"Não ficaremos todos bem e alguns ficarão piores. Estamos no mesmo barco"
O entrevistado de hoje do Vozes ao Minuto é o diretor de programas da Ajuda em Ação em Portugal.
© D.R.
País Ajuda em Ação
No passado mês de outubro, realizou-se uma conferência online na sequência do lançamento do Índice Global da Fome 2020. O evento foi organizado pela organização sem fins lucrativos Ajuda em Ação e a conclusão do encontro é a de que é preciso uma cooperação internacional para que seja possível mitigar o problema da fome no mundo.
Este é um objetivo que vem sendo combatido há vários anos, por diversas instituições, e que em 2020 sofreu aquilo a que se pode chamar uma rasteira. A pandemia veio mudar a forma como vivemos e piorar a situação de quem já vivia com dificuldades, comprometendo o prognóstico do objetivo da Fome Zero em 2030.
Numa altura em que é incerto quando é que a pandemia terá fim, mas é certo que a ajuda não pode deixar de 'sair à rua' para auxiliar quem mais precisa, estivemos à conversa com um dos responsáveis pela Ajuda em Ação no nosso país.
Estabelecidos em Portugal desde janeiro deste ano, Mário Rui fala-nos das iniciativas até então desenvolvidas pela organização, que neste momento estão muito centradas na zona de Camarate, em Lisboa. Aos 47 anos, e já com um longo currículo em ações de apoio e ajuda, o diretor de programas da Ajuda em Ação em Portugal traçou-nos um panorama da situação global da fome e alerta: "Não, não está tudo bem" e "não, não vamos ficar todos bem". Pelo menos, não num curto prazo e não sem que haja uma maior organização e entreajuda a nível global, na forma como se pretende encontrar uma solução para este problema.
A Ajuda em Ação chegou a Portugal em janeiro de 2020, com que sonhos e objetivos é que assumiu esta missão?
Tenho tido sempre uma atividade ligada ao trabalho social, em projetos de intervenção social de rua, na luta contra a pobreza e contra exclusão social, sobretudo a partir de 1994, de uma forma mais estruturada. E o meu percurso foi sempre no sentido de querer fazer mais com este tipo de instituição, que tem uma intervenção social que seja direta e impactante no terreno. Sempre gostei de sentir que o meu trabalho tem um impacto real e quando a Ajuda em Ação disponibilizou a candidatura para concurso, achei que a descrição tinha a ver comigo e com o meu – agora nosso - objetivo.
A minha perspetiva é trabalhar dentro desta organização, em conjunto com as diferentes delegações que temos a nível internacional, com uma perspetiva global para conseguirmos transformar localmente, e depois globalmente, a realidade do grupo de pessoas [com quem trabalhamos]. Ou seja, o objetivo é sentirmos que estamos a mudar e a alterar a vida das comunidades com quem trabalhamos e que estamos a fazê-lo para melhor, para que as pessoas consigam automatizar e tomar posse dos seus meios de produção, da sua vida, construindo uma família dentro do país e dentro das suas realidades.
A nossa linha de trabalho, que é uma linha que sempre me motivou, propõe-se a impactar a vida das pessoas que estão socialmente desfavorecidas, e algumas delas em grande risco de sobrevivência.
E essa linha de atuação traduz-se, na prática, em que tipo de ações?
Na prática, em Portugal, temos dois compromissos na zona de Camarate, que nos apareceu como uma zona de grande fragilidade social e onde o desafio da intervenção é urgente. É uma zona onde é preciso melhorar a qualidade de quem ali mora, onde existem uma série de bairros sociais que foram ali construídos na altura da Expo 98. É um local onde tem havido projetos mas que existem apenas num limite muito curto de tempo, ou seja, não têm a oportunidade de mudar aquela realidade de uma forma estruturada. A Ajuda em Ação, no seu conjunto de valores, tem um que é o de sermos parceiros de longa duração e Camarate pareceu-nos como uma zona a necessitar da nossa intervenção e da nossa permanência ao longo do tempo.
