"A vacina é ainda mais eficaz do que os ensaios clínicos mostravam"
Pedro Póvoa, diretor da Unidade de Cuidados Intensivos Polivalente do Hospital de São Francisco Xavier, é o entrevistado de hoje do Vozes ao Minuto.
© Filipa Matias Pereira | Notícias ao Minuto
País Covid-19
Em março de 2020, Portugal começava a viver o 'pesadelo' da Covid-19. Mais de um ano depois, já se avista a 'luz ao fundo do túnel'. O motivo? A vacina contra a doença.
"Se não fossem as vacinas, estaríamos hoje numa situação terrífica". Quem o diz é Pedro Póvoa, diretor da Unidade de Cuidados Intensivos Polivalente do Hospital São Francisco Xavier, integrado no Centro Hospitalar Lisboa Ocidental (CHLO).
Em entrevista ao Notícias ao Minuto, o especialista em Medicina Interna e Medicina Intensiva explica que "o que se está a ver relativamente à eficácia da vacina é que é ainda mais eficaz do que os ensaios clínicos mostravam".
Porém, antes da chegada do imunizante, as unidades de saúde do país foram severamente fustigadas pela afluência de doentes infetados. O CHLO não foi, naturalmente, alheio a essa realidade. Pedro Póvoa faz, agora, um retrato deste último ano e identifica os principais desafios da gestão de uma Unidade de Cuidados Intensivos (UCI) durante uma pandemia.
Portugal vê-se agora 'a braços' com uma nova vaga da pandemia - a quarta - e, mais uma vez, a região de Lisboa é uma das mais afetadas. Para já, a Unidade de Cuidados Intensivos Polivalente não está a receber doentes Covid-19, uma vez que a Unidade de Cuidados Intensivos Cirúrgicos tem conseguido dar resposta às necessidades, mas mantém-se a 'postos'.
Como está o Hospital de São Francisco Xavier a dar resposta a esta quarta vaga da pandemia de Covid-19? A Unidade de Cuidados Intensivos Polivalente está preparada para admitir doentes Covid, se necessário?
Estamos preparados para fazê-lo, mas não podemos esquecer que também temos outros doentes, e são bastantes. Quando estávamos confinados, não havia [tantos] acidentes de viação, atropelamentos, não havia atividade cirúrgica e havia menos risco de outro tipo de patologias [que impliquem internamento nos intensivos]. Por usarmos máscara, também não houve gripe este ano. Não tenho nenhum doente com gripe desde janeiro do ano passado. Aliás, o boletim de vigilância da gripe da Direção-Geral da Saúde (DGS) indicava um número de casos muito residual.
Por isso, agora, estamos preparados, mas vai depender do número de doentes. Para já, com o número de admissões e de altas tem sido possível gerir, razoavelmente, as necessidades. A sensação que temos é que, pelo facto de os doentes serem mais novos, têm tempos de doença mais curtos. Anteriormente, tínhamos doentes ventilados durante meses e isso não se tem passado.
A proteção [conferida pela vacina] ultrapassa aquilo que estávamos à espera
Muito se tem falado, nos últimos tempos, sobre pessoas vacinadas que contraem o vírus (considerando que as vacinas não são 100% eficazes). Pela sua experiência, os doentes vacinados infetados apresentam, efetivamente, sintomas mais ligeiros?
O que se está a ver relativamente à eficácia da vacina é que é ainda mais eficaz do que os ensaios clínicos mostravam. Há um boletim de vigilância das vacinas e os números quanto à eficácia da vacina da Pfizer - a mais administrada em Portugal - mostram que a eficácia da primeira dose, quanto à doença sintomática, é entre 55 a 70%, e de 85 a 95% as duas doses.
Em relação à hospitalização com uma dose, a taxa de proteção é de 75% a 85% e com duas doses é de 90 a 99%. Quanto à mortalidade, a taxa de proteção com uma dose é de 70 a 75%, com duas doses é de 95 a 99%. Isto são números absolutamente arrasadores. E foi dito há pouco tempo pela dra. Graça Freitas que o número de pessoas com a vacinação completa infetadas nos hospitais era de 0,1%, ou seja, há 99,9% de proteção [conferida pelas vacinas]. A proteção ultrapassa aquilo que estávamos à espera.
