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"Se o OE não for aprovado isso será revelador de uma quase insanidade"

O entrevistado de hoje do Vozes ao Minuto é Eduardo Marçal Grilo, que analisa os desafios impostos pela pandemia de coronavírus ao país, nomeadamente nos setores da educação e da economia. O antigo ministro da Educação aborda ainda a importância da aprovação do Orçamento do Estado para 2021 e do Plano de Recuperação.

"Se o OE não for aprovado isso será revelador de uma quase insanidade"
Notícias ao Minuto

15/10/20 por Fábio Nunes

País Eduardo Marçal Grilo

A pandemia de coronavírus virou do avesso as previsões de crescimento económico em Portugal para os anos vindouros. As consequências já se fazem sentir em termos sociais e económicos e é notório o pessimismo relativo aos próximos tempos.

Quando Eduardo Marçal Grilo, antigo ministro da Educação, começou a escrever o livro 'Não Tenham Medo do Futuro' (da editora Clube do Autor) no ano passado, a pandemia ainda não tinha chegado ao país. Mas durante esse processo o vírus chegou e Marçal Grilo teve de fazer alguns ajustes às suas previsões e perspetivas para o futuro de Portugal. 

Na obra que já foi publicada, responde aos desafios e às dificuldades com as potenciais oportunidades para desenvolver Portugal. 

Numa entrevista ao Notícias ao Minuto, Eduardo Marçal Grilo aborda o impacto da pandemia no tecido económico português, deixa elogios ao Plano de Recuperação e Resiliência elaborado por António Costa e Silva, mas considera que é essencial estabelecer acordos políticos para serem definidas "áreas âncora que sirvam para relançar a economia do país" e para serem criadas as condições para a execução das medidas que constam no plano. 

Sobre o Orçamento do Estado para 2021, lembra que não basta distribuir riqueza, "é preciso criá-la" e defende um equilíbrio entre o investimento público e o investimento privado. Marçal Grilo recusa a possibilidade de que o OE para 2021 venha a ser inviabilizado. "Acho que o país ainda não ensandeceu e portanto acho que parte de todos os partidos terem um senso mínimo para perceber que o país precisa de um Orçamento para 2021", frisa. 

Como não poderia deixar de ser face ao papel que tem desempenhado no setor da Educação em Portugal, o antigo governante analisa os desafios de um ano letivo que deverá ser marcado pela imprevisibilidade da evolução da pandemia no país e salienta a importância de uma formação com uma base sólida para os jovens. 

Como avalia a resposta do Governo à pandemia no setor da Educação até ao momento?

O que se passou no ano letivo passado foi uma situação absolutamente extraordinária, excecional, fora de qualquer previsão. Nenhum país, no fundo, encontrou uma boa solução. Aliás, não era possível uma boa solução. O que era possível era minimizar os danos provocados pela pandemia e pela necessidade de fechar as escolas.

As escolas foram fechadas, numa dada altura, até por um certo imperativo social, começou a haver uma pressão muito grande. Um dos poucos países que não fechou as escolas foi a Suécia. Portugal optou por encerrar as escolas e enveredar por um ensino remoto – não lhe chamaria um ensino à distância, que tem outras regras e outra forma de trabalhar. Esse ensino foi montado de uma forma muito rápida, muito expedita por grande parte das escolas, mas obviamente que trouxe problemas para muita gente. Para muitos estudantes, para muitas famílias. Os alunos ficaram em casa e depois através de smartphones, por computador, ou por tablets – os materiais que estavam disponíveis para alguns, mas que infelizmente não estavam disponíveis para todos – tinham as aulas. Na altura, não me pareceu haver alternativa. Devemos estar particularmente agradecidos ao professores pelo facto do dano introduzido não ter sido mais significativo. Não sabemos quantos alunos terão tido dificuldade de acesso, mas talvez 40 ou 50 mil, pelo menos é aquilo que se indica como provável. E esses alunos foram manifestamente prejudicados na sua formação.