Depois, aí, temos dois compromissos: um com o agrupamento de escolas da Escola Básica de Camarate, para que todas as crianças tenham as mesmas condições e oportunidades na manutenção dos seus estudos. E temos uma linha de empoderamento feminino, com a promoção de um grupo de mulheres que se encontra para discutir os seus temas, os seus problemas, encontrar soluções com o apoio de técnicos locais; e outro grupo de mulheres que estão envolvidas numa atividade de costura onde têm produzido coisas lindíssimas para terem o seu projeto de empreendedorismo a vingar, e para que possam criar um posto de trabalho e um sustento para as suas vidas.
A Segurança Social e o Estado tiveram uma resposta que eu considero até exemplar, porque é muito impactante no terreno, mas depois, passado pouco tempo, tornou-se insuficiente, porque nunca chega a todos e nós precisamos do coletivo, precisamos de uma intervenção conjunta
Poucos meses depois da sua chegada a Portugal, passámos a viver numa situação sem precedentes em todo o mundo. De que forma é que isto veio alterar a vossa ação e com que desafios se viram em mãos?
Tivemos de fazer o que todas as pessoas em todas as organizações tiveram de fazer: tivemos de nos adaptar rapidamente e de olhar a realidade de uma forma muito mais concreta, muito mais rápida e com uma reposta mais eficiente.
Quando em março houve o confinamento, conhecendo a realidade do sítio onde estamos a atuar, a nossa primeira preocupação foi: como é que estas pessoas vão estar amanhã? Nós sabemos que a fragilidade social daquelas pessoas é muito grande porque têm trabalhos precários, sofrem de situações sociais até dentro de casa, de grande pressão entre pares, porque vivem na mesma casa, têm rendimentos muito insuficientes para a sustentabilidade de todo o agregado. Portanto, como é que estas pessoas vão estar amanhã, perdendo os seus postos de trabalho e os seus rendimentos?
Muitas das pessoas com quem trabalhamos são senhoras que fazem limpezas. Os escritórios fecharam, as casas particulares deixaram de recorrer a estes serviços por medo, então como é que eles iriam sobreviver? Primeiro, esperámos para ver qual era a resposta que o Estado ia dar. A Segurança Social e o Estado tiveram uma resposta que eu considero até exemplar, porque é muito impactante no terreno, mas depois, passado pouco tempo, tornou-se insuficiente, porque nunca chega a todos e nós precisamos do coletivo, precisamos de uma intervenção conjunta. O Estado não consegue chegar a toda a gente, tal como nós não conseguimos, e cada um tem de desempenhar o seu papel.
Houve histórias incríveis e a mais deliciosa é a de uma senhora que usou o dinheiro para comprar uma varinha mágica porque ela nunca tinha conseguido passar a sopa aos filhosNós seguimos os números, desde o início, e assim que a escola fechou entrámos em contacto com a mesma para saber quantas refeições é que ela estava a distribuir, porque as refeições escolares naquela zona são essenciais para as crianças. Por vezes, ali, uma criança só tem aquelas refeições, que são o pequeno-almoço e o almoço. E a escola tinha apenas cinco pessoas, o que eu achei que era muito estranho, porque era muito pouco para a sua realidade. Então o que é que estava a acontecer? As famílias, por causa do confinamento, não estavam a sair de casa para ir buscar as suas refeições. Não porque não estivessem a precisar, mas porque tinham medo de sair de casa. A escola organizou-se, e com o apoio de um mediador que temos entre a escola e a Junta de Freguesia, passou a distribuir-se as refeições e então passámos de cinco para 150.
E este mediador social, para além da distribuição, teve também uma atenção direcionada para cada uma das famílias, porque as pessoas são o centro da nossa atuação e nós não podíamos ir levar a alimentação sem estarmos atentos aos seus problemas. Consequentemente, este mediador passou a estar também em contacto com as crianças e todos os dias levava-lhes os trabalhos de casa e recolhia os que tinham sido feitos para entregá-los aos professores.
