas para cerca de 100 pessoas) foram uma das ações apresentadas. Estes dois locais vieram dar resposta a alguma região em particular que tivesse falta de vagas ou é uma medida de precaução?
São respostas nacionais que vêm complementar as já existentes na rede de casas de abrigo e de acolhimento de emergência. Aquilo que aconteceu é que começámos a antever que, com os planos de contenção devido à pandemia a prolongarem-se no tempo, a capacidade de acolhimento de mulheres, tanto em estruturas de abrigo como de acolhimento de emergência, iam-se esgotar rapidamente visto que não há tantas autonomizações, não há tantas saídas de vítimas. Ou seja, a integração destas pessoas e retorno à sua vida 'normal' está mais limitado pelas questões sanitárias e pela maior dificuldade de inserção no mercado de trabalho, quando é o caso, também devido à pandemia.
Assim, antevendo esta realidade e tendo em conta que também o número de vagas pré-existente é mais reduzido, uma vez que demos orientações à rede de que cada estrutura tem de ter um quarto de isolamento aplicando-se as medidas recomendadas pela Direção-Geral de Saúde (DGS), um quarto reservado para este isolamento é menos um disponível para uma vítima. E foi por isso que decidimos avançar o mais rapidamente possível para a abertura destas estruturas.
Mas ainda há vagas nas estruturas já pré-existentes da rede? Ao todo quantas vagas é que estão disponíveis neste momento?
Ainda vamos tendo vagas na rede pré-existente. Contudo, o número de vagas é muito dinâmico e imprevisível porque depende, exatamente, das saídas e das entradas das vítimas. Embora haja menos pessoas a deixar estas estruturas, ainda assim, existem algumas mulheres que ao verem garantida a sua segurança decidem ir viver com familiares, amigos ou até mesmo voltar às suas casas, por exemplo. Mas, claro, estes casos são poucos. Aqui o prioritário é, quando surge uma necessidade de acolhimento, procurar sempre na rede pré-existente respostas e caso estas não existam encaminhar as vítimas para estas novas estruturas.
Já foram preenchidas vagas nestas novas estruturas?
Sei que, no distrito de Viana do Castelo, já encaminhámos duas mulheres com as respetivas crianças para estas novas estruturas e que, na Grande Lisboa, pelo menos mais uma mulher.
O teste não é um critério de admissão em qualquer estrutura de acolhimento. Qualquer pessoa que chegue às nossas instalações, com teste feito ou não, tem de ser acolhidaEstá a ser realizado algum rastreio ou testatagem para a Covid-19 na admissão das vítimas nas casas de abrigo ou de acolhimento de emergência?
Sim, há um rastreio que foi combinado entre a Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género (CIG) e a DGS. Há também um fluxograma que foi estabelecido e trabalhado entre CIG e o Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM), que já foi disponibilizado às nossas estruturas, tal como um conjunto de orientações exaustivas que seguem aquilo que são as recomendações das autoridades de Saúde. Mas, o INEM é aqui o pivot destes testes. Este fluxograma de atuação para a testagem da Covid-19, no fundo, articula a CIG, o INEM e as estruturas da rede.
No entanto, é de sublinhar que o teste não é um critério de admissão em qualquer estrutura de acolhimento. Qualquer pessoa que chegue às nossas instalações, com teste feito ou não, tem de ser acolhida. Todas as nossas estruturas têm, como já referi, um quarto de isolamento.
Há registo de casos confirmados do novo coronavírus em alguma das estruturas de acolhimento?
Felizmente, tenho a informação de que ainda não temos casos de Covid-19 nas nossas casas de abrigo ou de acolhimento de emergência.
Fez duas semanas, na passada sexta-feira, que foi também lançada a Linha SMS 3060 como uma medida de reforço ao combate à violência doméstica neste momento de crise. Na primeira semana de implementação foram registados 44 pedidos de ajuda a partir deste novo canal. Já há uma atualização destes dados?
