"Estamos a ter uma transmissão descontrolada do vírus na comunidade"
Filipe Froes, médico pneumologista e coordenador do gabinete de crise da Ordem dos Médicos, é o entrevistado de hoje do Vozes ao Minuto.
© Facebook / Filipe Froes
País Filipe Froes
Preocupado com a possível rutura do Serviço Nacional de Saúde e sendo certo que a pandemia vai continuar a agravar-se nas próximas semanas, Filipe Froes frisa que este é o momento de o país se unir em torno de uma resposta coesa no combate ao "inimigo comum" que é o SARS-COv-2. Se o fizermos, acredita, ainda vamos a tempo de evitar um novo confinamento.
Em entrevista ao Notícias ao Minuto, o coordenador do gabinete de crise da Ordem dos Médicos critica o facto de o Governo ter tomado medidas tardiamente, numa altura em que já era expectável o agravamento da incidência e algo que já era observável em países como em Espanha.
Apontando que houve um período de desvalorização da Covid-19, o médico pneumologista defende que é preciso um "discurso coerente e transparente ao longo da pandemia para manter a mobilização e a adesão das pessoas" às regras de prevenção.
Filipe Froes, que é também consultor da Liga, diz ainda que aplicação StayWay Covid está "moribunda" e que tentar torná-la obrigatória foi o "tiro de misericórdia" numa app que já tinha mostrado ser "inútil".
Em pandemia, todos os minutos contam e mais importante do que anunciar medidas, deve ser antecipá-las e criar condições para a sua concretização em tempo útil
Como avalia as medidas aprovadas pelo Governo e o regresso ao estado de calamidade?
Primeiro temos de ter a noção que as medidas agora implementadas só têm efeito provavelmente daqui a duas semanas. Nesta fase, as medidas já deviam ter sido tomadas há mais tempo, de acordo com o aumento exponencial do risco da exposição do vírus. Estamos, neste momento, a ter uma transmissão descontrolada da SARS-Cov-2 na comunidade que já era expectável em função da evolução dos últimos dias. Tínhamos o exemplo de Espanha. Inclusivamente, dei uma entrevista no dia 9 de outubro em que disse que estávamos atrasados duas a três semanas em relação a Espanha, se tanto. Em pandemia, todos os minutos contam e mais importante do que anunciar medidas, deve ser antecipá-las e criar condições para a sua concretização em tempo útil.
Portanto, as medidas agora tomadas, desde o limite de ajuntamentos, mesmo a questão da máscara obrigatória, já deviam ter sido tomadas muito antes?
A máscara obrigatória ainda não foi uma medida tomada.
Sim, mas é "fortemente recomendada" na rua e há a intenção legislativa de a tornar obrigatória.
O gabinete de crise da Ordem dos Médicos já tinha proposto a utilização da máscara em locais selecionados sempre com o risco de atividade e de transmissão na comunidade. Essa medida foi proposta no dia 10 de agosto, há mais de dois meses.
É uma medida que vem com muito atraso?
Para serem rentabilizadas, as medidas têm de ser implementadas na altura certa. Não basta anunciar, é preciso criar condições para a sua implementação em tempo útil.
O Governo também já esperava o agravamento da pandemia, tendo em conta que o antecipou no início de setembro.
O que é ainda mais grave. Se este aumento seria expectável, então também seria expectável que estas medidas já tivessem sido implementadas precisamente para evitar o que era expectável.
Criou-se muito a ideia errada de que a pandemia só provocava doença às pessoas mais idosas e mais frágeis. Não percebemos que esta pandemia é uma pandemia injusta e enganadora
O tempo certo para aplicar estas medidas teria sido naquele início de setembro aquando do estado de contigência?
