Cultura? "Sem dúvida que foi isso que conseguiu aguentar as pessoas"
Em entrevista ao Notícias ao Minuto, Branko fala sobre o set inédito que lançou, como viveu este tempo em que os espetáculos ficaram em suspenso e o que podemos esperar amanhã, 20 de novembro, dia em que volta a subir ao palco, no Campo Pequeno.
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Cultura Branko
João Barbosa ou Branko - como é conhecido - é um dos nomes sonantes da música eletrónica portuguesa que, à semelhança de tantos outros artistas, se viu impedido de pisar os palcos devido à pandemia do novo coronavírus.
Contudo, a impossibilidade de subir aos palcos não o impediu de continuar a criar e no dia 22 de outubro lançou um set inédito, cujo pano de fundo é a Serra da Estrela. Em conversa com o Notícias ao Minuto, o produtor e DJ explica de que forma este trabalho foi influenciado pelo que estava a viver e desvenda o que pode esperar quem marcar presença no seu espetáculo de dia 20 de novembro, no Campo Pequeno.
Lançou um set especial, gravado na Serra da Estrela, em que se nota um registo diferente. O que é que diferencia este trabalho dos anteriores?
Acho que este é um set em que tento dar umas pistas de uma influência de música mais tradicional portuguesa, sendo que não estamos a falar de música propriamente tradicional, mas sim de uma perspetiva um bocadinho diferente e de uma versão eletrónica também. Talvez por estarmos a passar um ano em que a vida acabou por dar uma volta relativamente grande - em termos daquilo que é um verão normal e dos concertos -, passou a ser um bocadinho, no meu caso, um verão mais de exploração do território nacional e acho que, inevitavelmente, isso acabou por ter algum impacto. Além disso, também por acreditar que vem aí uma perspetiva e uma visão nova - que está a ser levada a cabo por alguns artistas - sobre todo este universo, e que acho super interessante e que sem dúvida é algo que vai marcar um bocadinho o ritmo de algumas coisas no futuro.
Refere-se a uma mudança no estilo de música eletrónica ou em geral?
Não, não iria muito por aí, porque o estilo eletrónico é dos estilos mais flexíveis que existem. Estou mais a falar de uma atitude, em que as pessoas estão mais viradas para o seu 'background', para as suas origens, e, no fundo, isso ser algo com mais representação no dia a dia. Desde uma Rosalía - que fez o que fez com o Flamengo -, até tudo o que tem a ver com música eletrónica, que hoje em dia muito daquilo que faz é celebrar ritmos, tradições e ideias diferentes, mas transportadas para os clubes - que, em 2020, não se pode tanto chamar de clubes - mas mais para o universo da Internet.
Essa sempre foi um bocadinho a minha busca e agora dei um piscar de olhos a um lado mais nacional.
Gravou o set na Lagoa Comprida, na Serra da Estrela. Até no local de gravação tentou transmitir essa mensagem?
Sim, um bocadinho. Acabei por passar o verão em vários sítios de Portugal e tentei sempre usar algumas paisagens bonitas como pano de fundo para uns sets mais curtinhos, que ia partilhando nas redes sociais. Obviamente que para mim é impossível parar completamente e deixar de querer partilhar música e de comunicar com pessoas. Portanto, vou me adaptando e vou fazendo versões diferentes daquilo que é dar um concerto ou fazer um 'livestream' [transmissão em direto] e sem dúvida que a Serra da Estrela teve um impacto grande.
Com este set, aquilo que quis foi, de alguma forma, fazer uma versão um bocadinho mais profissional, mais trabalhada, mais pensada de todos estes sets que fui fazendo durante o verão. Para tal, escolhi o sítio mais marcante pelo qual passei durante o verão. Fez também sentido apelar com o próprio sítio, com a grandeza e com o majestoso que é a Serra, apelar um bocadinho a esse lado interior de Portugal e também da música e tradição.
Mais do que ficar a sentir falta de tocar ao vivo, prefiro concentrar o máximo de energia para que quando acontecer seja aquilo que tenho em mente
Contou com dois convidados, a Rita Vian e o Pedro Mafama. Porquê estes dois artistas?
Para mim são dois artistas que estão a traçar um caminho muito singular e único naquilo que toca a esta ideia de, através da sua arte, darem uma nova perspetiva - seja da música tradicional, do fado. São formas muito peculiares de olhar para aquilo que é a música tradicional portuguesa e de como fazê-la acontecer em 2020. Como tal, fez todo o sentido incluí-los neste set.
A pandemia impediu os artistas de pisarem os palcos, é algo que está a ser difícil? Esta foi a sua forma de permanecer em contacto com as pessoas?
É diferente sem dúvida. Não considero que seja algo que está a custar, não consigo pensar muito nessa perspetiva, porque sinto que sou daquelas pessoas que iria fazer música mesmo que ninguém a ouvisse. Antes de alguém a ouvir já fazia. O que acaba por acontecer é que, independentemente de como o mundo ou a indústria da música esteja organizada ou ativa ou inativa - que é um bocado o que está a acontecer -, acabo sempre por tentar arranjar uma forma de soltar música, de criar e produzir música, de tentar passar música nova às pessoas. E isso faz-se de várias formas.