Em termos de pedidos à CIG, no total, desde o dia em que foi decretado o Estado de Emergência, em 19 de março, foram registados 179 pedidos de informação e de apoio, sendo que 56 foram efetuados através do número verde de serviço de informação, 36 pelo email e 87 chegaram pelo novo serviço de SMS, lançado desde o dia 27 de março, o que comprova que a criação deste último meio foi uma boa aposta. Demonstra o que já prevíamos: As pessoas em isolamento têm mais dificuldade em fazer uma chamada. Logo no primeiro dia de lançamento da Linha SMS foram registados sete pedidos.
Há uma estabilização e, em alguns casos, até se tem verificado uma diminuição do registo de novas situações de violência doméstica (...). Contudo, temos notado um aumento na procura de apoio psicológico e de apoios sociais
Recentemente, referiu que o número de pedidos nestes serviços estava dentro “do padrão normal”. Também se continua a verificar esta tendência?
Continua. Entre os dados das estruturas de atendimento, acolhimento, forças de segurança e equipas no terreno confirma-se que ainda não se registou um aumento de procura dos serviços de apoio e ajuda às vítimas de violência doméstica. Isto é, há uma estabilização e, em alguns casos, até se tem verificado uma diminuição do registo de novas situações de violência doméstica.
Contudo, temos notado um aumento na procura de apoio psicológico e de apoios sociais, sobretudo por parte de mulheres que já estavam em acompanhamento ou que já tinham concluído os seus processos. Claro, que é de relembrar que muitas vezes estas mulheres ainda se encontram em situações difíceis ou que viveram episódios traumáticos que têm efeitos a nível psicológico alargados.
E tem sido possível assegurar uma resposta a este aumento de pedidos de apoios?
Sim, tem. Ainda assim, na semana passada, estive reunida com os coordenadores do Programa Nacional para a Saúde Mental, do Serviço Nacional de Saúde, que disponibilizaram serviços para uma colaboração com a Rede Nacional de Apoio às Vítimas de Violência Doméstica. Esta parceria tem em vista alavancar o que já existe em alguns territórios do país, como por exemplo, em Beja, onde uma equipa do Programa Nacional para a Saúde Mental já se encontra devidamente articulada com as nossas respostas na área da violência doméstica para prestar apoio psicológico e cuidados na área da saúde mental necessários nestas situações. Agora, vamos alargar esta colaboração ao país divulgando esta disponibilidade junto da nossa rede. Estes profissionais de saúde mental também servirão com elementos que facilitam a deteção e encaminhamento de vítimas de violência doméstica.
Obviamente, que as situações de violência doméstica não deixaram de acontecer em Portugal (...). Estamos a antecipar um 'boom' de denúncias de violência doméstica nas próximas semanas. Foi também por isso que criámos estas medidas antecipadamenteVoltando ao número de pedidos de informação e de denúncias de casos de violência doméstica no país, esta diminuição não é um sinal preocupante, considerando que a tendência verificada lá fora é exatamente a contrária, registando-se um aumento exponencial de queixas?
Não propriamente porque nos outros países também se registou numa fase inicial da implementação das medidas de contenção uma redução no número de denúncias, seguindo-se depois uma escalada de situações de violência doméstica decorrente de novas situações levadas a cabo pelo isolamento nas habitações. Obviamente, que as situações de violência doméstica não deixaram de acontecer em Portugal, simplesmente, aquilo que se sabe e que, inclusivamente, me dizem alguns técnicos das equipas de apoio, é que as mulheres estão mais preocupadas neste momento em responder e adaptar-se à questão sanitária, deixando para segundo plano a situação de violência, a não ser em casos mais agudos de perigo e de ameaça. Portanto, estamos a antecipar um 'boom' de denúncias de violência doméstica nas próximas semanas. Foi também por isso que criámos estas medidas antecipadamente.