Durante muito tempo, quer da parte do discurso oficial quer da parte da população, houve uma desvalorização da pandemia. Criou-se muito a ideia errada de que a pandemia só provocava doença às pessoas mais idosas e mais frágeis. Não percebemos que esta pandemia é uma pandemia injusta e enganadora. Enganadora porque, embora possa criar muito pouca doença ou mesmo nenhuma em grandes franjas da população, há conjuntos significativos da população que podem ter doença grave e inclusivamente morrer, com uma particularidade: só no fim da doença é que sabemos quem é mais atingido. Mesmo as pessoas que têm formas ligeiras não sabemos se posteriormente não terão complicações.
E ao termos esta ideia errada sobre o verdadeiro impacto da pandemia, não valorizamos devidamente os recursos no Serviço Nacional de Saúde (SNS) que foram alocados para tratar doentes de todos os grupos etários que estavam nos hospitais e que, por serem mais novos e mais saudáveis, sobreviveram. Esta desvalorização da pandemia atrasou a percepção da verdadeira gravidade e impacto da doença e prejudicou a implementação e a adesão de muitas medidas que já deveriam ter sido tomadas antes e que, eventualmente, agora já podiam ter impacto num maior controlo da situação.
Foi essa desvalorização que levou ao tal relaxamento de que o primeiro-ministro fala?
Da parte do discurso oficial não houve uma verdadeira tradução do impacto da doença. Tem de haver um discurso coerente e transparente ao longo da pandemia para manter a mobilização e a adesão das pessoas.
Vamos continuar a assistir nas próximas semanas ao aumento do número de casos
Esta ideia de tornar obrigatório o uso da aplicação StayWay Covid é já fruto de uma sensação de descontrolo da pandemia?
O gabinete de crise da Ordem dos Médicos emitiu um comunicado a transmitir a sua posição contrária à utilização obrigatória da aplicação StayWay Covid nos smartphones da população. Esta metodologia de tornar obrigatória uma aplicação foi a maneira de acabar com a sua utilização.
Foi o cortar-lhe 'as pernas'...
Sim. Esta aplicação está moribunda. Sabemos que a maior parte dos doentes não recebe código para introduzir e muitos nem são contactados em tempo útil pelas equipas de saúde pública. Se havia alguma vantagem na utilização da aplicação, a falta de operacionalização dos registos e dos inquéritos de saúde pública, tornou-a inútil. Tornar obrigatória uma aplicação inútil é acabar com ela, é o tiro de misericórdia.
A machadada final.
O senhor primeiro-ministro quis abanar tanto a aplicação que acabou por abanar demais e acabou com ela.
A ministra antecipou na semana passada que estariam para breve números diários de contágios acima dos três mil. Ainda é possível reverter essa tendência ou já é tarde demais?
Acho que a população, através dos meios disponibilizados pelas entidades governamentais, pode ser quer a solução quer o problema. Isto significa que vamos continuar a assistir nas próximas semanas ao aumento do número de casos, mas se soubermos manter um espírito de coesão nacional contra o inimigo comum - o SARS-COv-2 -, a atividade pandémica poderá ser mais controlada e, sobretudo, ter um impacto significativo naquilo que é mais importante - evitar a rutura do SNS. Mas para isso é preciso estarmos todos coesos em torno do inimigo comum e serem disponibilizados os meios e a comunicação necessária.
O confinamento tem de ser a última medida a implementar perante a insuficiência de todas as outras
É defensor de um novo confinamento? O Governo tem mantido, nesta fase, a opção de 'segurar' a economia.
O confinamento tem de ser a última medida a implementar perante a insuficiência de todas as outras. Não estamos ainda numa situação de insuficiência das outras medidas. Temos de otimizá-las todas precisamente para evitar o confinamento, mas se não conseguirmos, é evidente que será sempre uma possibilidade.
Até quando é que o SNS suportará aquilo que está ainda para vir com a chegada da fase mais crítica do outono/inverno?
O limiar da rutura do SNS não sabemos [qual é], mas se continuarmos com a pandemia a crescer desta maneira vamos saber mais breve do que era desejável. Este é o momento de tentarmos atrasar ao máximo esse limiar.