Houve aspetos muito positivos nesta experiência. Certamente, o que foi positivo tem de ser muito bem avaliado e sistematizado, para se perceber o que é que desta experiência pode ser útil para o ensino presencial. Ou melhor, como complemento do ensino presencial.

Na minha opinião é insubstituível a ligação pessoal e empática entre o professor e o alunoComo encara este novo ano letivo que começou há pouco tempo, um ano letivo imprevisível e que deverá ser marcado por outros desafios neste contexto sanitário?

O grau de imprevisibilidade é grande e não sabemos como é que a situação vai evoluir. Os números das últimas semanas mostram que o vírus está a espalhar-se a uma velocidade imensa, e em Portugal também. As escolas têm de estar preparadas para poder enfrentar situações em que é necessário ter um plano, por exemplo no caso de aparecer um surto. Esse surto ocorrer numa sala de aula, numa turma, num pavilhão. É preciso perceber que as escolas têm de estar preparadas em função daquilo que é a constituição da própria escola, em termos de isolamentos, estanquidade que podem ser assegurados. Isso depende de cada escola e não deve haver um plano de contingência uniformizado para todos os estabelecimentos de ensino. Isso seria um erro enorme. As escolas também devem manter um contacto e uma ligação muito estreitos com as autoridades de saúde.

O ano escolar de 2020/2021 é necessariamente um ano muito atribulado, pela questão da pandemia e por uma outra questão, que é perceber quais são os planos de recuperação que devem ser aplicados. Porque cada aluno é um aluno, cada turma é uma turma, e as situações pode ser muito diversas. Portanto, as escolas, os professores, os diretores, têm seguramente em mente esta necessidade de ver quais são os planos de recuperação que devem ser postos em prática, em função da avaliação do programa que determinados alunos têm. Não se pode fazer um plano de recuperação individual para cada estudante, isso seria impossível. Mas pelo menos tentar encontrar grupos de alunos que tenham tido problemas semelhantes e aos quais se possam aplicar esses planos de recuperação.

Este é um ano particularmente difícil. Julgo que as escolas estão cientes disso. Temos ouvido o presidente da Associação dos Diretores de Agrupamentos e Escolas Públicas que tem tido uma palavra muito ponderada e muito realista em relação aos problemas. O Ministério da Educação também tem de estar muito atento a isto porque tem uma informação muito alargada do que se passa em todo o país, através das direções regionais. Temos de nos pôr todos do lado da solução e não do lado do problema. Problemas temos nós que cheguem. O Ministério, os diretores das escolas, os professores, os pais, os alunos, os sindicatos, enfim todos os intervenientes, têm de procurar as melhores soluções para resolver os problemas que aí vêm.

O ensino à distância demonstrou a necessidade de um maior investimento na digitalização das escolas?

A digitalização será sempre útil, mas nada substitui o ensino presencial. A ideia de que os equipamentos vão fazer grandes substituições face às aulas presenciais não é verdadeira. Sobretudo, no ensino básico e secundário. No ensino superior, nomeadamente em níveis mais avançados, há muito trabalho que pode ser feito através dos meios digitais. Nas salas de aula do ensino nas escolas básicas e secundárias o ensino presencial é insubstituível.

Agora, concordo que a digitalização pode melhorar o funcionamento das escolas. Até lhe posso dar um exemplo em concreto. A escola alemã em Milão aboliu por completo o papel. Cada um dos alunos tem um iPad que contém toda a informação, o conteúdo que é dado nas aulas, os trabalhos de casa. Está tudo no iPad. Não diria que se trata de uma revolução no ensino mas é um salto significativo. No entanto, sempre com aulas presenciais. Na minha opinião é insubstituível a ligação pessoal e empática entre o professor e o aluno.

Notícias ao MinutoO livro de Marçal Grilo pretende combater o pessimismo em torno dos desafios que Portugal vai encarar nos próximos anos © Clube do Autor

Torna-se ainda mais premente uma boa formação de base para os nossos jovens tendo em conta os desafios que terão de enfrentar nos próximos anos, com as consequências económicas e sociais da pandemia que vão perdurar, mas também num mundo marcado pela proliferação de fake news, no qual o conhecimento assume uma importância ainda maior?