Posto isto, concluímos que, para já, estes números estão dentro do padrão daquilo que são os dados que temos da evolução noutros países. Neste sentido, também já divulgámos um conjunto de conselhos às mulheres que passam, por exemplo, pela criação de estratégias que reforçem as suas redes de proximidade, de familiares, vizinhos e de amigos ou que passem pela procura de locais onde possam fazer as quarentenas com pessoas que possibilitem que fiquem longe da pessoa agressora. Mas sabemos que aquilo que se passa nas casas é agora ainda menos conhecido, o que é algo que nos preocupa e que nos tem levado a tentar chegar o mais longe possível.
Por exemplo, já fizemos parcerias com a Associação Nacional de Farmácias (ANF), com a Ordem dos Farmacêuticos, com a Associação Portuguesa de Empresas de Distribuição (APED), com algumas cadeias de hipermercados e com muitos pontos de cadeias de distribuição de combustíveis. Todas estas entidades já têm informação e já têm nas suas lojas a lista de contactos a nível local de apoio às vítimas de violência doméstica, tal como os contactos nacionais. O objetivo é que saibam como devem proceder em casos em que tenham conhecimento ou que seja procurada ajuda por uma pessoa em situação de violência. Aqui a lógica é chegar o mais longe possível.
Professores continuam a ter um papel essencial e ativo na sinalização de casos neste período de crise Os idosos e as crianças também se encontram entre os grupos populacionais mais suscetíveis de se tornarem vítimas de violência doméstica. Considerando que no caso dos idosos, com a suspensão de muitos serviços sociais, e no caso das crianças, com a ausência de uma presença forte da escola, ambos perdem com esta crise valiosas estruturas de sinalização de casos de abuso, estão a ser equacionadas medidas específicas para proteger estas pessoas?
Sim, estão. No que diz respeito à população idosa tem havido um reforço na articulação com o Ministério da Administração Interna e com as forças de segurança para que haja um reforço na monitorização e acompanhamento das situações destas pessoas, sobretudo junto das que se encontram isoladas ou que já estavam sinalizadas como estando numa situação de risco. Ou seja, temos tentado ter um acompanhamento mais próximo dos idosos.
Depois, as crianças estão sempre também inseridas no quadro daquilo que é a intervenção da prevenção e acompanhamento da violência doméstica. E, tal como com os idosos e com as mulheres, estamos a mobilizar todos os esforços no sentido de uma vigilância mais pró-ativa e mais intensa, recorrendo a novas soluções tanto de comunicação com de proximidade. É ainda de vincar que, nesta questão, os municípios são um parceiro chave até porque muitas das estruturas de atendimento de apoio à vitima são criadas em parceria.
Também estamos a trabalhar com as escolas no sentido de haver um acompanhamento que vá para além do pedagógico porque os estabelecimentos de ensino e os professores são o ponto de contacto que temos com muitas famílias, por vezes, até o único. Por exemplo, logo na primeira semana em que foi decretado o estado de emergência recebi o contacto de uma professora que me pediu ajuda pois tinha tido o conhecimento de que a mãe de uma aluna sua estava com muito receio de passar o período de confinamento social em casa com o seu companheiro que era violento. Imediatamente, mobilizei uma equipa da CIG e, no dia seguinte, a mulher em causa e a sua filha estavam em proteção numa estrutura de acolhimento. Este é um exemplo que demonstra que os professores continuam a ter um papel essencial e ativo na sinalização de casos neste período de crise.
Têm surgido muitos movimentos de voluntariado levados a cabo pela sociedade civil e por associações que levam a casa de idosos, de pessoas com necessidades especiais ou mais vulneráveis bens essenciais. Estas iniciativas também já foram equacionadas como estratégias de proximidade e vigilância na prevenção da violência doméstica?