Sem dúvida que é muito forte chegar a um palco, sentir as pessoas numa sala e toda essa energia [que se sente] é sem dúvida única. Aliás, estou muito feliz porque vai acontecer em breve, mas sinto que tento sempre equilibrar as coisas. Sinto que, no fundo, mais do que ficar a sentir falta de tocar ao vivo, prefiro concentrar o máximo de energia para que quando acontecer seja mesmo aquilo que tenho em mente e que gostava de dar às pessoas.
O mundo pode estar virado de pernas para o ar e pode ter peças do puzzle fora do sítio, mas as pessoas arranjam sempre forma de chegar à música, de se interessar e relacionar com a músicaPrefere ter uma abordagem mais positiva face à situação.
Sim, sem dúvida.
Com todas as restrições impostas devido à pandemia de Covid-19, foi fácil continuar a criar ou afetou-o de alguma forma?
Não me afetou muito. Sempre trabalhei com uma perspetiva de 'do it yourself' [faz tu próprio]. Nunca estudei música, nunca precisei de um grande estúdio, então, para ser muito sincero, o meu dia a dia (que passa por sair de casa, ir para o estúdio e voltar para casa) ficou mais ou menos intacto. Tirando a parte dos concertos e de tocar, aquilo que é o lado de produção de música permaneceu mais ou menos igual. Sempre me senti um pouco esse eremita de alguma forma. Por isso, consigo manter a atividade, manter-me interessado e em busca de ideias e músicas novas.
Aquilo que sinto que tem realmente impacto nesta fase, não é fazer versões de coisas que já fazíamos antes, mas sim termos ideias completamente novas, de raiz...Qual é a principal mensagem/intenção deste set?
Aquilo que tento ter como intenção, não só deste set mas de toda a atividade que tenho vindo a ter desde março até agora, é a de passar a mensagem de que, obviamente, as coisas estão diferentes, o mundo pode estar virado de pernas para o ar e pode ter peças do puzzle fora do sítio, mas as pessoas arranjam sempre forma de chegar à música, de se interessar e relacionar com a música.
A meu ver, aquilo que é preciso é conseguirmos ter capacidade para relativizar, adaptar e ter alguma coisa nova, sendo que aquilo que sinto que tem realmente impacto nesta fase, não é fazer versões de coisas que já fazíamos antes, mas sim termos ideias completamente novas, de raiz, que introduzam alguma coisa na indústria da música para que talvez no futuro, acontecendo tudo isto outra vez, não estejamos todos tão vulneráveis, tão dependentes dos concertos, festivais e estruturas.
Sinto que essa é um bocadinho a chave disto e foi por aí que tentei que a minha atividade apontasse. Mais uma intenção de dizer: 'Eu não vou parar. Vou falhar, vou acertar, vou fazer sets que ninguém vê, outros que muita gente vê, vou repensar a forma de produzir música, mas não vou parar'.
Viu então esta situação como uma oportunidade de se reinventar?
Sem dúvida. E ao mesmo tempo, acaba por acontecer algo que considero ser um fenómeno interessante, Num concerto, com um público à frente, há uma ação/consequência. Toco esta ou aquela música e as pessoas saltam, gritam, ficam fartas ... há várias reações a vários momentos. Mas esse diálogo também acaba por ser possível de acontecer num registo online.
Se calhar até acabas por conseguir ter mais a atenção das pessoas para tentar fazer com que, por exemplo, no caso da música eletrónica - que às vezes é pintada como uma coisa efémera, de clubes e discotecas e que acontece algures entre as 2h e as 6h da manhã -, possa haver a perceção de que é um bocadinho mais do que isso.
Se calhar já faz parte e está completamente enraizada na cultura dos jovens, da forma como é consumida e produzida, da forma como as pessoas se relacionam com isso e a história que já é possível contar através da música eletrónica, da música de dança... através de todas as fusões que existem dentro desse género. Se calhar essas reações de uma pista acabo por tê-las por mensagens e isso também acaba por ser um estímulo incrível.
Toda a troca e caldeirão de influências que existe em Lisboa sempre foi algo que me inspirou muito
É já longo o caminho desde os 'Buraka Som Sistema'. Tem sido apontado como um dos impulsionadores da música portuguesa por ter um estilo que se diferencia. Considera que isto se deve a quê?
Seja com o grupo ou com a editora, sempre lançámos a nossa própria música, sempre tivemos muito a nossa perspetiva das coisas e sempre fizemos as coisas à nossa maneira. No fundo, isto foi sempre tudo alimentado com ideias que tentávamos colocar em prática. Ideias essas que tentávamos que fossem o mais inovadoras e originais possível, mas que ao mesmo tempo estivessem ligadas ao nosso 'background' [passado].
Seja para mim enquanto artista, seja enquanto produtor de outros artistas, como por exemplo o Dino D'Santiago, tento sempre que [o que faço] tenha a minha personalidade e que soe diferente... que ouvir-me tocar seja uma experiência e algo que só possa acontecer ali, naquele vínculo, naquela ligação.