Portanto, naqueles primeiros meses de março/abril estivemos a estruturar-nos, a ver os números e a fazer o diagnóstico de como é que podíamos atuar e foi aqui que reparámos que havia uma franja de pessoas que estava a trabalhar, algumas delas ainda não legalizadas no país, que são imigrantes, e essas pessoas precisavam de muitos cuidados porque eram pessoas produtivas, mas que não estando legalizadas não iam ter apoio social direto, porque não podiam ser subsidiárias do apoio de inserção social e não podiam concorrer a ajudas, embora sejam pessoas produtivas e socialmente bem inseridas. E direcionámos muito a nossa ajuda para essas famílias.
Também implementámos cartões de alimentação. Fomos convidados a distribuir alimentos, mas recusámos, ate porque a linha de ação em Espanha também não foi essa. O que fizemos foi distribuir cartões de alimentação a agregados familiares com uma majoração diferente por cada agregado, mas que deu em média 125 euros por cada um. A nossa ajuda não significava que não podiam receber outras ajudas (como a do Banco Alimentar), porque não é com este valor que uma família vai sustentar-se. Esta ajuda era dada e as famílias eram aconselhadas a fazer uma escolha alimentar saudável, mas também não quisemos ser moralistas nesta seleção. As pessoas são livres de fazer as suas escolhas e quisemos dar-lhes essa liberdade, para que sentissem que era uma ajuda para elas gerirem.
Temos de estar ao lado das pessoas, não nos podemos sobrepor nem julgar, nem de uma forma muito positiva, nem de uma muito negativa (...) Temos a obrigação de olhar mais para aquilo que é a pessoa, para que ela no futuro consiga fazer melhores escolhas E essas escolhas surpreenderam-vos?
Houve histórias incríveis e a mais deliciosa é a de uma senhora que usou o dinheiro para comprar uma varinha mágica porque ela nunca tinha conseguido passar a sopa aos filhos e tinha sido sempre uma guerra lá em casa para eles conseguirem comer a sopa. No fim, achei que aquela tinha sido uma escolha extraordinária porque, sendo uma ferramenta de trabalho que ela já ambicionava há imenso tempo e que nunca conseguiu, trouxe um bem estar enorme para aquela casa
E outras histórias houve. Por exemplo: uma das primeiras escolhas que as pessoas faziam era comprar chocolates para os miúdos. Ou seja, a primeira resposta que deram perante aquela oferta foi uma resposta emocional para os seus filhos e isto faz-nos acreditar, cada vez mais, que estas pessoas precisam de ajuda, uma ajuda que seja permanente, porque senão ficam desamparadas. E é aí que também nos propomos estar: a dar-lhes uma ajuda alimentar para a sua sobrevivência mas também não queremos deixá-las desamparadas emocionalmente. Em cada momento da distribuição dos cartões também tínhamos psicólogos presentes, porque na passagem deste apoio há sempre uma grande fragilidade que fica patente e não queremos que as pessoas fiquem desamparadas.
Ajuda em Ação© D.R.
Acaba-me de contar histórias positivas, que foram possíveis graças à vossa ajuda e apoio. Mas há alguma história ou algum caso mais negativo, que o possa ter feito duvidar da sua capacidade de continuar a cumprir a sua missão, que o tenha levado a pensar que não seria capaz de ajudar?
Não. Não, porque as pessoas podem não saber gerir às vezes a ajuda que recebem, mas o nosso papel é fazê-las perceber por que razão fizeram aquela escolha e não outra. Temos de estar ao lado das pessoas, não nos podemos sobrepor nem julgar, nem de uma forma muito positiva, nem de uma muito negativa.
Obviamente que as histórias que lhe dei, são histórias de esperança e motivantes. Mas há outras histórias negras, histórias muito pessoais. Algumas situações muito trágicas e que levam estas pessoas a não tomar as melhores opções e por isso nós não podemos julgar que o problema está naquela opção que foi mal feita. O problema ou é sistémico, ou às vezes é preciso vê-lo pela comunidade em que a pessoa está inserida, ou ver todos os fatores que estão na origem daquela opção. Nós enquanto organização, e com os nossos parceiros, temos a obrigação de olhar mais para aquilo que é a pessoa, para que essa pessoa no futuro consiga fazer melhores escolhas.