Sim, já foram. Isso já está a acontecer. Aliás, muitas das redes de solidariedade dos municípios que avançaram com iniciativas são equipas que também já são nossos parceiros em várias formas de contacto com as populações, especialmente, com as mais vulneráveis que poderão encontrar-se em maior risco de exposição à violência doméstica neste período. Os próprios profissionais de saúde quando fazem o acompanhamento das situações de Covid-19 também fazem esta vigilância. Temos tentado chegar pelos vários pontos de contacto do sistema a todas as pessoas.
Até nos filmes e nas séries de ficção os códigos só se revelam no fim. E foi essa uma das razões pelas quais não adoptámos ou apoiámos este tipo de iniciativa Houve um cartaz divulgado por um grupo de ativistas feministas, que circulou nas redes sociais, que anunciava uma campanha para ajudar vítimas a denunciar situações de violência doméstica numa farmácia do Porto. A ideia era que quem sofresse deste tipo de abusos chegasse ao estabelecimento e ao utilizar a expressão ou código 'máscara-19' estaria a fazer um pedido de ajuda, uma ação que já foi inclusive implementada em vários países devido à Covid-19, como França. A campanha acabou por se tornar viral em Portugal e foi entendida como uma iniciativa que seria levada a cabo a nível nacional. Contudo, afinal esta campanha nunca chegou a ser implementada. Teve conhecimento da iniciativa?
Sim, comecei a receber na tarde e noite de domingo da semana passada vários alertas de pessoas da rede que atendem e apoiam vítimas a perguntarem-me que campanha era esta porque acharam que seria uma iniciativa na qual estaríamos envolvidos. Maioritariamente, estes contactos apontavam para o facto de que poderia ser uma ação perigosa considerando que os agressores passavam a ter conhecimento de onde é que as mulheres podiam procurar ajuda havendo uma forte probabilidade de que começassem a proibir as mulheres de irem às farmácias. Uma posição que defendo. Repare-se que os próprios gabinetes de apoio à vítima não estão identificados para permitir que a vítima discretamente possa dirigir-se ao local. Há gabinetes até que se encontram muitas vezes em serviços públicos e estão disfarçados para a vítima não ser vista a entrar porque sabemos que é um fator de dissuasão. Até nos filmes e nas séries de ficção os códigos só se revelam no fim. E foi essa uma das razões pelas quais não adoptámos ou apoiámos este tipo de iniciativa.
Resumindo, esta foi uma campanha exclusivamente levada a cabo pela sociedade civil. Houve um contacto da nossa parte para perceber o que se estaria a passar e como é que estava a ser implementada a iniciativa. Aquilo que foi dito à técnica de CIG foi que tinha havido uma informação e um lançamento prematuro que tinha escapado ao controlo, tornando-se viral nas redes sociais, e que na realidade nunca tinha chegado a ser implementada nem no Porto, nem a nível nacional.
Vendo a boa intenção deste grupo, valorizamos ainda que cada pessoa atue de acordo com o que acha mais correcto e importante. Isso é tão respeitável como é de reconhecer. Contudo, o Estado português tem tido uma linha de ação há três semanas intensíssima, com uma rede ampla de parcerias, com uma lógica, permanentemente em articulação com as organizações que estão neste momento no terreno e é isso nos importa e é isso que concentra a nossa atenção. Para além de que, como também já mencionei, já estávamos a trabalhar com as farmácias, tal como com os hipermercados e outros locais que possam servir também de pontos de apoio.
O que precisamos e temos andado a procurar são máscaras reais, não 'máscaras-19', para as nossas estruturas e para as nossas equipasSabe se esta campanha tem tido uma avaliação positiva nos outros países que a implementaram?
