"Não creio que estejam a ser tomadas medidas para evitar uma nova crise"
Mariana Rodrigues Mortágua, economista e deputada portuguesa do partido político português Bloco de Esquerda, é a convidada do Vozes desta terça-feira.
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Política Mariana Mortágua
Mariana Mortágua, deputada do Bloco de Esquerda, tem sido uma das vozes mais críticas perante a atuação do atual Governo na resposta à Inflação. A economista defende a proteção dos rendimentos e o controlo dos preços e acusa a União Europeia de "promover processos que fomentam a criação de uma 'banca sombra' a nível europeu".
No seu mais recente livro, 'No Sonho Selvagem do Alquimista', - ponto de partida para esta entrevista - a deputada alerta que a próxima crise financeira “irá ser causada pela ‘banca sombra’, que é formada por entidades que não são bancos, mas agem como se fossem”.
A deputada bloquista tece, ainda, algumas considerações sobre a literacia financeira e sobre a taxa de inflação, defendendo a proteção dos rendimentos e o controlo da subida dos preços por parte do Governo.
Essa é que é a questão que está em causa e que é a mais importante no fim de contas: é se somos nós os escravos da finança ou se é a finança que deve obedecer a princípios de interesse público
A próxima crise financeira, nas suas palavras, "irá ser causada pela ‘banca sombra’, que é formada por entidades que não são bancos, mas agem como se fossem". De que entidades falamos ao certo?
Falamos de entidades financeiras que não são bancos mas que desempenham funções financeiras como se fossem bancos, ou seja, fazem empréstimos, fazem operações financeiras, fazem empréstimos com colaterais, criam novos produtos financeiros como os produtos 'subprime', mas não acedem ao Banco Central Europeu e não aceitam depósitos. E, por isso, são muito menos regulados. Estamos a falar de fundos de pensões, fundos de investimento, veículos estruturados... Tudo aquilo em que podemos pensar, inclusive empresas que concedem crédito a clientes, mas que não são tecnicamente bancos.
Diz que muitas delas nem sequer estão cotadas em bolsa e que são falsos sucessos em nome de um jargão tecnológico, mas que, na verdade, não são nada. O que faz falta? Regulamentação? Fiscalização?
Sim, há muitas empresas deste universo que não estão cotadas, algumas são do universo das 'fintech', por exemplo. São empresas que aparentam fornecer serviços financeiros aliados a tecnologia quando, na verdade, são apenas esquemas em pirâmide de construção de dívida.
O que falta aqui é uma enorme fiscalização e regulamentação. Estas empresas saem do parâmetro e do perímetro de supervisão do Banco de Portugal, mas é também preciso perceber o que nós queremos. Ou seja, o que é que a regulamentação deve deixar que exista e o que é que deve ser proibido - enquanto atividades que podem pôr em causa a estabilidade financeira. Portanto, há vários tipos de empresas, há vários tipos de situações, mas, sem dúvida, é preciso mais regulamentação para adequar cada nível de empresa ao nível de risco e sobretudo ao risco para a estabilidade financeira que implicam e que podem criar.
Como se combate este fenómeno?
O fenómeno da 'banca sombra' combate-se precisamente com regulamentação e com limitações à atividade. O que estamos a ver neste momento é o processo contrário. A União Europeia está a promover processos que fomentam a criação de uma 'banca sombra' a nível europeu, nomeadamente através da promoção da securitização, que é a criação de novos ativos financeiros que são retirados dos balanços dos bancos, empacotados e vendidos nos mercados financeiros. E, por isso, em vez de uma regulamentação deste tipo de técnicas que já foram identificadas na crise do subprime, o que assistimos é à sua promoção através das novas regulações da União Europeia, quer através da união bancária, quer através da união dos mercados de capitais.
Alguns dos maiores escândalos desta nova finança aconteceram, por exemplo, na Alemanha e no Reino Unido, onde a literacia financeira é superior
Portugal surgiu em último lugar no ranking da literacia financeira da zona euro (dados do BCE de 2020). Até que ponto a iliteracia financeira potencia estes fenómenos?
