Reinfeção? "Há muitos testes que foram falsamente positivos no passado"
Margarida Tavares, infecciologista e coordenadora da equipa Covid-19 do serviço de doenças infecciosas do hospital de São João, é a entrevistada de hoje do 'Vozes ao Minuto'.
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País Covid-19
Passaram-se meses desde que o Hospital de São João diagnosticou o primeiro caso de Covid-19. Hoje, em plena segunda vaga, para lá das portas da unidade hospitalar, há "cansaço", mas não há "ninguém desanimado, desmotivado ou desesperado".
Margarida Tavares é infecciologista de um dos hospitais nacionais que mais casos de Covid-19 trata diariamente, o São João. Mas é também quem assume o leme da equipa Covid-19 do serviço de doenças infecciosas e, em entrevista ao Notícias ao Minuto, garante que os profissionais de saúde, "que mudaram radicalmente o seu dia a dia de trabalho", continuam "empenhados".
Para manter o foco na 'rota' e toda a equipa no mesmo 'barco' foi determinante a organização que o hospital delineou para esta segunda onda. "É muito importante haver um plano, saber para onde vamos. Não há nada pior do que não saber para onde vamos", enfatizou.
A chegada da vacina contra a Covid-19 não passou, naturalmente, à margem da conversa e Margarida Tavares acredita que "serão necessários 50 a 60% de vacinados" para se alcançar a tão ansiada imunidade de grupo.
A especialista, que se tem dedicado também a estudar as possíveis reinfeções do SARS-CoV-2, revela que "há muitos testes que foram falsamente positivos no passado".
De acordo com alguns gráficos que tenho visto, podemos estar a entrar numa situação de planalto e é um planalto muito altoPortugal enfrenta uma segunda vaga de Covid-19. Podemos dizer que já passou o pico?
Costumo dizer que as ondas e os picos só se verão no fim. Só depois é que vamos conseguir ver com nitidez, mas parece que sim, que [o pico] terá sido entre a segunda e a terceira semana de novembro. O que eu desejava era que a descida fosse eventualmente mais acentuada e que não entrássemos já numa fase de planalto. De acordo com alguns gráficos que tenho visto, podemos estar a entrar numa situação de planalto e é um planalto muito alto. Ainda assim, as regiões comportam-se de maneira diferente e vamos ter de esperar mais alguns dias para perceber como se comporta a desaceleração.
O Norte tem sido a região com maior número de novos casos nas últimas semanas. O Hospital de São João estava preparado para este volume de infetados?
Preparámo-nos ativamente e atempadamente. Não quer isto dizer que seja fácil; nunca é. E, por mais planos que façamos, há sempre uma nova situação e um novo desafio que nos é imposto. Não fizemos isto ‘com uma perna às costas’, mas estávamos preparados e pensámos muito bem quais eram os nossos objetivos. Pensámos no que correu melhor e pior da outra vez, na primeira onda, em que ninguém estava preparado. Embora tivéssemos uma grande experiência porque há muitos anos que fazemos planos de contingência, quando estamos numa situação real, é sempre muito diferente.
É muito importante haver um plano, saber para onde vamos
E como estão os profissionais de saúde perante este novo ‘desafio’ que é a segunda vaga do surto?
Há um cansaço grande. Estamos num parênteses das nossas vidas, do nosso trabalho. É um cansaço, aliás, que toda a gente sente, mas que os profissionais de saúde sentem de uma forma mais intensa porque lidam diretamente com os infetados.
Estes profissionais, que mudaram radicalmente o seu dia a dia de trabalho para cuidar dos seus novos doentes, estão cansados, mas motivados. Apesar de tudo, não vi ninguém desanimado, desmotivado ou desesperado. [Os profissionais] Estão empenhados e isso penso que se deve, sobretudo, à organização e ao facto de cada um de nós saber que as coisas estão pensadas, que temos a quem recorrer, com quem falar. É muito importante haver um plano, saber para onde vamos. Não há nada pior do que não saber para onde vamos.