[O confinamento] não foi um inimigo, mas também não foi um aliado. E nós portugueses, sempre com aquele espírito de desenrascar, conseguimos estar na linha da frente e encontrar as soluções mais rapidamente
Falava há pouco do impacto do confinamento, no aspeto em que as pessoas não saíam de casa para pedir ajuda. Pode considerar-se que este foi um dos vossos maiores obstáculos para conseguirem cumprir a missão com que se comprometeram?
Acho que o confinamento é inimigo do bem-estar psicológico de cada um, porque felizmente o nosso trabalho conseguiu reorganizar-se muito rapidamente. Continuei a ir ao terreno, até porque não ia circular para fazer turismo, estávamos a circular para poder ajudar outras pessoas e pedimos autorização para circular na área no âmbito do nosso trabalho. Em termos mundiais, quem está tem de estar no terreno a ajudar as pessoas, e quem está no trabalho de backoffice tem de manter-se a trabalhar porque precisamos deles para manter a fundação a trabalhar. E muito rapidamente o nosso sistema se adaptou para continuar a dar uma resposta efetiva.
Nós, em Portugal, temos cerca de 264 beneficiários diretos e o trabalho foi possível de fazer porque soubemos reorganizar os nossos serviços imediatamente. Queremos é estar na linha da frente, na linha de resposta. Não foi um inimigo, mas também não foi um aliado. E nós portugueses, sempre com aquele espírito de desenrascar, conseguimos estar na linha da frente e encontrar as soluções mais rapidamente.
A pandemia e o confinamento são um inimigo para as pessoas que estão mais fragilizadas, para aqueles grupo sociais que precisam de maior apoio e que estão numa maior precariedade. Em termos de fome, e a nível mundial, é um risco enorme. Os números (da pobreza) cresceram consideravelmente. Em Portugal ainda não encontrei um diagnóstico de pobreza que tenha medido o impacto que a pandemia trouxe ao nosso país e que impacto é que isto vai ter no futuro. Os números que aparecem ainda são de 2019 em que, francamente, ainda estávamos num crescimento positivo. Mas o confinamento traz este risco para quem já esta muito frágil e nesses casos é um inimigo direto.
Há um conceito muito interessante que apareceu agora no confinamento, que é o das comunidades resilientes. Isto vai trazer ao de cima algo que acontecia nos anos 90, que é a intervenção de organizações locais na resolução de problemas locais, porque é muito difícil o Estado resolver tudo, ou seja, temos de ser nós também a tomar alguma responsabilidadeE estão preparados para intensificar a vossa ação numa altura em que entramos num novo Estado de Emergência?
Não estamos de capa e espada, mas estamos neste momento numa fase de realização do nosso plano de ação, sendo que dentro deste plano temos uma área dedicada à Covid e, portanto, ate já temos linhas de trabalho e de financiamento para pessoas que precisam de nós. Temos de nos manter no terreno nesta fase. Teremos de ter em atenção as medidas implementadas e esperamos que nenhuma delas seja impeditiva de estarmos no terreno a funcionar. Mas estamos preparados. Não sinto que, neste momento, o Estado de Emergência nos venha a trazer um perigo de não funcionar- temos de funcionar.
Há um conceito muito interessante que apareceu agora no confinamento, que é o das comunidades resilientes. Em Portugal, vamos ter candidaturas para os bairros saudáveis e a comunidade que for mais resiliente é que a que tiver os parceiros mais ativos no terreno. Isto vai trazer ao de cima algo que acontecia nos anos 90, que é a intervenção de organizações locais na resolução de problemas locais porque é muito difícil o Estado resolver tudo, ou seja, temos de ser nós também a tomar alguma responsabilidade nesses estímulos. E é aqui que reside o segredo: as comunidades têm de se reorganizar, as instituições locais têm de ser parceiros para um interesse comum e cada um deles tem de saber muito bem o que está a ser feito e o que vai fazer para trazer um bem-estar comum.
Já vi pessoas que choram de fome, que passam fome, pessoas que têm problemas de desenvolvimento em Portugal por estarem subnutridas, pessoas que têm uma alimentação completamente desadequada porque lhes dão todos os dias os mesmos alimentos Relativamente ao relatório do Índice Global da Fome, a fome no mundo inteiro passou de uma situação grave em 2000, para uma situação moderada agora em 2019. Em que nível estará este índice nos próximos anos? Haverá um agravamento da situação?