O risco que temos é se aparecer alguma variante que saia fora da proteção da vacina, mas para já, com todas as variantes que têm sido detetadas, o imunizante continua a ser bastante eficaz. Só não o é em relação à variante da África do Sul, que é praticamente marginal em Portugal.
Avaliar se é necessário um reforço pelo valor de anticorpos é muito simplista
A Pfizer anunciou, recentemente, que pediu ao regulador norte-americano a aprovação de emergência da terceira dose da vacina contra a Covid-19. Considerando que há pessoas que, meses após serem vacinadas, têm uma redução de anticorpos, considera que será necessário um reforço da vacina para garantir a imunidade?
Acho que ninguém sabe se o facto de ter baixo nível de anticorpos vai fazer com que tenhamos ou não proteção. Também não fazemos o doseamento de anticorpos para o Tétano, nem para o Sarampo, mas tenho a certeza que temos memória imunológica para todas essas vacinas. E, portanto, se por acaso contactarmos com esses agentes, essa memória aparece. No Tétano, por exemplo, sabe-se que deve haver um reforço de 10 em 10 anos. No caso da Covid-19, não há dados suficientes para sabermos se é preciso mais doses.
Portanto, avaliar se é necessário um reforço pelo valor de anticorpos é muito simplista. É que, para além da imunidade humoral, que tem que ver com as imunoglobulinas, também há a imunidade celular que não está a ser avaliada [nesta equação]. Há aqui uma série de fatores relativamente aos quais não se sabe o suficiente e por isso acho que é precoce.
As agências do medicamento, aliás, não estão a dar nenhuma recomendação nesse sentido e não vi nenhum ensaio clínico a mostrar que, ao fim de ‘x meses’ de a pessoa ter tomado a segunda dose da vacina começa a ter mais infeção do que as que foram vacinadas há menos tempo. E os números não nos estão a mostrar nada disso, continuam a mostrar taxas de proteção.
Esses planos revelaram-se depois insuficientes para aquilo que se veio a verificar que estava a acontecer em Itália e em Espanha
Proponho agora um recuo até ao início da pandemia. Os planos de contingência inicialmente definidos mostraram-se adequados para fazer face à realidade?
Isto tudo decorreu a uma velocidade nunca vista. A doença apareceu em dezembro [de 2019] e lembro-me de ter ido a uma reunião em Bruxelas em que todas as pessoas que lá estavam, talvez de uma dezena de países, achavam que o vírus ia ficar na China. Só havia uma pessoa holandesa, e o respetivo Governo, que estava preocupada. Depois, começaram a haver alertas da Organização Mundial da Saúde (OMS) e a ser feitos planos de contingência. Só que os planos foram feitos um pouco a pensar que a situação iria ser parecida com a última pandemia, a da gripe [das aves], em 2009/2010, que teve proporções importantes em alguns países, mas no nosso não.
Esses planos revelaram-se depois insuficientes para aquilo que se veio a verificar que estava a acontecer em Itália e em Espanha. Através de contactos que tenho com colegas em Barcelona e em Milão, comecei a aperceber-me que as coisas eram completamente diferentes daquilo que estávamos à espera e que não havia nenhuma unidade de saúde em Portugal que estivesse à espera daquela vaga de doentes. Os relatos que tive desses amigos são relativos a coisas que não foram, felizmente, vividas em Portugal porque, ao ver o que se estava a passar lá, mudámos completamente a nossa estrutura.
No CHLO, quais foram então as mudanças?
No CHLO, tudo mudou a partir do momento em que decidimos ignorar o plano que havia e fazer um novo. Houve uma reunião que envolveu as pessoas da Urgência e dos Cuidados Intensivos e depois uma reunião alargada ao restante Hospital. Decidiu-se então aproveitar aquilo que o CHLO tem de ‘mau’, o facto de estar dividido em quatro edifícios, o do Hospital de Santa Cruz, o do Egas Moniz e do São Francisco Xavier, onde temos dois edifícios, o novo e o antigo. O que melhor se adaptava à situação era o antigo porque todos os quartos tinham oxigénio e casa de banho privativa. O edifício antigo tinha uma série de condições que, à partida, fizeram com que decidíssemos transformá-lo em edifício Covid e todo o resto Centro Hospitalar passou a edifício não Covid.
