"Compromisso para com doente não é apenas técnico, mas também de homem"
O Notícias ao Minuto esteve à conversa com Fábio Cota de Medeiros, médico infecciologista e um dos dois coordenadores da Unidade de Internamento de Contingência da Infeção Viral Emergente do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte, destinada aos doentes infetados com Covid-19.
© Fábio Cota Medeiros
País Fábio Cota de Medeiros
Fábio Cota de Medeiros, de 32 anos, é natural de uma das mais pequenas ilhas dos Açores. Cresceu nas Flores, no território português mais afastado do continente, mas nunca deixou que os seus sonhos se reduzissem aos 141,7 quilómetros quadrados da ilha.
Na escola primária queria ser cientista. Cedo os professores perceberam que as notas o iam levar longe. Mas nunca terão pensado que o aluno que ocupava os lugares dianteiros na sala de aulas, fosse um dia combater na linha da frente um dos vírus mais assustadores do mundo, que já matou 290 mil pessoas e infetou mais de 4 milhões.
É que hoje, depois de ter ‘navegado’ até Portugal Continental, aos 17 anos, para ingressar no ensino superior, no curso de Medicina, luta contra o novo coronavírus na maior unidade hospitalar do país, o Hospital de Santa Maria, em Lisboa. Mais. Coordena a Unidade de Internamento de Contingência da Infeção Viral Emergente (UICIVE) do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte, destinada aos doentes infetados com Covid-19, em parceria com a médica Sandra Braz, e onde, neste momento, trabalham 56 profissionais de saúde de várias áreas.
Em entrevista ao Notícias ao Minuto, o médico infecciologista, que está habituado a lidar com situações complicadas a nível profissional, como o VIH e outras doenças infecciosas, confessou que é um “desafio” lidar com o SARS-CoV-2. Mesmo assim, admite que há dois aspetos que "facilitam" o combate à pandemia: o facto de ainda não ter filhos e de parte da família permanecer na ilha das Flores, onde, até agora, não há casos de infeção.
Nesta entrevista, Fábio Cota de Medeiros explicou como funciona a UICIVE, falou da importância da utilização da máscara, das medidas de isolamento, da etiqueta respiratória e da lavagem frequente das mãos. Revelou os cuidados que adotou enquanto infecciologista, enquanto médico que lida todos os dias, desde 2 de março, com a Covid-19 e enquanto português. E contou ainda uma das histórias que mais o marcou no campo de batalha contra um ‘inimigo invisível’, porque o compromisso do clínico para com o doente, garante, “não é apenas técnico, mas também de homem”.
Coordena a Unidade de Internamento de Contingência da Infeção Viral Emergente (UICIVE), destinada aos doentes infetados com Covid-19 com a médica Sandra Braz. Quando é que esta unidade foi criada e quando entrou em funcionamento?
A UICIVE foi criada como resposta à necessidade do Hospital em criar uma unidade funcional para tratar os doentes com Covid-19. São doentes complexos que implicam uma abordagem particular. Precisam de estar isolados para controlar o risco de transmissão, os profissionais de saúde que lidam com eles têm de cumprir regras de segurança especiais, o espaço físico onde estão deve estar otimizado e a intervenção clínica é muito particular. A UICIVE surge para dar resposta a tudo isto, dentro do possível. E com muitos desafios, não só porque foi uma corrida contra o tempo, mas porque foi instalada num espaço físico que já existia e no qual não foi possível fazer muitos ajustes. Esta unidade entrou em funcionamento no dia 16 de março.
Até agora não houve falta de equipamento de proteção individual (EPI) necessário na abordagem dos doentes. No entanto, também não estou a dizer que havia, ou há, material em abundânciaQuantos elementos tem? E com que especialidades conta?
A UICIVE é constituída por uma equipa multidisciplinar, na qual está incluída pessoal médico, de enfermagem, assistentes operacionais e assistentes técnicos, e que conta com o apoio imprescindível de fisioterapeutas, nutricionistas, psicólogos, bem como assistência espiritual. Do ponto de vista médico a unidade era constituída inicialmente por 17 elementos, tendo-se expandido à medida que o número de doentes internados com infeção por SARS-CoV-2 aumentou, pelo que agora conta com 56 médicos. Estes médicos pertencem a múltiplas especialidades, como Medicina Interna, Infecciologia, Pneumologia, Endocrinologia e Reumatologia. A existência de médicos de diferentes especialidades é fundamental para a abordagem e discussão conjunta destes doentes que muitas vezes são complexos, não só pelo Covid, mas particularmente por todas as comorbilidades que apresentam.