Eu comecei a escrever o livro antes da pandemia e terminei-o durante a pandemia. Vi-me em certa altura na necessidade de introduzir algumas partes que têm a ver com as consequências da pandemia. A pandemia veio no fundo aumentar o grau de imprevisibilidade do que vai acontecer, e isso aumenta a necessidade de ter uma formação de base sólida. Uma formação de base sólida são os conhecimentos, as atitudes e os valores, que são uma espécie de três pilares em que eu assento uma formação de base sólida.

No que diz respeito aos conhecimentos, tudo o que possa ser feito para as pessoas saberem distinguir o que é verdadeiro do que é falso é útil. Isto implica por um lado conhecimentos, saber em quem devemos confiar, quais são as fontes. Por exemplo, diariamente recebemos mensagens ou circulam vídeos dos quais é preciso fazer um ‘checking’. Recebemos uma informação e questionamos se será mesmo assim, tentamos procurar uma fonte alternativa. As pessoas têm de ter um sentido crítico sobre as coisas. A formação de base dos nossos jovens tem de ensiná-los a distinguir uma coisa da outra, eles têm de ter capacidade para analisar e formar a sua própria opinião. Têm de ser treinados para fazer isto. A escola tem uma grande responsabilidade.

Nós portugueses temos uma certa falta de cultura científica. Na cultura científica o que importa é saber fazer as perguntas e depois tentar encontrar resposta para essas perguntas. Estarmos permanentemente levantar dúvidas. O cientista está sempre insatisfeito e quer sempre saber mais. Isso é uma atitude que se ganha na escola. A curiosidade, o interesse em esclarecer as dúvidas e a capacidade para fazer perguntas. Os alunos que fazem perguntas são os mais curiosos.

O setor do turismo precisa de uma atenção muito especial pela delicadeza da situação que está criadaPorque é que considera esses três pilares os mais importantes?

Atualmente, o conhecimento é de tal maneira vasto que não podemos ter a veleidade de querer que um miúdo que termine a escolaridade obrigatória aos 18 anos saiba tudo. Os conhecimentos são muito importantes. É preciso dominar a língua portuguesa, é preciso dominar pelo menos duas línguas estrangeiras, é preciso ter um raciocínio lógico que assenta na matemática, saber de onde é que vimos e onde é que estamos, isto é a história e a geografia. Não é preciso saber a história toda, mas há pilares na história, como na geografia, na física, na biologia, no conhecimento das artes plásticas, na música. Tudo isto são coisas que fazem parte da formação de base.

O segundo pilar que é o das atitudes e dos comportamentos, acho que é importante que a escola treine os seus alunos para serem autónomos, para pensarem de forma independente, serem responsáveis, terem iniciativa, serem capazes de conviver com a mudança, serem rigorosos, não desistirem. Um conjunto de atitudes que as pessoas têm e que as tornam proativas. As pessoas devem ser proativas, não devem estar à espera que lhes digam o que devem fazer.

Depois a questão dos valores, que é o sentido ético da vida, a solidariedade, o respeito pelos outros. E no respeito pelos outros diria que está praticamente tudo. Quando lemos a encíclica do Papa Francisco que saiu há uma semana que se chama ‘Fratelli Tutti’, o Papa diz praticamente tudo sobre os valores. Fala de pobreza, de desigualdade, de populismo, de nacionalismo, de violência, de guerras, de pena de morte, dos movimentos radicais que estão tão na moda, tanto de um lado como do outro, fala do problema das pessoas, o problema da atitude das pessoas, a atitude perante as outras religiões. O respeito pelos outros é muito importante. Não é ser tolerante. É respeitar as convicções dos outros. Seja outra etnia, outra religião, outra ideologia política.

O mundo está de tal maneira crispado que parece não haver um país ou região que viva com alguma tranquilidade. Vivemos todos sob brasas. Há uma espécie de uma trepidação permanente. Isto implica necessariamente que repensemos a forma como nos respeitamos uns aos outros. Acho que isso é de uma importância fundamental.