Certamente, sendo que esse resultado é sempre uma média. A verdade é que nós estamos melhor no Índice Global, mas há outros países que estão muito mal e que precisam de uma intervenção. E a realidade é que a pandemia veio trazer uma dificuldade maior aos países que estavam em recuperação. E os que estavam pior vão ficar ainda piores. O que era previsto era atingir a Fome Zero em 2030 e isto vai retroceder tudo.
O papel das instituições de solidariedade, dos governos e das organizações locais vai ser determinante no bem-estar das populações. O Índice Global da Fome tem indicações muito boas sobre o empoderamento da forma de cultivar localmente. Estas pessoas e organizações têm de ter mais formação, saber cultivar melhor, ter uma agricultura mais sustentável, temos de atuar também no papel ambiental, porque um país como Moçambique, por exemplo, que passa por tantas intempéries num curto espaço de tempo. É preciso introduzir uma maior capacitação a estas pessoas e dar-lhes mais ferramentas. E é aí que o Índice Global da Fome também vem trazer esta corresponsabilidade às instituições que estão no terreno e aos governos.
Quando um país ajuda outro na distribuição alimentar, muitas vezes vai comprometida a compra, ou seja, esse país fica refém da aquisição de alimentos, bens e matérias-primas do país que os está a ajudar e que supostamente está a dar uma ajuda desinteressada Acredita que a pandemia de Covid-19 está a criar, simultaneamente, uma pandemia de fome, como defendeu em setembro o chefe do Programa Alimentar da ONU, David Beasly?
Estamos todos em risco. O Índice Global da Fome diz uma coisa muito importante também que é “mesmo os países que estão numa condição estável neste momento, estão em risco de vir a passar por um período de fome” e retroceder anos. Todos nós corremos o risco. Estamos a produzir em excesso, a distribuir mal e a acabar com recursos em países que deveriam ser mais exportadores. Mesmo quem está mais desenvolvido corre o risco de vir a não conseguir ou até de perder valor. Até o próprio dinheiro pode vir a perder valor. Isto é uma realidade económica já há muito conhecida, e que é o caso por exemplo da Venezuela que era um pais riquíssimo , muito rico em bens – petróleo – mas que está num nível de pobreza enorme porque não consegue exportar. É um país que economicamente está fechado ao mercado e podemos ter essa realidade noutros países e de forma muito rápida.
Já vi isso, pessoas que choram de fome, que passam fome, pessoas que têm problemas de desenvolvimento em Portugal por estarem subnutridas, pessoas que têm uma alimentação completamente desadequada porque lhes dão todos os dias os mesmos alimentos. Porque em vez de serem elas afazer as escolhas, dão-lhes. Não hão-de morrer à fome mas passam por uma saúde muito frágil. E nesse sentido acho que devemos analisar até o nosso sistema de ajuda e distribuição. Tem de ser pensado mais para as famílias e menos para a instituição. Temos de acreditar mais nas escolhas que as pessoas têm de fazer do que sermos nós a escolher por elas. E em termos mundiais, se também houver esta perspetiva, penso que traz um novo paradigma de intervenção. Ou seja, se eu estiver preocupado em ensinar as outras pessoas e em estar com elas e a pensar com elas, deixo de agir sozinho e de forma desinteressada. As organizações internacionais e locais deviam ter mais esta perspetiva de querer estar mais próximas do problema para poder ajudar e perceber como é que aquela pessoa consegue ser mais participante na sua própria resolução.
A solução passa por melhorar a distribução e melhorar a diversificação alimentar?
Sim, sim. E haver também uma maior justiça na forma como globalmente está organizado o negócio dos alimentos. O Índice Global da Fome indica que quando um país ajuda outro na distribuição alimentar, muitas vezes vai comprometida a compra, ou seja, esse país fica refém da aquisição de alimentos, bens e matérias-primas do país que os está a ajudar e que supostamente está a dar uma ajuda desinteressada. Ou até na exportação total de um produto que se produz localmente e que é todo vendido, e as pessoas que residem nestes países ficam sem acesso a esse produto. Isto é um problema de negócio global, em que cada vez mais devíamos estar envolvidos nessa solução.