Até agora, têm o material necessário para lidar com doentes com Covid-19?
Até agora não houve falta de equipamento de proteção individual (EPI) necessário na abordagem dos doentes. No entanto, também não estou a dizer que havia, ou há, material em abundância. Algumas das peças de EPI estavam contadas quando tivemos os primeiros casos, e ainda hoje temos de nos adaptar (de forma minor) quando algum do material não está imediatamente disponível. Mas a atuação ocorre sempre em segurança.
O compromisso do clínico para com um doente não é apenas técnico, mas também de homem Que caso lhe tocou mais?
É difícil responder a isto porque são poucos os casos simples. Mas há um caso específico: um doente que ia ser ventilado, que não tinha forma de falar com a família e que tinha um recado complexo a transmitir, com vários intervenientes. Numa situação normal isto seria simples: pegava numa folha de papel e escrevia. Mas neste caso estávamos num quarto de isolamento, em que eu não tinha qualquer forma de registar os nomes e, para piorar, era já de madrugada. Repeti inúmeras vezes o pedido, até que duas horas depois consegui escrever. O recado até poderia ser algo insignificante, mas não queria falhar. Eu tinha-me comprometido em cumprir aquilo. E o compromisso do clínico para com um doente não é apenas técnico, mas também de homem.
A nível pessoal como tem lidado com esta pandemia?
Outro desafio. Continuo a ir para casa todos os dias, mas sem as restantes visitas familiares que eram frequentes. Felizmente não tenho filhos e vivo só com a minha esposa. Mas já antes do confinamento tínhamos restringido os contactos fora de casa. Não podemos ser veículos transmissores de doença. Por outro lado, há um aspeto que facilita: parte da família está longe e numa Ilha (Flores, nos Açores) onde não há casos de infeção. Como um amigo me escreveu no outro dia, estão a colher os dividendos do preço caro que pagam tantas vezes pelo isolamento. E isto tranquiliza-me um pouco no meio de toda esta situação.
O uso de máscara deveria ser recomendado em todos os locais além do domicílio, independentemente do número de pessoas ou de ser um espaço aberto ou nãoQue cuidados tem?
Uso permanente de máscara em todas as situações que envolvam contactos com pessoas além do domicílio. Além disto, no hospital uso a roupa que é apenas de trabalho e, ainda assim, mudo de roupa assim que chego a casa. Como médico, e especialmente como Infecciologista, sempre tive o hábito da lavagem frequente das mãos, e a etiqueta respiratória faz parte do meu dia a dia desde há anos.
O que acha do uso de máscaras? Todas as pessoas deviam usar quando se deslocam a locais onde podem existir aglomerados de pessoas?
Neste momento já existem recomendações para o uso de máscaras. De qualquer modo, na situação de pandemia, o uso de máscara deveria ser recomendado em todos os locais além do domicílio, independentemente do número de pessoas ou de ser um espaço aberto ou não. É esperado que o uso generalizado de máscara reduza o risco de transmissão do vírus, algo particularmente importante nesta fase de desconfinamento.
Apesar de termos assistido a um isolamento precoce na sociedade portuguesa, o que permitiu, até agora, achatar a curva de casos, também vemos que a população portuguesa já anda demasiado na ruaComo infecciologista qual considera ser a melhor atitude a adotar por parte da população para evitar apanhar o novo coronavírus?
Poderei soar algo repetitivo, mas o uso de máscara, a etiqueta respiratória e a lavagem frequente das mãos são as melhores estratégias para uso generalizado. Isto, aliado ao respeito pelas medidas de isolamento social, é o heroísmo de cada um. Apesar de termos assistido a um isolamento precoce na sociedade portuguesa, o que permitiu, até agora, achatar a curva de casos, também vemos que a população portuguesa já anda demasiado na rua. Eu entendo que as pessoas estão cansadas de estarem em casa, e que o bom tempo é sedutor, mas é necessário perceber que, se não respeitarem o isolamento, todo o esforço até agora cairá por terra.
O isolamento social trouxe consequências terríveis para as famílias portuguesas, com um impacto económico que creio ainda estar muito disfarçado, e que teve como objetivo garantir a segurança e o bem comum. Penso que as pessoas, ao saírem de casa, deverão ter consciência do seu dever como cidadãos e respeitar as outras pessoas, para que o esforço de muitos não caia pelo impulso de alguns.