Esta reunião foi feita no dia 9 de março [de 2020] e tivemos tempo de fazer algumas obras que se revelaram muito úteis. Foram feitas portas, definidos circuitos, reorganizado o Serviço de Urgência, estabelecidos alguns protocolos e houve também reuniões com a farmácia para reforço de alguns medicamentos, assim como houve reforço da suplementação de oxigénio. Foi contratado o triplo do oxigénio porque ninguém sabia o que vinha aí. Foi feita aquisição daquilo que era possível fazer porque, na altura, não era uma questão de não se querer comprar, mas sim de não haver para ser comprado.
Além disso, muitos dos institutos de investigação utilizaram os equipamentos que tinham para dar apoio à testagem. Nenhum hospital nem laboratório tinha a capacidade de testagem que hoje em dia está instalada.
Também houve tempo para treinar as equipas, não só o vestir e despir equipamento de proteção individual, como algumas manobras importantes de proteção com os doentes. Tudo isso foi feito e o resultado foi que, quando começámos a receber os primeiros doentes, na terceira/quarta semana de março [de 2020], estávamos muito melhor preparados do que duas semanas antes e muito melhor do que estavam os nossos colegas em Barcelona e em Milão. Também não podemos esquecer que no primeiro confinamento, que foi no dia 19 de março, havia por dia 200 novos casos de Covid-19.
O facto de o Governo ter agido de forma antecipada foi a ‘tábua de salvação’?
Para nós e para muitos outros. Perante a realidade em Barcelona e em Milão, todos os outros países tiveram tempo para fazer qualquer coisa que, de outra forma, era impossível.
Na altura, chegaram alguns relatos de Itália sobre a falta de ventiladores nos hospitais, obrigando os médicos a fazer escolhas difíceis… Alguma vez isso aconteceu em Portugal?
Para lhe responder, vamos comparar alguns números. Há duas semanas, no dia 14 de julho, tivemos 4.173 novos casos. No dia 10 de fevereiro, tivemos 4.387 casos, e nesse dia estavam internados em cuidados intensivos 853 doentes, enquanto na semana passada estavam 171. De internamentos tínhamos quase seis mil e agora temos 700 e o número de óbitos nesse dia de fevereiro foi 161 e há duas semanas foi de nove. Há uma diferença muito grande. Nada disto resulta de decidir quem fica ou não ventilado.
Relativamente às indicações para admissão ou não em UCI, o médico avalia se o doente tem ou não indicação e isso passa pelo facto de haver doentes que não beneficiam de estar nos cuidados intensivos. Da mesma forma que há doentes que não fazem mais quimioterapia ou não são operados ao coração, também quanto à questão da ventilação há doentes que não têm indicação porque não beneficiam. Falamos de doentes que têm um estado de fragilidade tão grande que não têm o benefício dessa agressão suplementar.
Na fase inicial, como havia muitos mais doentes no grupo etário acima dos 70 anos, houve várias pessoas que morreram sem passar pelas UCI porque pura e simplesmente não havia indicação para o fazer. No total, tratámos 192 doentes na nossa Unidade e um terço tinha mais de 70 anos. Houve seguramente doentes com menos de 70 anos que também não foram admitidos. Não é apenas a idade que vai definir se o doente tem condições para ser admitido.
Outra questão importante é que podemos ter todos os ventiladores que existem e isso não significa que os doentes são bem tratados. Dados sobre a mortalidade hospitalar de doentes ventilados em diferentes países indicam que, em Portugal, esse indicador está abaixo dos 30%. Já no Reino Unido, a mortalidade dos doentes ventilados é de quase 42%, enquanto que no Brasil atinge os 80%. Todos estes doentes tinham ventilador, portanto não é o ventilador por si que vai fazer a diferença.
No CHLO, tínhamos um determinado parque de ventiladores e foi-se ao mercado tentar comprar alguns que estavam disponíveis. Além disso, alguns dos mais antigos, que têm 30 ou 40 anos, foram recuperados. São tão bons que basta a mudança de uma peça ou outra para funcionarem perfeitamente. Conseguimos quase duplicar a nossa capacidade de ventilação em pouco tempo.