Desperdiçamos talento nas escolas/sociedade? Coloco a questão desta forma porque esse talento nem sempre é detetado nas escolas ou em casa, onde os pais nem sempre dispõem do tempo para desempenharem o papel de educadores e fazerem o acompanhamento devido.

Por vezes confundimos talento com grande sucesso. Confundimos o talento com o Cristiano Ronaldo ou um arquiteto como o Siza Vieira, ou com este jovem que agora está a liderar o Giro de Itália, o João Almeida. Estes são casos excecionais. O talento tem de ser entendido como algo que cada um de nós tem. E esse talento tem de ser detetado. A família muitas vezes deteta, outras vezes não por variadas razões e as que apontou são verdadeiras. Os pais vivem muitas vezes em situações difíceis. Saem às 7h da manhã e chegam pouco antes do jantar. O contacto que têm com os filhos é mais esporádico e eles não são acompanhados.

Portanto, desde o pré-escolar até ao final da escolaridade obrigatória os professores têm de perceber quem são os seus alunos, os talentos que têm. É importante que os miúdos percebam o talento que têm e a necessidade de trabalhá-lo. Não basta identificar o talento. Isto também é verdade ao nível das empresas. As empresas devem ser capazes de pegar nas pessoas que contratam e perceber onde é que são melhores, onde se realizam mais e onde podem ser mais úteis às empresas. Somos todos responsáveis por isto. Tenho quatro netas e um neto e acompanho-os. Procuro perceber onde é que está o talento de cada um deles, em que são melhores, quais os seus maiores interesses, aquilo em que estão mais focados, as áreas em que demonstram maior apetência. Os professores têm obrigação de fazer isto também. Perceber se os seus alunos se inclinam mais para os números ou para as letras, se têm capacidade de iniciativa, se são bons líderes.

Depois vem o trabalho individual de cada um. A persistência, o treino, definir objetivos e nunca desistir. Nós sabemos de pessoas no desporto ou na música que têm um talento extraordinário, mas que exploram esse talento com um trabalho intensíssimo. Se olharmos para a vida desportiva de um jogador como o Cristiano Ronaldo, ele trabalha loucamente. Trabalha horas e horas diariamente para se manter em forma e fazer as coisas que faz. Ter talento dá muito trabalho. A escola tem de ajudar nisto.

Notícias ao Minuto Eduardo Marçal Grilo defende um grande equilíbrio entre o investimento público e o investimento privado © Global Imagens

Como referiu anteriormente começou a escrever o livro ainda antes da pandemia de coronavírus chegar a Portugal. De que forma a pandemia alterou as suas perspetivas futuras para o país?

Na parte da economia há setores que foram muito mais afetados do que outros. Se olharmos para um setor que é fundamental que é o setor do turismo, que é capaz de representar 14 ou 15% do PIB, temos de perceber que esse setor vai passar por uma situação particularmente difícil. Tal como o setor da aviação, temos o caso da TAP. Que não é um caso especial, pois todas as companhias aéreas no mundo atravessam um momento difícil. Há aqui desafios, problemas, que têm de ser encarados pelos poderes públicos, por um lado, e por outro por quem tem responsabilidades nos diversos setores.

O setor do turismo é um setor que se for completamente desmobilizado, isto é, se os hotéis fecharem, se as pessoas forem mandadas para casa, se os restaurantes fecharem e as pessoas forem mandadas para casa, e isto entrar numa espécie de hibernação, as consequências podem ser muito graves. Quer-me parecer que aquilo que os responsáveis do turismo e as entidades governamentais estão a tentar fazer é aguentar este tecido que vive à volta do turismo e que é muito vasto, que são as companhias de transporte, os agentes turísticos, os hotéis, os restaurantes, os bares, os espetáculos. É preciso aguentar este tecido na esperança de que tão rápido quanto possível haja uma retoma, sendo que essa retoma não se faz por vontade. Faz-se quando existirem condições para as pessoas voltarem a viajar e a fazerem turismo no estrangeiro.