Sempre preferi olhar para aquilo que traz algo de novo e não necessariamente para aquilo que vai funcionar
Sinto que na música eletrónica é muito fácil fazer versões de versões e andar um bocadinho colado naquilo que são as sonoridades que estão a acontecer no mundo e uma pessoa acaba por se perder, porque é uma música que tem tanto de musical como de técnico e isso às vezes pode ser um problema.
Consigo sentar-me em frente ao computador e reproduzir praticamente de forma igual aquilo que um Martin Garrix ou um David Guetta fizeram, mas até que ponto é que isso vai construir alguma coisa para a minha carreira ou para mim? Não vai, se calhar vai ser uma música que muitas pessoas vão ouvir, mas que depois passa e não fica nada ali... porque depois esse espaço será ocupado pela próxima coisa que vai durar três meses. Esses ciclos às vezes são um pouco complicados, sempre preferi olhar para aquilo que traz algo de novo e não necessariamente para aquilo que vai funcionar.
Lisboa desempenha um papel importante nessa mudança?
Sinto que, não fazendo aqui um jogo de cidades preferidas, acho que uma das coisas que me diferencia é precisamente o facto de ter crescido no subúrbio de Lisboa e entretanto ter-me mudado para Lisboa. Essa relação, as pessoas que tenho à minha volta, a cidade... sinto que a forma como cresci e vivo é uma forma muito rica culturalmente. Estou próximo de muita música, muita arte, muitas pessoas interessantes que vêm de vários sítios do mundo e toda essa troca e caldeirão de influências que existe em Lisboa sempre foi algo que me inspirou muito e que acho que ainda tem muito para dar ao mundo.
O que podemos esperar de seguida, em termos de projetos?
Neste momento estou concentrado no concerto. Já tenho vindo a fazer esta transição, de deixar de ser só um DJ que toca em clubes ou festivais. Comecei a tocar em teatros em 2019, fiz esta mudança de levar a música eletrónica a espaços com pessoas sentadas e salas de um circuito que não é necessariamente o circuito da música eletrónica.
Acho interessante romper um bocadinho essa ideia de que falávamos há pouco - de ser meio efémera - e no fundo, tenho vindo a aperfeiçoar aquilo que é um concerto e o formato audiovisual de concerto em que levo as pessoas numa viagem musical e visual. Então, neste momento, o próximo projeto é mesmo aprimorar esses detalhes todos.
Há muitos artistas que deixaram de ter um palco para se mostrar
O que é que pode esperar quem marcar presença no espetáculo de dia 20 de novembro, no Campo Pequeno?
Uma viagem à volta da minha música. Porque vou estar a tocar um tema e se for preciso, as imagens que estão a acontecer, são precisamente do momento em que gravei esse tema em estúdio ou num sítio algures no mundo ... acabo por tentar levar tudo para o palco e fazer quase como um filme musical e no fundo tentar apelar a todos os sentidos ao mesmo tempo. Esse é o foco.
E depois, obviamente, criar música nova e ter coisas novas que as pessoas nunca ouviram ao vivo. Essa música nova, muita dela vai eventualmente acabar por sair. No fundo, em termos de projetos futuros, é ir lançando alguns temas, ir preparando o concerto e eventualmente há de vir um disco novo.
Tenho esperança que, no futuro, a mobilização para a ideia de salvar a Cultura possa ser um bocadinho mais forte
O setor da cultura é um dos mais afetados pela pandemia. É algo que o tem preocupado?
Sem dúvida que é algo que preocupa. Falando de uma manifestação recente, do Circuito, que se fez em várias cidades à porta de espaços, há um apelo aí com o qual concordo completamente, que é: há muitos artistas que deixaram de ter um palco para se mostrar pela primeira, segunda e terceira vez. Existe muita música nova que não está a encontrar o caminho para a vida das pessoas. E isso, acho que pode estagnar um pouco as coisas e complicar o progresso da música e a evolução que estava a acontecer.
Considera que a Cultura continua a ser dos setores que perante uma crise, é das primeiras a ser colocada de lado?
Por um lado sim, por outro vimos o impacto que a Cultura teve durante esta fase de confinamento e aquilo que as pessoas consumiram. Os números de streaming subiram, a forma como as pessoas estavam a assistir aos sets e concertos ao vivo... sem dúvida que foi isso que conseguiu aguentar as pessoas e trazer uma vida nova para a repetição de um dia a dia que não tem o ir a um evento e todas essas coisas. Penso que o que aconteceu fez algumas pessoas abrirem os olhos e sinto que, acontecendo no futuro, talvez a perspetiva seja um bocadinho diferente.
Tenho esperança que, no futuro, a mobilização para a ideia de salvar a Cultura possa ser um bocadinho mais forte do que foi. Até agora, penso que a perspetiva é sempre um pouco mais de sobrevivência, mas acho que todo o momento que acabamos de viver fez perceber que a cultura também tem uma influência muito grande na sobrevivência direta, na forma como as pessoas conseguem lidar com elas próprias. Tenho esperança que as coisas tenham uma perspetiva diferente daqui para a frente.
Veja aqui o DJ set:
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