A situação foi extremamente angustiante para muita gente. Ninguém pode dizer que estava preparado. Ninguém está preparado para uma coisa que nunca viu. Fomos todos navegar no desconhecido
E houve falta de recursos humanos?
Inicialmente não. A situação foi extremamente angustiante para muita gente. Ninguém pode dizer que estava preparado. Ninguém está preparado para uma coisa que nunca viu. Fomos todos navegar no desconhecido. Não se sabia o risco que os profissionais de saúde corriam em adquirir a doença, mas ouvíamos o relato de profissionais infetados que morriam e foi um momento complicado na gestão das equipas.
Percebeu-se inicialmente que havia pessoas que estavam muito pouco confortáveis com o facto de estar ali e tomámos uma decisão: quem queria ir para outro hospital não Covid podia ir. Mas também houve pessoas que quiseram vir. É importante lembrar que, naqueles momentos stressantes, houve muito apoio, nomeadamente da Câmara Municipal de Oeiras que disponibilizou quartos para profissionais de saúde que não quiseram ficar em casa com os familiares.
A questão do número de profissionais de saúde para os doentes que tivemos foi sempre suficiente. Houve uma altura, entre janeiro e fevereiro deste ano, que as coisas começaram a ficar apertadas, mas tudo se conseguiu fazer. Neste momento, se houvesse necessidade, já podia ser mais difícil porque, naquela altura, como estávamos em Estado de Emergência, não podia haver rescisão de contratos. Houve médicos e enfermeiros que vieram, mas houve outros que estavam à espera que acabasse o Estado de Emergência para passarem para outras instituições.
Quanto aos recursos humanos, importa também realçar que houve muito treino das pessoas. Na minha unidade, deixámos de ter doentes Covid no dia 28 de março e não tivemos nenhuma infeção entre os profissionais de saúde.
A experiência da primeira e da segunda vagas foram determinantes para lidar com o pico da terceira, a pior até à data?
Sim e, quanto a números, na Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo (ARSLVT), tivemos quase um terço de todos os doentes internados do país. Se formos olhar para os números, na altura do pico, atingimos quase três mil doentes em enfermaria (2.997 em 1 de fevereiro) e quanto a doentes em UCI chegámos a ter 352 em 9 de fevereiro.
Para dar resposta ao número de doentes que careciam de cuidados intensivos a capacidade foi sendo alargada?
Na verdade, nada foi alargado porque a estrutura é a mesma. O Hospital tem a mesma dimensão, não construímos novos blocos. Tudo aquilo que houve a mais numas áreas foi com sacrifício de outras. Quando se diz que a atividade cirúrgica parou, parou porque os anestesias e enfermeiros dos blocos foram redistribuídos e os recobros cirúrgicos foram transformados em cuidados intensivos, por exemplo. Nessa altura, houve mais doentes ventilados do que alguma vez houve no país.
Foi um cenário assustador? Como é que as equipas responderam ao desafio?
Sim foi, mas foi bom ver o que se conseguiu fazer porque as pessoas colaboraram. Exemplo disso são as dezenas de telefonemas que recebi do vereador da Câmara Municipal de Oeiras, que providenciou as coisas mais inacreditáveis e às vezes conseguia equipamentos de proteção individual, por exemplo, que as compras não conseguiam. Houve um trabalho conjunto muitíssimo grande.
A imunização tem um impacto imenso sobre o número de infeções, sobre a necessidade de hospitalização e sobre o número de doentes graves infetados
Ao longo das várias vagas, foi-se notando alguma diferença no perfil do doente internado nos intensivos?
Na primeira e na segunda vagas, não houve grandes diferenças. A diferença não era tanto na faixa etária, mas na chegada dos doentes ao hospital. Na primeira vaga, havia doentes que, quando chegavam ao hospital, eram ventilados logo na Urgência, ou seja, vinham no limite e quando entravam na Unidade [de Cuidados Intensivos] já vinham ventilados.
Na segunda vaga, passou a haver um perfil de doentes diferente na medida em que chegavam mais cedo, passavam um ou dois dias na enfermaria, depois vinham para a Unidade e só ao fim de um ou dois dias alguns eram ventilados. O início da ventilação passou a ser essencialmente dentro da unidade.