Como avalia a capacidade de internamento do hospital para doentes Covid neste momento? À semelhança de outras unidades hospitalares nacionais, está próxima do limite?
Esse é um conceito que não temos. Nunca estabelecemos o limite máximo [para doentes Covid]. Fomos abrindo e fechando camas à medida das necessidades e da capacidade dohospital, que tem cerca de 1.100 camas.
Não temos capacidade ilimitada, claro. Aliás, ela é tão mais limitada quanto mais diferenciados são os cuidados. Por exemplo, o número de doentes em ECMO (Oxigenação por Membrana Extracorporal) não é ilimitado. É um número razoável dentro daquilo que é a disponibilidade da unidade, do espaço e das pessoas capazes de fazer essa técnica.
Mas, no que se refere a enfermaria, diria que temos uma capacidade de expansão muito grande. A questão que depois se coloca, no entanto, é a colisão entre os espaços para os doentes com Covid e não Covid. Aí é que tem de se alcançar um equilíbrio.
Gerir esta pandemia com medo é uma má gestão. Deveria ser gerida pela responsabilidade e pela nossa capacidade de fazer alguns sacrifícios
Embora tenha recuado no que ao Ano Novo diz respeito, o Governo determinou que as medidas de restrição para evitar o contágio do novo coronavírus serão aliviadas no Natal. Este alívio poderá traduzir-se num novo aumento de casos em janeiro de 2021?
Todos sabemos que, quando se diminui o contacto entre as pessoas, se reduz também a possibilidade de transmissão da doença. Qualquer um de nós tem capacidade para perceber isso. É uma ‘lapalissada’. Mas não podemos esquecer que estas medidas, altamente restritivas à mobilidade das pessoas e ao trabalho, têm consequências. Não podemos achar que podemos fazer tudo continuamente.
A questão de aliviar ou não, está mais na palavra e na sua repetição na comunicação social, ou até pelos governantes, do que nas próprias medidas, no meu ponto de vista. O simples facto de usar o termo ‘alívio’ ou ‘menos restrição/mais restrição’ é entendido pelas pessoas como a situação estar melhor ou pior. As pessoas deveriam, isso sim, interiorizar e perceber aquilo que mais importa: que cada uma delas tem de se proteger a si e aos seus e àqueles com quem convive e tentar levar ao extremo as medidas de proteção, que todos conhecemos.
Nós dizemos à sociedade que não se deve ir trabalhar se se tiver sintomas [associados à Covid], mas há imensas pessoas, e até profissionais de saúde, que tiveram sintomas e que não os valorizaram e foram trabalhar. Ninguém pode pensar que, nesta altura, dor de cabeça ou cansaço são sintomas banais. Até prova em contrário, ninguém pode achar que é normal.
Esta mensagem deveria ter sido passada com mais força e, se conseguíssemos interiorizar essa responsabilidade de proteger os nossos amigos e colegas de trabalho, não eram necessárias as medidas altamente destrutivas da sociedade e da economia. Gerir esta pandemia com medo é uma má gestão. Deveria ser gerida pela responsabilidade e pela nossa capacidade de fazer alguns sacrifícios.
Tenho verificado que há muitos testes que foram falsamente positivos no passado
Têm sido noticiados, em Portugal, alguns casos de possível reinfeção pelo SARS-CoV-2, mas ainda não foram comprovados. Pela sua experiência, é possível que possam efetivamente tratar-se de reinfeções ou falamos de reativações do vírus?
A reinfeção é um diagnóstico de exclusão. À luz daquilo que conhecemos neste momento, temos de provar ‘a contrario’. Têm-me referenciado muitos doentes com suspeita de reinfeção e posso dizer que, até agora, só achei que fazia sentido estudar uma pessoa porque é altamente plausível que tenha uma reinfeção. Os sintomas foram muito específicos numa situação e na outra, já que a paciente teve contactos com pessoas que positivaram e tinha exposição muito importante, mas falta provar. Por isso, estou neste momento a fazer a sequenciação das duas amostras, da primeira e da segunda, porque só comparando a sequência de genes do vírus é que podemos dizer que são suficientemente diferentes para não acharmos que é o mesmo.