Em França esta campanha é estruturada pelo Ministério da Administração Interna e foi implementada juntamente com um conjunto de regras e procedimentos nas farmácias. A farmácia quase que serve aqui como uma esquadra mas houve uma preparação efetiva para a transformação da mesma. Entretanto, já falámos com o Governo francês sobre a iniciativa que nos disse que ainda não tem qualquer tipo de avaliação da mesma porque foi lançada apenas há uma semana. Também falámos com a ministra da Igualdade espanhola, Irene Montero, sobre esta campanha que nos disse que decidiu não adotar a mesma.
Em Portugal o que fizemos foi distribuir, há duas semanas, à Associação Nacional de Farmácias a lista de contactos e uma nota informativa com aquilo que poderiam fazer em termos de orientação e encaminhamento de pessoas que procurassem ajuda. O que precisamos e temos andado a procurar são máscaras reais, não 'máscaras-19', para as nossas estruturas e para as nossas equipas. Felizmente, temos vindo a contar com apoios consideráveis para fornecimento destes materiais de proteção. Temos tido a ajuda de várias organizações de mulheres e feministas que se disponibilizaram a ajudar nesta questão e no reforço da rede. Qualquer área de proteção de vítimas deve estar assente em parcerias e conhecimento. Estamos a atuar numa linha prática estruturada e consistente e apreciamos e valorizamos todas as iniciativas que têm surgido para nos apoiar, que felizmente são muitas.
Mas tem faltado material e equipamento de proteção individual contra a Covid-19 nas estruturas de apoio às vítimas de violência doméstica?
Desde o início de março que a CIG emitiu as recomendações da DGS às estruturas de acolhimento. Neste momento estamos a reforçar esses materiais e equipamentos necessários e é nisso que temos estado a batalhar nos últimos dias. Mas felizmente, temos tido, como referi, a ajuda de Organizações Não-Governamentais de mulheres e feministas que têm dado um grande apoio nesta e noutras questões. Agradecemos muito esta mobilização e sublinhamos que realmente há muitas formas de ajudar, neste momento, as vítimas de violência doméstica.
Todos podemos e devemos ser um agente de saúde publica mas também um agente de proteção para as vítimas de violência doméstica. Por vezes, as vítimas estão mesmo ali ao nosso lado e nós não as identificamos ou não as queremos verO que é que qualquer cidadão pode fazer para ajudar a combater a violência doméstica e ajudar as vítimas?
Redobrar a atenção e mostrar disponibilidade para apoiar as vítimas, para que sintam que realmente não estão sozinhas. Todos podemos e devemos ser um agente de saúde publica mas também um agente de proteção para as vítimas de violência doméstica. Por vezes, as vítimas estão mesmo ali ao nosso lado e nós não as identificamos ou não as queremos ver. Acho que está na altura - embalando por esta onda de solidariedade e reforço daquilo que são os laços comunitários - das pessoas verem efetivamente as vítimas de violência doméstica e mobilizarem-se também para as protegerem.
Por outro lado, pode parecer uma ação menos direta ou afirmativa, mas o não continuarmos a relativizar a prevalência e gravidade de qualquer situação de violência. O não continuarmos a naturalizar ou a justificar a violência porque, por diversas vezes, as mulheres ainda não pedem ajuda porque sentem que não vão acreditar nelas. Ou seja, que o seu apelo não vai merecer confiança e que vai ser, de alguma maneira, relativizado. Muitas vezes, estas naturalização das queixas acontecem dentro das suas relações familiares, das suas redes de amigos ou com os seus colegas de trabalho. E este considerar-se que é normal e que é uma situação que só diz respeito ao casal continua a existir nas representações das pessoas. E é isto que também tem contribuído para haja dificuldade em denunciar casos de violência: 'Entre marido e mulher não se mete a colher'. Isto tem de acabar.
Contudo, há que vincar que fora do contexto Covid-19, os números de denúncias têm vindo a aumentar em 2019, de acordo com os últimos dados. Este sinal positivo também se deve porque aumentaram o número de respostas do sistema, quer no âmbito das medidas de proteção das vítimas quer das medidas de coação relativamente ao agressor. Ainda assim, sabemos sempre que estes números ainda estão abaixo do que é a realidade. E é, por isso, que este aspecto cultural e social é tão importante.