Não vamos ficar todos bem e alguns até vão ficar piores. Esta situação é inesperada para todos. Estamos todos no mesmo barco (...) A pandemia trouxe-nos esta realidade palpável do que era o pensamento da globalização e das problemáticas globaisE essa solução acha que não é posta em prática porque não se consegue ou não se quer?
Um pouco de cada uma, à sua maneira. Muitas vezes não conseguem, porque não têm o know-how. Outras vezes não querem porque lhes vai tirar algum negócio. Se estiver a exportar PVC paraÁfrica, se calhar não quero uma solução feita em canas, que são produzidas lá; ou se estiver a exportar carne também não quero que eles tenham uma vasta produção de gado. Temos situações que são o compromisso de cada um e aí é que deveria entrar a regulação dos mercados e uma legislação justa.
Esse agentes económicos são também um obstáculo?
Não vemos nenhuma instituição como inimiga, como também não vemos nenhuma como totalmente benéfica. Procuramos as melhores oportunidades, que amplifiquem cada vez mais o impacto do nosso trabalho no terreno. Não vemos ninguém como inimigo porque sabemos que mais dia, menos dia, estas empresas que por vezes não cumprem com todos os princípios de ética e de justiça, um dia vão ter de se readaptar porque este mundo não vai prevalecer assim durante muito mais tempo. Cada vez mais qualquer empresa vai ter de funcionar com responsabilidade, porque as pessoas cada vez mais se identificam com o bem que se faz no interior da empresa e o impacto que tem ao seu redor.
No relatório a que tive acesso, pode ler-se que “2020 tem sido um ano que nenhum de nós poderia ter previsto. No entanto, em muitos aspetos, é o culminar das previsões que se tinham vindo a ouvir há décadas”. Que lição podemos aprender com esta situação?
São tantas, que nem sei. Tivemos aquele grande movimento do arco-íris do ‘Vai ficar tudo bem’. Mas não. Rapidamente isso se percebeu. Não vamos ficar todos bem e alguns até vão ficar piores. Esta situação é inesperada para todos. Estamos todos no mesmo barco e em termos mundiais estamos todos na mesma situação. Neste momento, até quem está melhor são os países africanos, mas se calhar é porque não têm a leitura dos resultados como nós temos. Isto vai-nos afetar a todos e o que nos ensina é que é um problema que temos de resolver, e temos de ver a globalização da solução.
Acho que não se pode dizer que a pandemia traz uma oportunidade, porque acho um termo feio para o que se está a passar, mas esta situação, trazendo uma dificuldade global, traz também o caminho para que os países pensem nas suas soluções como globais e como impactantes nas zonas a precisar de mais intervenção. A pandemia trouxe-nos esta realidade palpável do que era o pensamento da globalização e das problemáticas globais de há já uns anos com o Al Gore. A pandemia traz-nos este desafio de que só todos juntos vamos conseguir superar. E não digo isto de forma a ridicularizar, digo isto porque tem de ser mesmo assim porque se não for assim não vamos conseguir superar. Se globalmente não conseguirmos construir um sistema de saúde para todos, a situação pandémica vai ser recorrente. Se globalmente, 50% ainda não tem um sistema social capaz de responder às suas necessidades, vamos estar sempre com um problema permanente e urgente para resolver.
A pandemia traz-nos isto e o Índice Global da Fome traz-nos estes elementos que, em termos nacionais, temos de olhar para eles de forma crítica. Em Portugal temos também uma responsabilidade de sermos agentes de mudança, negociadores e bons agentes de mediação entre países e devemos aproveitar esta oportunidade para conseguir sinergias e conseguir resolver problemas que são de outros países mas que nos são próximos também. A pandemia traz-nos esta dificuldade neste momento mas temos de ter este pensamento crítico de querer encontrar - em conjunto - aquilo que deve ser uma solução para todos.
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