Quase todos os dias se coloca o caso de uma pessoa que foi positivo, ou que acha que foi positivo, e que agora deu positivo outra vez. No fundo, há duas evidências que têm de ser apresentadas.
Quais são essas evidências?
As pessoas que levantam suspeita de reinfeção de Covid-19 efetivamente tiveram um conjunto de sintomas. Mas, na maioria, estes sintomas até podem ocorrer noutras circunstâncias como infeções respiratórias, situações alérgicas ou de descompensação de doenças crónicas. Por isso, ter tido sintomas em duas ocasiões, com meses de diferença, não prova nada.
A outra evidência é ter tido um teste PCR positivo. Contudo, tenho verificado que há muitos testes que foram falsamente positivos no passado e é fácil de o demonstrar quando vamos esmiuçar bem as características desse teste e vemos que não tinha características para ser considerado positivo. Os testes não são ‘preto e branco’.
Noutros casos, em que não tivemos acesso ao teste, conseguimos até uma amostra de sangue entre as duas amostras [de análise à Covid] e é apresentada uma serologia completamente negativa numa pessoa imunocompetente, jovem, e que não tinha nenhuma razão para não produzir anticorpos.
Ou então, a grande maioria desses casos que estão a ser identificados são pessoas que voltam a ter um PCR positivo porque nunca deixaram de o ter. O PCR deteta partículas do vírus que já não é um vírus íntegro, mas que é o suficiente para positivar. Em muitos desses casos, quando vamos ver se aquela positividade é real, analisar todas as proteínas, para detetar uma replicação elevada como é esperado numa infeção aguda de novo, vemos que de facto não é; é apenas um resquício. É um teste fraquissimamente positivo que provavelmente corresponde ainda ao mesmo vírus.
Um dos casos mais longos diz respeito às primeiras pessoas diagnosticadas no nosso serviço, na primeira semana de março, e que agora, num rastreio na sequência de um familiar positivo, foi positiva. Quando fomos verificar, não era um positivo, era um resquício. O número de ciclos que é preciso para positivar era longuíssimo, tardíssimo, não podia de forma nenhuma corresponder a uma nova infeção.
Imunidade de grupo? Calcula-se que serão necessários 50 a 60% de vacinados
Qual a percentagem de pessoas vacinadas necessária para podermos falar em imunidade de grupo?
A percentagem da população que é preciso vacinar para se obter a imunidade de grupo é calculada a partir de dois valores fundamentais: a eficácia vacinal e o R0 [indicador de transmissibilidade] dessa infeção. A partir desses dois valores, podemos fazer um cálculo da proporção de vacinados necessária numa população para estar protegida e para não haver uma epidemia, para manter o R0 abaixo de 1.
Quanto mais contagiosa a infeção, maior a imunidade que necessitamos. Quanto mais eficaz for a vacina, menor a proporção de pessoas vacinadas precisamos. Em função desses valores, calcula-se que serão necessários 50 a 60% de vacinados.
Há que considerar também a imunidade natural [de pessoas que já tiveram a infeção], sendo que não sabemos exatamente as suas características, não sabemos se os anticorpos que as pessoas têm são os neutralizantes, se são realmente capazes de impedir uma nova infeção, nem sabemos quanto tempo essa imunidade vai durar, nem a natural nem a da vacina aliás. Há evidências que mostram que pessoas que não foram capazes de produzir anticorpos, em níveis detetáveis, terão outras formas de proteção baseada na imunidade celular, nos linfócitos T.
Este conjunto de pressupostos faz-nos pensar que a acumulação das pessoas que já tiveram a infeção - que arriscaria que em zonas urbanas deve ultrapassar os 10% - e das que vão ser vacinadas irá conferir-nos proteção, mas não sabemos quando isso vai acontecer. Vai depender muito de quem se vai vacinar, da dinâmica de transmissão.