A área da exportação também é uma área fundamental e os problemas não se resolvem com o consumo interno. Os problemas têm de se resolver com uma aposta nas exportações. O turismo é um setor de exportação, embora seja uma exportação muito especial, pois não é propriamente um bem transacionável. No setor dos bens transacionáveis o mundo arrefeceu todo um bocadinho, Em alguns casos arrefeceu um bocadão. Na nossa vizinha Espanha a quebra da economia é gigantesca, no valor dos dois dígitos. Em Inglaterra a situação também está numa situação bastante complicada. Os Estados Unidos também têm um problema de desemprego muito complicado. Embora as reações sejam muito diferentes de país para país. Os Estados Unidos têm uma capacidade de reação muito superior relativamente à Europa. Muito rapidamente são capazes de criar milhões de empregos.

É evidente que há muitos setores que vão sofrer com a pandemia de uma forma que eu não tinha previsto. O turismo é um setor muito problemático para o futuro e escrevi no livro que este setor precisa de uma atenção muito especial pela delicadeza da situação que está criada.

PS e PSD parecem-me ser os dois partidos que têm uma perspetiva mais consentânea com as necessidades que o país temQue oportunidades devem ser aproveitadas face aos desafios e às consequências que surgiram com a pandemia? O plano de recuperação económica de Costa e Silva pode ser uma derradeira oportunidade para Portugal?

Não há soluções milagrosas. Aquilo que o professor Costa e Silva fez foi um exercício de estratégia, procurando analisar o país nos seus diversos setores e procurando perceber qual é o papel que devemos todos desempenhar. Neste caso, o Estado, a sociedade civil, as empresas, todos os intervenientes no processo de desenvolvimento e de produção de riqueza. O exercício que ele fez pareceu-me muito interessante. Obviamente, não há trabalhos perfeitos, mas é uma reflexão muito abrangente, com muitas propostas. Mas há agora a necessidade de haver em torno disto uma negociação que eu sempre defendi que deve ser uma negociação entre o PS e o PSD, no sentido de encontrar um conjunto de áreas âncora que sirvam para relançar a economia do país, e no fundo relançar o país.

Não sei se é a última oportunidade, mas é uma grande oportunidade. Vamos ter um apoio financeiro muito significativo, um conjunto de áreas e de setores que podem ser negociados e estabelecidos como base para o relançamento da economia e temos ainda a criação de um banco de fomento, ou seja uma entidade financeira específica para esta área. Julgo que estão criadas as condições para se poder avançar. Qual é a minha preocupação? Acho que o mais difícil está por fazer, que é criar as condições de execução destas medidas e destes projetos. Temos de encontrar um modelo para que isto possa funcionar de acordo com regras bem estabelecidas, com monitorização, com avaliação, com responsabilização e com muita transparência. Não podemos ter dúvidas sobre a forma como as coisas estão a ser feitas. Eu defendi que talvez não fosse despiciente ter uma espécie de ministro de Estado só para esta área, que tivesse como única função a gestão deste processo e servir como coordenador.

Tenho confiança que os responsáveis políticos, nomeadamente os do PS e do PSD, vão ter a noção exata das suas responsabilidades como grandes partidos. E não propriamente andarmos aqui focados se vamos ter Orçamento do Estado para 2021 ou não. Evidentemente que é muito importante termos Orçamento para o próximo ano e estabilidade, mas é preciso olhar além de 2021, que é apenas o primeiro passo de uma fase complexa, difícil, de toda esta década. Isto não vai por consensos, é uma questão de negociação entre os dois partidos. Têm posições diferentes e é preciso encontrar uma terceira posição para fazer avançar.

Se o país político não conseguir aprovar o Orçamento do Estado para 2021 isso será revelador de uma situação de quase insanidadeO que lhe parece a proposta de Orçamento do Estado para 2021 do Governo?

