Pulmões artificiais já salvaram quatro doentes com Covid-19 no São João
Roberto Roncon, coordenador do programa ECMO do Centro Hospitalar e Universitário de São João, é o entrevistado de hoje do 'Vozes ao Minuto'.
© Bruno Graça/CHUSJ
País Covid-19
Nos corredores do Hospital de São João, no Porto, num cenário de pandemia, há receio de um vírus desconhecido, há cansaço plasmado no rosto dos profissionais de saúde, mas há também esperança. E é precisamente a esperança que predomina no Centro de Referência de ECMO (Oxigenação por Membrana Extracorporal) – CRe-ECMO - do Centro Hospitalar Universitário de São João.
Quando os doentes hipercríticos internados em unidades de cuidados intensivos não respondem à ventilação mecânica invasiva, é avaliada a possibilidade de serem encaminhados para o ECMO, o 'fim da linha' na prestação dos cuidados de saúde.
Estes doentes, em falência cardíaca ou pulmonar potencialmente reversível, são ligados a um equipamento que faz a oxigenação do sangue, substituindo, assim, as funções desempenhadas pelo coração e pelos pulmões. Num surto de Covid-19, este programa assume especial relevância, já que pode ser a ponte para a recuperação. E há boas notícias: quatro pacientes infetados com Covid-19 recuperaram depois de terem passado semanas internados no CRe-ECMO do São João.
Mas, à semelhança de outros serviços hospitalares, este Centro de Referência não é imune à falta de recursos humanos e materiais. Foi então que o grupo anglo-português Chameleon Collective decidiu fazer a diferença.
O formação de Jonathan Miller, Jed Allen e Maria Leon tinha tudo preparado para lançar, em abril, o álbum 'The LA Sound is Back - 1979'. Porém, devido ao novo coronavírus, os músicos viram-se obrigados a adiar a edição em CD e Vinil para o último trimestre de 2020. Impotentes perante uma pandemia sem precedentes, os Chameleon Collective optaram por antecipar um dos temas do disco, 'The Ghost of Zeca Afonso' e fazer dele, de certa forma, um hino à solidariedade.
A banda anglo-portuguesa decidiu que os lucros obtidos com as visualizações do videoclipe no YouTube [que pode ver abaixo] seriam doados ao Centro de Referência de ECMO do Centro Hospitalar Universitário de São João.
O Notícias ao Minuto testemunhou, em entrevista a Roberto Roncon, coordenador do programa ECMO do São João, a realidade deste que é um dos três centros de referência do país (para além do Santa Maria e do S. José, em Lisboa).
Como viu a iniciativa dos Chameleon Collective?
Vi com bons olhos, acima de tudo vi como uma fonte de esperança. O nosso centro de referência de ECMO tem mais de 10 anos de experiência, começou na pandemia do H1N1. Aí estávamos mais sozinhos e havia menos condições para avançar. Agora, [perante esta pandemia], ficámos muito contentes por saber que não estamos sozinhos nesta luta.
Fazemos o nosso trabalho porque acreditamos nele, independentemente das ajudas que nos possam dar. Mas ver este trabalho reconhecido por parte da sociedade civil é para nós um motivo de enorme orgulho. E esta ajuda vai traduzir-se em mais formação para a nossa equipa, mais equipamento. Toda a ajuda é bem-vinda.
Quero agradecer com muita humildade a oferta que nos está a ser feita. A vida é feita de coisas do dia a dia, simples e verdadeiras. E esta é uma forma de fazer crescer o programa. Vai dar-nos maior visibilidade porque as pessoas vão perceber melhor o que fazemos e vão apoiar-nos mais.
Durante a pandemia do novo coronavírus, somos confrontados com um número elevado de doentes relativamente novos, sem doenças associadas
Em que consiste a técnica ECMO e quais os principais desafios do Centro neste surto de Covid-19?
É uma técnica de suporte respiratório e cardiovascular avançada usada, neste contexto da Covid-19, para as formas mais graves de falência respiratória. Pensamos no ECMO quando todas as medidas de tratamento convencional, nomeadamente a ventilação mecânica invasiva, falharam. E utilizamos o ECMO para substituir, através de um circuito e de uma membrana extracorporal, a função pulmonar do doente.
Durante a pandemia do novo coronavírus, somos confrontados com um número elevado de doentes relativamente novos, sem doenças associadas, que apresentavam uma falência respiratória grave e que não respondiam à ventilação.
Reservamos o ECMO para as situações em que temos a perceção [...] que o doente sem ele tem uma probabilidade de sobrevivência muito pequena ou quase nula
Perante um número avultado de pacientes graves, para que situações é reservado o ECMO?
Sobretudo neste contexto de pandemia, reservamos o ECMO para as situações em que temos a perceção, através de vários índices de gravidade que estão relativamente bem estandardizados, de que o doente sem ele tem uma probabilidade de sobrevivência muito pequena ou quase nula. Esta é normalmente uma decisão colegial, que envolve vários profissionais e várias equipas médicas.
Desde que foi diagnosticado o primeiro caso de Covid-19 em Portugal, quantos pacientes infetados com o SARS-CoV-2 foram encaminhados para o Centro de ECMO do São João? E quantos recuperaram?
Desde que a pandemia chegou a Portugal, recebemos 13 doentes para ECMO e, até ao momento, tivemos quatro casos de recuperação. Estes são doentes que demoram muito tempo a recuperar.
Qual a capacidade do Centro de ECMO? Está a ser utilizado na sua capacidade máxima?
Tivemos um pico de 15 doentes em simultâneo, mas alguns deles não eram Covid. Dois eram doentes que ainda estavam a recuperar da gripe, um deles saiu recentemente do ECMO, ao fim de dois meses, e outro era do foro eminentemente cardíaco.