Não podemos cair na asneira de achar que há vítimas boas e vítimas más. Há uma tendência para se culpar a vítima e enquanto esta cultura continuar por mais que se faça ao nível da legislação e de intervenção será sempre insuficienteO que percebemos é que temos de criar condições para que as mulheres e as pessoas que são vítimas se sintam capazes de pedir ajuda, sabendo que o seu pedido vai ser ouvido e compreendido e que não vão passar por um segundo processo de vitimização, a chamada a revitimização, em que têm de se justificar e explicar que não tiveram culpa de terem sido agredidas. Não podemos cair na asneira de achar que há vítimas boas e vítimas más. Há uma tendência para se culpar a vítima e enquanto esta cultura continuar por mais que se faça ao nível da legislação e de intervenção será sempre insuficiente. Este é um problema social e cultural maior e, por isso, é que todas as campanhas de alerta, de informação e desconstrução de mitos são tão importantes.
Recentemente, a União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR) saudou as novas medidas do Governo. No entanto, recomendou que deveria ser ainda implementada uma medida que retirasse o agressor da residência onde coabita com a vítima aquando da notícia do crime a realizar pelas entidades policiais, tal como a suspensão dos regimes de convívio entre progenitores agressores e filhos menores na situação de violência doméstica enquanto permanecer o estado de emergência. Como avalia ainda estas propostas?
Foi discutida na reunião de secretários de Estado, da semana passada, a alteração à Lei da Violência Doméstica, um processo que já decorre a algum tempo. Esta alteração visa dar competências aos tribunais da área penal para desencadearem logo procedimentos de proteção às vítimas de violência doméstica, o que também envolve as questões das relações das responsabilidades parentais. Comungado da mesma preocupação da UMAR e de outras associações, aquilo que pretendemos é garantir que as forças de segurança e o Ministério Público privilegiem a proteção das vítimas através de medidas de coação sobre o agressor. O acolhimento de vítimas em casas de abrigo ou de acolhimento de emergência é para situações em que estão esgotadas as medidas de coação e de afastamento do agressor. E são essas as orientações que já estão expressas no manual de atuação funcional sobre a ação dos órgãos de polícia criminal nas 72 horas subsequentes a uma denúncia, que também está em elaboração e que irá ser finalizado brevemente.
Ou seja, há um trabalho que já estava a ser feito que vai precisamente no sentido do reforço dessa intervenção sobre o agressor e não sobre a vítima, que tem como objetivo não colocar na vítima todo o ónus da prova e do testemunho, nomeadamente, reforçando outras formas de informação e instrução dos processos através, por exemplo, de testemunhos a partir do depoimento da vítima. Portanto, esta proposta de alteração legislativa seguirá brevemente para Conselho de Ministros e depois para o Parlamento.
Mas as recomendações apontadas tinham em vista uma implementação ainda durante o Estado de Emergência. É possível que a alteração legislativa entre em vigor no período em causa?
A Procuradoria-Geral da República já fez uma recomendação no sentido destes procedimentos serem considerados essenciais e prioritários também junto do Ministério Público.
Para além de que essas recomendações estão já em ação, sendo que as próprias forças de segurança emitiram orientações do reforço deste modelo de atuação e vigilância. Os próprios gabinetes de apoio à vítima e tribunais também estão em funcionamento e também permitem uma intervenção rápida e um acompanhamento da vítima e de uma facilitação do acesso à mesma ao processo, tal como uma proteção reforçada de todo o caminho da pessoa que é vítima ao longo do processo judicial em curso.
As mulheres são sempre prejudicadas em contextos de crises sejam elas quais forem
A ONU alertou, recentemente, que as mulheres enfrentam riscos "exacerbados" ao nível da saúde, economia, segurança e proteção social, decorrentes da pandemia da Covid-19 "só por causa do sexo". Considera que já se verifica esse risco em Portugal?