Não vi tudo ainda. Eu sou um defensor do aumento do rendimento das pessoas. Em Portugal os rendimentos são muito baixos e as pessoas vivem com dificuldades. A percentagem de portugueses que vivem com o salário mínimo é altíssima. O valor do salário mínimo está no limite mínimo da sobrevivência das famílias. A recuperação dos rendimentos parece-me ser muito importante. O aumento das pensões mais baixas também é muito importante. Mas também temos de acautelar-nos com a distribuição da riqueza. Não basta querer distribuí-la melhor, é preciso criá-la. E a riqueza cria-se sobretudo, quase em exclusivo, através do setor empresarial. Não no setor empresarial do estado, mas no setor empresarial privado.

É preciso perceber que muitos dos investimentos que se vão fazer, mesmo ao nível do investimento público, têm de ser a base para o desenvolvimento das empresas privadas. O sistema fiscal, o sistema de incentivos, o sistema de transportes, tudo aquilo que tem a ver com os mecanismos de exportação, tudo isto são bases para que os empresários possam fazer mais e melhor, e sejam também eles próprios investidores. Ou seja, esta discussão um bocadinho exacerbada, na minha perspetiva, em torno do investimento ser todo público ou todo privado, parece-me que é uma forma muito errada de colocar o problema. Há muito investimento público que tem a ver diretamente com o investimento privado e com o apoio aos empresários. Por exemplo, o transporte ferroviário é uma infraestrutura muito importante pois permite aos empresários exportarem melhor, mais rápido e em melhores condições. Tem de haver um grande equilíbrio entre uma coisa e outra. Entre o que é um investimento reprodutivo e aquilo que não é um investimento reprodutivo.

Por isso é que falo muito num acordo entre o PS e o PSD, porque parecem-me ser os dois partidos que têm uma perspetiva mais consentânea com as necessidades que o país tem e de uma forma mais equilibrada. Não estou a dizer que o Bloco de Esquerda e o PCP não devem defender os trabalhadores e o aumento dos rendimentos das famílias, tudo isso é muito relevante. Mas há uma outra componente. A componente da criação de riqueza e do aumento da capacidade produtiva do país.

Pode chegar ao fim a estabilidade política que temos conhecido nos últimos anos entre os partidos da Esquerda por causa do Orçamento do Estado para 2021?

Se o país político não conseguir aprovar o Orçamento do Estado para 2021 isso será revelador de uma situação de quase insanidade. Acho que o país ainda não ensandeceu e portanto acho que parte de todos os partidos terem um senso mínimo para perceber que o país precisa de um Orçamento para 2021. Não creio que possa ser inviabilizado, recuso-me a acreditar que os partidos não tenham consciência do que é não haver OE para 2021 e ficarmos a trabalhar com duodécimos a partir de janeiro e possivelmente fazer umas eleições legislativas a meio de 2021. Isso seria de uma irresponsabilidade da parte dos partidos políticos. Mas se por acaso este Orçamento não for aprovado, então o país está numa situação política muito mais difícil e muito mais degradada do que alguma vez poderia imaginar.

Eleições nos EUA? O fim disto pode ser não uma vitória do Biden, mas uma derrota do TrumpAs eleições nos Estados Unidos acontecem daqui a menos de três semanas. Que análise faz às campanhas de Donald Trump e de Joe Biden?

Tenho acompanhado com algum interesse o que se tem passado nos Estados Unidos. A situação nos Estados Unidos é muito difícil. O país está partido ao meio. O presidente Trump tem dito coisas absolutamente extraordinárias. Tem feito uma campanha que assenta em grande parte em ataques, muitos deles, verdadeiramente inconcebíveis numa democracia como a dos Estados Unidos. Vejo com alguma preocupação o que podem ser estas últimas três semanas, porque a campanha vai endurecer muito. O presidente Trump vai estar ao ataque durante três semanas, destruindo tudo e todos. Como está com alguma dificuldade nas sondagens está a disparar em todas as direções. Os democratas têm um candidato que é manifestamente débil. Não só a idade, mas a maneira como se exprime. Não é uma figura carismática nem particularmente atrativa. O fim disto pode ser não uma vitória do Biden, mas uma derrota do Trump. Se o Biden vencer a eleição é porque Trump a perdeu.