Em catástrofe não temos condições nem recursos para fazer ECMO
O São João participa num estudo europeu (ECMOCard) que pretende avaliar os resultados da utilização desta técnica em doentes Covid. Qual o ‘feedback’ até ao momento?
De facto, temos colaborado a nível internacional no estudo para tentarmos perceber qual é o posicionamento do ECMO nesta doença que se acompanha de uma mortalidade muito elevada. A nível europeu, a taxa de utilização do ECMO tem vindo a aumentar. Mas como esta é uma técnica muito consumidora de recursos, não é indicada para países que estão a passar por uma situação de catástrofe. Em catástrofe não temos condições nem recursos para fazer ECMO.
A nossa leitura é ainda preliminar. À medida que os dados se forem acumulando e a experiência for aumentando, vamos ter uma posição mais equilibrada e mais madura. Mas o que aprendi com estes mais de dois meses é que devemos reservar o ECMO para os doentes relativamente novos e sem doenças associadas, que têm capacidade para recuperar após um grande período de doença grave. Nestes casos vale a pena tentar o ECMO porque não temos alternativa e são doentes que, pela sua reserva fisiológica, conseguem ainda encontrar forças e energias para recuperar depois de uma doença muito grave. Vale a pena, mas é extremamente difícil.
Na nossa casuística, a maior parte dos doentes que temos em ECMO tem entre os 30 e os 50 anos
Apesar de este ser um vírus especialmente perigoso para pessoas mais velhas e com comorbilidades, quer isso dizer que há jovens saudáveis que desenvolvem doença grave?
Na nossa casuística, a maior parte dos doentes que temos em ECMO tem entre os 30 e os 50 anos. Temos um doente com 33 anos e outro com 35, vários com idades entre os 45 e 49 anos e sem doenças significativas associadas. A maior parte dos casos de Covid-19 não ocorre em doentes com estas características, mas a verdade é que também os há.
Seria muito ingénuo pensar que não precisaríamos de mais condições
Neste cenário de pandemia, o Centro de ECMO do São João tem falta de recursos?
Em Portugal, estamos a viver uma situação privilegiada, de sobrecarga dos cuidados de saúde, mas em que ainda conseguimos responder. Se tenho falta de recursos? Tenho muito mais recursos que em Nova Iorque, que no norte de Itália, que são países teoricamente mais ricos que o nosso, mas que infelizmente não conseguiram enfrentar esta guerra de uma forma tão eficaz como nós estamos a conseguir. Por mais recursos que tivesse, teria sempre poucos recursos.
Como é evidente, seria muito ingénuo pensar que não precisaríamos de mais condições, de mais recursos. Por isso, ficámos muito satisfeitos quando este grupo de compositores ingleses, com fortes ligações a Portugal, se lembrou de nós. Todas as ajudas são bem-vindas, como é evidente e é fácil de perceber, esta é uma área que está a crescer muito, o tipo de solicitações que temos é crescente e, se tivermos ajudas por parte da sociedade civil, conseguimos dar uma melhor resposta e é tudo mais fácil.
Uma parte importante das verbas que possamos angariar neste contexto serão canalizadas para desenvolvermos ações de formação e de atualização
Onde serão utilizadas as verbas angariadas com esta iniciativa dos Chameleon Collective?
O conhecimento é o mais difícil de adquirir. É certo que os equipamentos são importantes, mas a maneira e a forma como os utilizamos é determinante. Uma parte importante das verbas que possamos angariar neste contexto serão canalizadas para desenvolvermos ações de formação e de atualização para toda a nossa equipa. Sem esse aumento de conhecimento os resultados não melhoram.
Depois [a verba] será usada em equipamentos. Para fazermos ECMO precisamos de uma máquina de ECMO, sem ela não conseguimos construir o circuito extracorporal para substituir a função pulmonar. Por outro lado, para monitorizarmos estes doentes, precisamos de ecógrafos portáteis muito bons, com algumas características. Isto porque umas vezes precisamos de ver o coração, outras de ver o pulmão.
Por isso, no contexto atual, todas as ajudas são poucas porque vamos tendo um número crescente de doentes. Para se ter uma ideia, no ano passado, tratámos mais de 100 doentes. Este ano, com este volume de doentes que estamos a receber, talvez cheguemos aos 200 num ano. Isto é um aumento exponencial.
No fundo, precisamos de recursos humanos mais preparados e de recursos materiais. Esta cola biológica que estas iniciativas nos podem dar permitem tornar tudo mais fluído porque não adianta termos recursos humanos se não tivermos o know-how, não adianta ter o know-how se não tivermos os equipamentos, e não adianta termos os equipamentos se não tivermos os recursos humanos.
Como é composta a equipa dos profissionais de um Centro de Referência ECMO?
Estando em causa doentes hipercríticos, precisamos de uma equipa muito diferenciada que utiliza conhecimento de várias áreas. A área de conhecimento que o ECMO utiliza muito é a do doente crítico, da área da Medicina Intensiva, mas, como é evidente, também precisamos de uma forte preparação na área da Cardiologia, da Pneumologia, da Cirurgia Cardíaca. Precisamos também de equipas médicas e de enfermagem, de especialistas de perfusão. Sem este multiprofissionalismo, os resultados acabam por não ser bons.
É minha convicção que em muitos doentes o ECMO pode substituir o ventilador
Como vê o futuro desta técnica?
É minha convicção que em muitos doentes o ECMO pode substituir o ventilador. Alguns destes doentes são maus candidatos à ventilação mecânica invasiva e provavelmente em alguns, se utilizarmos o ECMO em vez de um ventilador, teremos muito melhores resultados. Acredito que esse é o caminho do futuro.
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