As mulheres são sempre prejudicadas em contextos de crises sejam elas quais forem. Sabemos que esta situação de crise agudiza evidentemente a situação de desigualdade em que vivem ainda muitas mulheres. Tem-se falado sobre o impacto que esta crise tem nas mulheres porque estas estão em grande número na linha da frente dos setores principais de apoio e combate à Covid-19. O que também é uma verdade no nosso país porque há uma esmagadora maioria de mulheres a trabalharem na área da saúde, não só como médicas e enfermeiras mas também como auxiliares. Também existem muitas mulheres na linha da frente a cuidar de pessoas dependentes, nos lares, nos centro de acolhimento de pessoas com deficiência ou até nas nossas próprias casas de abrigo. No setor da educação também temos uma forte feminização das profissões. E, portanto, já é possível até identificar situações de stress, sobrecarga, 'burnout' e dificuldade em conciliar a vida pessoal, familiar e profissional nas mulheres.
A conciliação da vida profissional, familiar e profissional é algo a que estamos muito atentosQue questões a preocupam mais neste momento?
Para além das relacionadas com a violência doméstica, a conciliação da vida profissional, familiar e profissional é algo a que estamos muito atentos, para além de ter sido uma das grandes apostas da anterior legislatura que continuámos a trabalhar nesta. Estávamos precisamente com um grupo de trabalho no quadro da concertação social a discutir novas medidas neste domínio. E sabendo que, neste momento, estamos a viver de forma diferente, com novas formas de organização de trabalho, queremos acautelar aquilo que são direitos de trabalho e a acompanhar várias matérias nesta perspetiva de género.
Por exemplo, com as medidas de restrição não só muitas mulheres que trabalhavam no setor das limpezas foram dispensadas - verificando-se já um impacto financeiro sobre as mulheres - também sabemos que, neste momento, esta situação em específico pode dar origem a um aumento das assimetrias que já existiam ao nível da realização de tarefas domésticas e de cuidados familiares, podendo colocar uma sobrecarga mesmo nas mulheres que se encontram em teletrabalho. Conscientes destas realidades, estamos interessados em conhecer e monitorizar a divisão sexual do trabalho doméstico e familiar neste quadro Covid-19. Queremos ter conhecimento das sobrecargas e dos conflitos que daqui advém e, consequentemente, das dificuldades de conciliação das várias esferas da vida das mulheres. É de sublinhar que, segundo dados os mais recentes do Eurosat, apenas 17% dos homens portugueses realizavam uma tarefa doméstica por dia.
A repercussão sócio-económica poderá ser tremenda como foi na crise da 'troika', com um impacto diferenciado sobre a questão do desemprego levando à precarização das mulheres
E como vai ser monitorizada essa divisão do trabalho doméstico e familiar?
Recentemente, já tínhamos aberto candidaturas para projetos que estimassem o impacto e valor económico doméstico e familiar não pago. Estes projetos estarão a arrancar, por isso, espero que permitam avaliar também esta informação no contexto Covid-19.
Consequentemente, o impacto pós-crise da Covid-19 também não será ténue para as mulheres?
A repercussão sócio-económica poderá ser tremenda como foi na crise da 'troika', com um impacto diferenciado sobre a questão do desemprego levando à precarização das mulheres. É de notar que este fenómeno decorre também do facto de termos economias com uma forte segregação sexual das profissões. Por isso, também estamos a acompanhar o desenvolvimento desta crise procurando que haja esta atenção nas medidas que vão sendo criadas. Estamos ainda particularmente atentos às consequências que vão decorrendo desta pandemia, especialmente as que possam estar ligadas à perda de rendimentos, às condições de trabalho e de vida, nestas questões já existem assimétricas em termos de género.
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