Alguns hospitais já estão sob grande pressão, sobretudo a Norte (o hospital São João) com os casos a disparar.
O país é pequeno, pode começar a Norte mas rapidamente se estenderá a todo o território e em particular aos grandes centros urbanos, nomeadamente Lisboa.
Em resposta à carta do atual bastonário e ex-bastonários da Ordem dos Médicos, a ministra disse que a coordenação com o setor privado e social já existe, que é efetiva, mas questinou "porque é que estão a empurrar agora o SNS" nesse sentido. Sente que o Governo está a evitar, a todo o custo, ter de recorrer ao setor privado e social?
Não sei o que é que o Governo está a tentar fazer, mas sei o que é o bastonário e os ex-bastonários fizeram. O que eles fizeram foi manifestar a sua preocupação com a possível rutura do SNS e pela necessidade de, em tempo oportuno e em melhores condições, estabelecer negociações com o setor social e privado para podermos resolver os problemas sobretudo nos doentes não Covid. Numa situação de maior pressão e de rutura iminente e de menor folga, a nossa capacidade negocial é menor e isso pode prejudicar quer o interesse do Estado quer o interesse de todos os doentes que precisam de assistência.
O Presidente da República revelou que esses contactos já estariam a decorrer dando a entender que a intenção é ir por aí o mais brevemente possível. A ministra, contudo, disse que espera não chegar ao ponto de precisar de contratualizar serviços do setor privado e que não se trata de uma questão de fatura mas sim de escolhas. Parece-lhe um mau caminho, uma má escolha?
Acho que é uma má escolha, é prejudicar a atividade assistencial da população portuguesa. Numa situação de possível rutura temos de acautelar os interesses de toda a população, independentemente da nossa ideologia.
E é isso que está a acontecer neste momento? Está a colocar-se a ideologia à frente das necessidades do país?
Acho que o Presidente da República e algumas ARS [Autoridade Regional de Saúde] já dialogaram, estão a iniciar negociações. Estou consciente de que a senhora ministra como pessoa responsável que é também certamente estará a acompanhar essas negociações.
Quando é que se espera o pico desta segunda onda da pandemia?
Ninguém sabe. O que eu sei é que se estivermos coesos, estivermos todos conscientes daquilo que temos de fazer e tivermos o meio para o fazer, esse pico poderá ser retardado e poderá ser minimizado. Quando ocorrerá, não sei. Espero que ocorra sem implicar a rutura do SNS.
Os assintomáticos funcionam como agentes infiltrados do vírus na comunidade
Apesar de não falarmos de outra coisa desde março, os especialistas assumem que ainda há um mundo desconhecido em torno deste novo vírus. O que é que já se sabe sobre o SARS-Cov-2 e que o torna diferente dos outros coronavírus?
Este vírus tem certamente vantagens adaptativas que lhe permitiu fazer aquilo que os outros não fizeram: gerar uma pandemia. Tem uma maior capacidade de transmissão e de ligação aos recetores das células humanas que os outros não têm. Tem ainda uma capacidade de provocar doença mais grave com risco de sobrecarga dos serviços de saúde a nível mundial que os outros não têm. E tem uma particularidade, que também não está descrita nos outros coronavírus, que é a capacidade de transmissão em indivíduos assintomáticos e que funcionam como agentes infiltrados do vírus na comunidade. O vírus soube também beneficiar do facto de esta ser a primeira pandemia que nós conhecemos pelo coronavírus para o qual nunca tivemos vacina nem terapêutica específica.
Há também ainda muitas interrogações quanto às mazelas deixadas pelo vírus.
Essa é certamente uma preocupação que só poderá ser avaliada mais tarde. Quem está no terreno, sabe duas coisas. Este vírus tem uma duração de doença muito superior à dos outros vírus respiratórios uma vez que, mesmo em formas ligeiras de doença, é habitual durante várias semanas os doentes manterem algumas sequelas, algum atraso na recuperação, depressão, alteração do estado sono-vigília, alteração da concentração e da memória, aquilo que eventualmente se chama long Covid. Isto também é uma característica nova que nos obriga a ser o mais prudentes possível em relação à abordagem deste novo coronavírus.