Mas isso não teve que ver tanto com o grupo etário mas mais com o facto de as pessoas estarem mais informadas ou haver mais preocupação. Aliás, muitos doentes já vinham com o diagnóstico porque a testagem já era muito maior na segunda e na terceira vagas. Na primeira, a maioria das pessoas chegava ao hospital sem fazer a mais pequena ideia de que estava infetada.
Agora, nesta quarta vaga, há uma distribuição do número de infetados mais uniforme pelos diferentes grupos etários, que resulta seguramente da vacinação. A imunização tem um impacto imenso sobre o número de infeções, sobre a necessidade de hospitalização e sobre o número de doentes graves infetados.
As pessoas esqueceram-se do que era metodologia científica. Esqueceram-se também que usar este tipo de fármacos, o chamado uso compassivo ou ‘off-label’, não traz conhecimento nenhum
Quanto ao tratamento de doentes Covid, qual tem sido a evolução? Ao longo de um ano e meio de pandemia, há diferenças na abordagem clínica e terapêutica?
A história repete-se muitas vezes e, mais uma vez, cometemos muitos erros de outras pandemias. A Hidroxicloroquina também foi usada na pandemia da gripe nos anos 20, sem sucesso, mas com toxicidade. Quando tudo começou cá, em fevereiro/março do ano passado, a doença tinha um tempo de vida de dois meses e meio, não havia possibilidade nenhuma de existir qualquer tipo de informação científica credível e válida.
Tenho um amigo infeciologista brasileiro, que vive nos EUA, e que em março de 2020 publicou um pequeno artigo numa revista prestigiada. Ele defende que aquilo que, de facto, faz a diferença na mortalidade não é nenhum medicamento, mas sim a qualidade dos cuidados, a qualidade terapêutica de suporte, ventilar bem, tratar bem as complicações, alimentar, mobilizar, sedar, não são os fármacos.
Vamos imaginar que temos o melhor fármaco do mundo, se o usarmos em Portugal, temos um resultado, se o usarmos na Guiné, temos outro. E isto porque aqui não falta oxigénio, o pessoal está treinado, há rotinas, há protocolos, há água canalizada de qualidade. É por isso que a mortalidade da mesma doença em diferentes países varia de menos de 30% em Portugal para 80% no Brasil.
Outro problema é que se propuseram todos os tipos de protocolos, de terapêuticas e de curas. Fiz uma lista de todas as coisas que fui ouvindo como sendo as curas da Covid e no início ouvi de tudo: esquemas terapêuticos cheios de ideias, sem qualquer fundamento, baseado em opiniões pessoais, trabalhos de péssima qualidade que apareciam no YouTube, Instagram e WhatsApp. As pessoas esqueceram-se do que era metodologia científica. Esqueceram-se também que usar este tipo de fármacos, o chamado uso compassivo ou ‘off-label’, não traz conhecimento nenhum.
Além disso, são usados fármacos que põem em risco os doentes. Quando há esta quantidade de fármacos, lembro-me de uma frase que o meu professor de Farmacologia dizia: “Quando temos muitas alternativas para a mesma doença é porque nenhuma funciona”. E aqui foi mais que verdade. Esquecemo-nos de coisas muito simples: se queremos diminuir o número de infetados e de mortes, as medidas mais importantes são testar, rastrear e isolar.
As pessoas também se esqueceram, relativamente à investigação científica, que temos de aprender primeiro e fazer depois. Só que havia uma grande vontade de fazer coisas e começaram a usar-se todo o tipo de medicamentos porque se dizia que era impossível fazer ensaios clínicos em tempos de pandemia. Demonstrou-se, porém, que foi possível fazer ensaios clínicos de grande qualidade em tempo de pandemia e o primeiro foi o que resultou na aprovação do Remdesivir - um ensaio clínico feito em menos de 60 dias, concluído em maio de 2020, e que incluiu mais de mil doentes. Este estudo levou à aprovação do primeiro fármaco num ensaio clínico aleatorizado com dupla ocultação contra placebo.
Lembro-me inclusive de um artigo interessante que saiu na revista 'Intensive Care Medicine' e que defende que, às vezes, o melhor ‘é não fazermos nada’ (‘Do not just sit there, do something … but do no harm’). Um trabalho feito pela farmácia do Hospital de São Francisco Xavier mostrou, aliás, que muito do que se usou - como a Hidroxicloroquina, o Lopinavir/Ritonavir, a Azitromicina - teve reações adversas sem qualquer benefício e isso não pode ser esquecido.