Este vírus é dos mais preocupantes do século e quiçá do milénio? Porquê?
Ao longo da história da humanidade temos assistido à emergência de novas infecções, e atualmente conseguimos identificar mais facilmente os microrganismos do que éramos capazes de o fazer há um século atrás. Se considerarmos que, nas duas décadas deste século, o SARS-CoV-2 é o terceiro coronavírus com elevada virulência e potencial patogénico, o mais provável é termos a emergência de novos microrganismos de elevada patogenicidade até ao final do século. E é isto que caracteriza a Infecciologia: novas manifestações de doenças antigas e a emergência contínua de novas doenças.
Pela necessidade de controlo da transmissão do vírus, e pelo risco elevado de novas vagas de doença, penso que iremos demorar pelo menos um ano até regressar à normalidade, se não for maisQuando é que acha que o país (e o mundo) poderá voltar á normalidade? E acha que este vírus vai desaparecer completamente ou vamos aprender a lidar com ele?
Atualmente estamos numa marcha progressiva para a normalidade. Mas é uma marcha que terá de ser lenta. Não creio que seja possível a erradicação do vírus, teremos de aprender a lidar com ele do mesmo modo que aprendemos a lidar com a gripe, ainda que as consequências sejam muito diferentes. Pela necessidade de controlo da transmissão do vírus, e pelo risco elevado de novas vagas de doença, penso que iremos demorar pelo menos um ano até regressar à normalidade, se não for mais. Mas devo deixar estas considerações para os epidemiologistas.
Só a vacina conseguirá dar anticorpos para este vírus? Qual é a probabilidade de ela ficar disponível até ao final do ano?
A comunidade científica está numa maratona para encontrar tratamentos e vacinas eficazes. À luz do que se sabe atualmente, penso que será possível a construção de uma vacina eficaz. Mas isto é um processo complexo e, desde a identificação de uma vacina até à possibilidade de utilização clínica, são necessárias várias etapas que são demoradas, mas necessárias. É necessário garantir eficácia, mas também segurança. Por tudo isto, não creio que haja uma vacina disponível até ao final do ano.
Antes de aparecer a Covid-19, quais eram os vírus (ou outro tipo de infeções) que mais preocupavam os médicos portugueses?
As doenças infecciosas são das doenças mais frequentes na prática clínica. A maioria destas doenças é causada por bactérias ou vírus, e a abordagem até pode ser simples, pelo que a maioria das infecções são tratadas por outros médicos que não são infecciologistas. As infecções respiratórias são das infecções mais frequentes, em especial nas crianças e nos idosos, e na maioria das vezes são abordadas na urgência ou em consulta, sem o doente ser internado. Mas as infecções mais preocupantes eram, na minha opinião, as infecções nosocomiais. Estas são infecções adquiridas no hospital, muito frequentemente associadas à intervenção clínica, e são causadas por bactérias que são resistentes a vários antibióticos. São infecções particularmente difíceis de tratar, que estão associadas a elevada morbilidade e mortalidade, e cujo controlo é ainda mais difícil que o controlo da transmissão do SARS-CoV-2.
Como é o dia a dia de um médico no serviço de infecciologia?
A prática diária de um infecciologista é variada e depende do local onde trabalha. Por exemplo, posso dizer-lhe que a minha rotina é diferente da rotina de um colega do Curry Cabral ou do Hospital Pedro Hispano. Habitualmente o infecciologista trabalha numa unidade de internamento, onde estão internados doentes com patologia infecciosa que necessitam de uma abordagem especializada (por exemplo, doenças oportunistas associadas ao VIH, infecções ósseas, endocardite, meningite, tuberculose, malária, etc), sendo responsável por dar apoio a outros serviços de internamento ou Urgência.
Além disto, os infecciologistas têm, também, muita atividade em consulta, onde é feito o seguimento de pessoas com infecção por VIH, hepatites ou doenças infecciosas agudas, mas também onde fazem consulta de profilaxia ao Viajante e a candidatos a tratamentos imunossupressores. Como lhe disse, isto varia de acordo com os centros, e até muda entre infecciologistas. No meu caso, desde há quase dois anos que trabalho maioritariamente no Hospital de Dia de Doenças Infecciosas, onde faço seguimento de pessoas com infecção por VIH, bem como profilaxia de exposição (pré e pós-exposição).
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