Mesmo os assintomáticos poderão sofrer sequelas?
Mesmo os assintomáticos. Quando foi o surto do SARS-Cov inicial, chamemos-lhe assim, em 2002 e 2004, os doentes só transmitiam o vírus durante a fase sintomática ou algumas horas escassas antes de ficarem com sintomas. Isso tornava muito fácil atuar nas pessoas que transmitiam o vírus, eram todas sintomáticas ou rapidamente se transformavam em sintomáticas. Isso significou que as medidas de contenção ou de isolamento foram praticamente suficientes para controlar um surto de SARS-Cov nesses anos. Este novo coronavírus tem muitas vantagens em relação a esta sua versão inicial de 2002/2004.
É este período cego, em que o vírus circula nos assintomáticos, que dá origem a cadeias de transmissão sem que ninguém se aperceba.
Exatamente. E isso não foi devidamente valorizado nem reconhecido durante a primeira onda pandémica. Certamente teve impacto na manutenção na atividade na comunidade e na potenciação do dobro de casos que conduziu à segunda onda. E agora, nesta segunda onda, temos fatores acrescidos de atividade, que são o frio, a chuva e a circulação de outros vírus respiratórios.
O facto de a população estar a tomar medidas de prevenção contra a Covid-19, como a lavagem frequente das mãos, o distanciamento social, o uso da máscara, pode fazer com que haja, simultaneamente, uma diminuição da circulação dos outros vírus respiratórios?
Isso é extremamente importante porque a redução da circulação dos outros vírus respiratórios que se verificou no hemisfério sul, na altura correspondente ao inverno deles, foi muito diminuída por essas medidas que, globalmente, se chamam medidas de proteção não farmacológica. Isto reforça a importância da utilização sobretudo da máscara nesta altura.
Tem defendido um aumento da testagem e a testagem periódica sobretudo em lares e em escolas. O Governo parece-lhe inclinado para tornar isso uma realidade?
A disponibilidade de diferentes testes de diferentes metodologias permite aumentar a capacidade de oferta para diagnóstico e rastreio. É evidente que há grupos populacionais que, pelo risco de exposição ou pelo risco de transmissão, devem ser equacionados para rastreios periódicos. Uma das vantagens dos testes rápidos de antigénio é precisamente permitir a realização de rastreios periódicos em populações devidamente selecionadas.
Não é provável que, até ao final do primeiro semestre de 2021, as vacinas tenham tido capacidade de resolver a pandemia
Está otimista quanto à chegada de uma vacina contra a Covid-19? As empresas norte-americanas Pfizer e Moderna esperam obter autorização para lançarem as suas vacinas contra a Covid-19 até final de novembro nos Estados Unidos
Estou realista em relação à chegada da vacina. Neste momento temos várias vacinas em fase 3, o que significa, previsivelmente, que até ao final do ano, início do próximo, haja vacinas disponíveis. Mas há muitas mais questões para responder do que aquelas que já foram respondidas. Temos de saber que valores de efetividade vão apresentar as vacinas, onde será a sua maior eficácia, na transmissão ou na prevenção de formas graves da doença, o que pressupõe a intervenção em grupos de risco, saber se vão ser necessárias uma ou duas tomas e qual a duração da imunidade. Se associarmos a isto que vão ser precisas grandes quantidades de distribuição, por forma a terem utilidade coletiva, diria que não é provável que até ao final do primeiro semestre de 2021, as vacinas tenham tido capacidade de resolver a pandemia.
Que avaliação faz da pandemia por parte do Ministério da Saúde e da DGS?
Neste momento, estamos numa altura de envolvimento global no combate a uma pandemia. Todos nós, e não necessariamente só a ministra da Saúde e a DGS, seremos avaliados. Todos nós somos avaliados individual e coletivamente.
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