Esta eleição é essencialmente sobre Trump, os seus quatro anos de presidência. O que ele fez, a maneira como atuou. O americano comum não liga muito à CNN, que é mais para consumo externo. O presidente Trump continua a ter uma base de apoio muito forte, embora, a julgar pelas sondagens, não seja maioritária. Mas é muito aguerrida, muito fanática. Trump é uma figura muito especial, acho que ele vai ser um case study na democracia dos Estados Unidos, é um caso único entre os presidentes norte-americanos. O mundo está um pouco em suspenso com o que vai acontecer nestas eleições.

Estamos a assistir a uma luta muito intensa entre Trump e o Partido Democrata, havendo aqui duas coisas que para mim são difíceis de entender. Uma é a forma como o Partido Republicano se deixou colonizar por Trump. Hoje em dia o Partido Republicano praticamente não existe. As posições do partido são as posições de Trump. Aliás, ele até contraria aquilo que foram as bandeiras republicanas no passado e isso vai ter consequências para o futuro do Partido Republicano, ganhe ou perca Trump.

Outra coisa que é difícil para mim entender é a posição de muitos comentadores, por exemplo aqui em Portugal, que dizem que Trump é isto e aquilo mas que se opõe a esta deriva esquerdista do Partido Democrata, como se os democratas fossem comunistas e gente perigosíssima que vai pôr em causa o sistema capitalista. Como se fossem nacionalizar a Morgan Stanley, o Bank of America ou o Goldman Sachs. Quando a esquerda norte-americana, os chamados liberais do Partido Democrata, a única coisa que verdadeiramente defende é o acesso universal à saúde. Há milhões e milhões de pessoas que não têm acesso aos serviços de saúde nos Estados Unidos e se acedem ficam com uma dívida para o resto da vida. Também defendem os impostos sobre os super-ricos. Estas são as duas grandes bandeiras da esquerda norte-americana.

Donald Trump tem vindo a dizer que caso perca as eleições não vai fazer um discurso de concessão. Que impacto poderá ter isto nos Estados Unidos, cuja população já está tão dividida?

Pode ser gravíssimo para os Estados Unidos. Um candidato não reconhecer a derrota perante o adversário – seja o Trump ou o Biden –, que se recuse a aceitar a democratização na votação e que os resultados são legítimos, na minha opinião isso seria gravíssimo. Até impensável. Já tivemos um caso muito complicado que foi o do Al Gore com o Bush em 2000, que culminou com uma decisão do Supremo Tribunal relativamente à contagem dos votos na Flórida.

Portanto, se uma situação dessas ocorrer, se no dia 3 de novembro não houver um vencedor claro, se o processo se arrastar durante semanas ou meses até à data limite que é o dia 20 de janeiro, que é quando o presidente cessa funções e tem de ser iniciado um novo mandato, e isso está explícito na Constituição, se isso acontecer os Estados Unidos vão criar um problema interno e externo de dimensão incalculável. Recuso-me a acreditar que o Partido Democrata e o Partido Republicano possam entrar numa batalha jurídica de tal dimensão, podendo essa luta transbordar para as ruas.

Quando o presidente Trump disse durante o debate com Biden, a respeito dos Proud Boys, ‘Stand back and stand by’ (‘Afastem-se e fiquem a postos’), esta afirmação pode ser interpretada como se ele estivesse a dizer-lhes para estarem preparados porque se as eleições correrem mal eles podem ter um papel a desempenhar. Ele está a falar para uma milícia armada, e isso não é uma brincadeira. Aquelas fotografias que vemos dos Proud Boys são fotografias assustadoras. Estamos a falar de uma milícia armada com um aspeto quase bárbaro. Seria uma violência terrível nos Estados Unidos, pelo menos em alguns estados. Espero que os americanos tenham o equilíbrio suficiente para perceber aquilo que representam e o que representa a democracia norte-americana para o resto do mundo.

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