E quanto à recuperação dos doentes que estiveram internados em cuidados intensivos? Muitos deles ficam com efeitos da chamada 'Covid longa'?
Alguns doentes de UCI sofrem de síndrome de dificuldade respiratória do adulto (ARDS, na sigla em Inglês) e, no caso de doentes ventilados, a percentagem de doentes com ARDS é de quase 100%. Esta é uma situação que tem múltiplas causas, a maioria infeciosa, mas que pode ir desde a inalação de fumos, a trauma torácico, a toxicidade de fármacos, a algumas quimioterapias e radioterapias. A lista de causas é imensa. Mas a situação, antes da pandemia, era relativamente rara, já que tratávamos um ou dois casos de ARDS por mês.
Agora, passamos a tratar todos os doentes. Portanto, há muito mais ARDS e os sobreviventes desta síndrome também têm sequelas. Existe, aliás, um trabalho muito interessante feito por uma canadiana, Margaret Herridge, sobre o tema. Ela fez um ‘follow up’ de sobreviventes com ARDS (não Covid) com menos de 45 anos e percebeu que, ao fim de cinco, dez anos, a parte respiratória praticamente normalizou, mas os doentes continuaram com imensa falta de força por causa da miopatia que a doença grave provoca. Muitos destes doentes nem conseguem voltar ao trabalho porque, de facto, não têm força. Relativamente à Covid-19, passou pouco tempo para perceber se ao fim de um ano desaparecem [as sequelas], ou se são necessários cinco anos como nos outros pacientes [de ARDS].
Além disso, o que é diferente nesta doença é que alguns doentes com Covid-19 não grave, mesmo os não hospitalizados, têm sequelas. Algumas pessoas têm queixas neurocognitivas, outras de cansaço, de falta de força. Participei num projeto de uma universidade australiana em que fizemos conjuntos de ‘outcomes’ para diferentes fases da doença e um deles estava relacionado com a recuperação. Era interessante ver o relato dos recuperados e o cansaço era uma queixa recorrente.
Se não fossem as vacinas, estaríamos hoje numa situação terrífica
O Reino Unido anunciou recentemente que vai vacinar mensalmente os doentes com sintomas persistentes da Covid. No seu entendimento, esta poderá ser uma boa estratégia para minimizar as sequelas da doença?
Não li nem vi nada que dê suporte a esse tipo de atitude. Se isso for feito de forma testada e controlada, tudo bem, se for feito de forma avulsa, é absolutamente condenável, tanto mais que estamos a gastar vacinas e há pessoas que ainda não estão vacinadas. E também não há nenhuma recomendação das agências do medicamento, nomeadamente da Agência Europeia de Medicamentos (EMA), acerca disso. Acho que as vacinas devem ser usadas para aquilo que são testadas e para aquilo que temos a certeza absoluta que têm uma eficácia incrível. Se não fossem as vacinas, estaríamos hoje numa situação terrífica.
Quando Portugal tiver a maioria da população vacinada, acredita que o Serviço Nacional de Saúde (SNS) poderá regressar à normalidade pré-Covid?
Alguma normalidade sim, não só do SNS mas de tudo. Alguma normalidade vai ser recuperada, não só na área da saúde, e isso vai depender não só daquilo que acontecer em Portugal, mas também no resto do mundo em termos da vacinação. Nós não vivemos isolados e, por isso, a recuperação vai depender do número de pessoas que recusarem a vacina e, em Portugal, creio que vai ser marginal.
E depois vai depender do comportamento do vírus. A doença pode ficar endémica, pode ficar só como uma doença de crianças porque para já não há recomendação para vacinar abaixo dos 12 anos, como pode desaparecer. Por exemplo, o primeiro vírus SARS, que foi super infecioso inicialmente, depois desapareceu. Já o que existe na Arábia Saudita ,o MERS-CoV está só por ali, não se espalha.
E estamos igualmente dependentes de não aparecer uma variante para a qual a vacina não é eficaz. Está a ser feito um esforço muito grande e muito importante de vacinação que é a medida certa e está a haver uma grande adesão das pessoas.
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