O principal objetivo da vacinação tem de ser reduzir o número de mortes nas pessoas mais vulneráveis. Se não fosse isso, estaríamos mais tranquilos.
Vacinar recuperados? Eu defendo que não
As pessoas que já tiveram Covid-19, considerando que possam ter imunidade, devem ser também vacinadas contra a doença?
Essa é uma questão relevante e que tem sido muito pouco falada. Eu defendo que não. A serem vacinadas, deverão ser das últimas. Por exemplo, nos EUA, que já tem milhões de pessoas imunizadas naturalmente, há uma quantidade de vacinas que se podem poupar e que podem ser disponibilizadas a outras pessoas que não tiveram infeção.
Faz muito sentido pensar se devemos, à partida, gastar vacinas em pessoas que já tiveram a doença. E faz muito sentido não as vacinar, no meu ponto de vista. Penso que os ensaios clínicos até agora não mostraram que a vacina tenha mais efeitos nas pessoas que já foram infetadas e a Europa estará a equacionar deixar essa opção para os planos [de vacinação] dos países. Acredito que isso deve ser pensado até por uma questão de solidariedade e de justiça no mundo. Pensar que muitas pessoas não vão ter acesso à vacina e que outras que já estavam imunes estão a ser vacinadas é uma grande iniquidade.
Há várias pessoas que têm mostrado desconfiança em relação à vacina porque foi produzida num curto espaço de tempo.
É óbvio que todos nós desconfiamos de algo que foge do habitual. De facto, foi-nos dito pelas autoridades mundiais e especialistas que uma vacina nunca tinha sido conseguida para a família dos coronavírus humanos. Depois, sabemos que o desenvolvimento de uma vacina, do zero e até a poder ser administrada às pessoas, demora anos. Foi-nos dito pela Organização Mundial de Saúde (OMS) que nunca poderia haver uma vacina antes de um ano e meio, dois anos.
Para além disso, o ‘follow-up’ da vacina é de meses, não sabemos o que pode acontecer ao fim de anos e usou-se uma tecnologia nova. Adicionalmente, as pessoas mais capazes de traduzir esta informação à população não estão a falar muito da sua segurança porque, no fundo, ainda não tiveram acesso aos dados dos ensaios clínicos porque estes não foram publicados.
É perfeitamente natural a desconfiança, mas não pretendo com isto semear o receio porque a comunidade científica é suficientemente capaz. Acredito que os receios vão ser debelados em breve quando surgirem mais estudos e começar a haver mais pessoas vacinadas.
Diria que sim, que vai haver uma terceira vaga. (...) A população não vai ser vacinada em massa num mêsO Hospital de São João tem desenvolvido alguns estudos relacionados com doentes Covid-19. Em que fase estão?
Está a ser feito um estudo sobre os efeitos a longo prazo da Covid-19 em doentes que passaram pelo São João na primeira onda. Trata-se de um estudo com o Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto (ISPUP) onde já foram avaliadas quase 4 mil pessoas. Não tenho conclusões porque ainda não conseguimos analisar os dados. Mas verificámos para já algumas variáveis e concluímos que há doentes com sintomas muito arrastados, como também vou percebendo em consulta.
Além desse, há outros projetos a serem desenvolvidos, em que, por exemplo, colegas estão a reavaliar doentes mais graves, que estiveram em cuidados intensivos, nomeadamente as sequelas pulmonares.
Considerando que a vacina deverá chegar a Portugal ainda em dezembro, poderemos falar numa terceira vaga da pandemia em 2021?
Diria que sim, que vai haver uma terceira vaga. A perspetiva é que seja menor porque as pessoas suscetíveis vão diminuindo, quer porque há pessoas que já tiveram a doença, quer porque vai começar a haver vacinação. Mas a população não vai ser vacinada em massa num mês. Vai ser um longo processo e vai continuar a haver espaço para um aumento da incidência. Espero que consigamos baixar o suficiente para, pelo menos, descansarmos, retemperarmos a sociedade e os nossos afetos e estabelecermos estratégias locais e nacionais
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