A iliteracia financeira tem algum impacto, mas alguns dos maiores escândalos desta nova finança aconteceram, por exemplo, na Alemanha e no Reino Unido, onde a literacia financeira é superior. Portanto, há uma parte deste problema que tem que ver com a literacia financeira, por exemplo, com as bitcoins e criptomoedas - há muita gente a investir sem saber o que é que está a fazer e muitas dessas pessoas já perderam dinheiro. Há outra parte que tem que ver com relações de poder e de negócios. Empresas que têm um grande poder de mercado sobre os clientes porque estes são devedores ou porque são empresas com dificuldades financeiras, e elas oferecem estes serviços financeiros aproveitando-se de situações de maior fragilidade. Ou por desconhecimento ou até fraude e apresentação errónea dos seus negócios. Por isso, tem que ver com literacia financeira mas também tem que ver com, mais uma vez, aquilo que é permitido ou não e as próprias estruturas destes negócios da 'banca sombra' e das novas formas de finança.
Poderá a iliteracia financeira ser um fator na criação de desigualdades?
A iliteracia financeira é um fator que reflete as desigualdades, não é necessariamente um criador. Mas uma coisa é certa, a 'banca sombra' alimenta-se das desigualdades e cria-as, porque a 'banca sombra' existe no encontro de duas realidades: por um lado, aquilo que chama de 'pools' de dinheiro, piscinas de dinheiro que estão nas mãos de grandes fundos de investimento, grandes fundos de pensões, que estão num dos lados da 'banca sombra', e num outro lado estão devedores. Devedores que muitas vezes são pessoas remediadas, pobres...
Muitas vezes, nos Estados Unidos, há fenómenos como os 'payday loans', empréstimos de salário que permitem simplesmente às pessoas chegar ao final do mês. Depois com juros altíssimos. E a 'banca sombra' é isto, a relação entre as desigualdades económicas entre fundos de investimentos que concentram uma parcela cada vez maior da riqueza, controlam cada vez mais empresas, e o outro lado, o dos baixos salários, da precariedade e de uma classe trabalhadora cada vez mais endividada. A 'banca sombra' alimenta-se disto.
Como caracteriza a nova realidade económica portuguesa - à luz da guerra na Ucrânia - e o que devemos esperar para os próximos meses/anos?
A realidade portuguesa está a mudar, não apenas com a guerra na Ucrânia, mas com fenómenos que já se verificavam antes como a inflação. Não podemos esquecer que a guerra na Ucrânia veio disromper algumas cadeias de abastecimento e tem impacto nos combustíveis, mas o processo de inflação é anterior à guerra.
Devemos esperar um impacto da inflação na queda dos salários, e no consumo dos salários - que valem cada vez menos. Penso que uma das medidas mais importantes para combater esse processo é aumentar os salários e aumentar os rendimentos. Basta olhar para a Alemanha onde já foi anunciado o maior aumento do salário mínimo em vários anos para combater o empobrecimento que a inflação causa. Por outro lado, esta disrupção dos preços dos combustíveis, para além de exigir medidas nos lucros das empresas, porque o setor dos combustíveis está a lucrar muito com esta crise e com a especulação do preço, também nos leva a pensar um pouco sobre as alternativas que existem e face à crise ecológica. Mais uma vez, trazendo aqui a Alemanha, acabou de adota um passe único de comboio que custa 9 euros. É uma forma de oferecer alternativa aos combustíveis fósseis e reduzir a dependência de combustíveis do país. Todas estas medidas são importantes para enfrentar as crises dos nossos tempos: a crise da guerra mas também a inflação e a crise ecológica.
A Galp, a EDP, o Pingo Doce, o Continente têm tido lucros absurdos neste período da inflação à medida que aumentam os preços
Como acha que o Governo devia estar a responder à inflação?
O Governo deveria responder à inflação protegendo os rendimentos e controlando os preços. Eu acho que essa é a única resposta. A alternativa é castigar os rendimentos e os salários deixando que várias empresas e setores do oligopólio lucrem com a inflação. A Galp, a EDP, o Pingo Doce, o Continente têm tido lucros absurdos neste período da inflação à medida que aumentam os preços. O Governo deve taxar este lucros como já foi recomendado pelo FMI, pela OCDE e pela Comissão Europeia, como está a ser feito no Reino Unido, na Grécia ou na Itália, e deve proteger os rendimentos como está a ser feito na Alemanha, promovendo os transportes públicos e as alternativas aos combustíveis. Infelizmente não tem sido essa a resposta que o Governo tem adotado.
Apesar de o seu livro ter sido lançado já no ano passado, aos dias de hoje, considera que é ainda mais importante os portugueses entenderem como o sistema financeiro internacional condiciona as suas vidas?
Sim, penso que é cada vez mais importante que as pessoas, os portugueses entendam como funciona o sistema financeiro internacional, até porque estamos cada vez mais dependentes dele. A nossa banca já não é tão interligada com as empresas portuguesas como no passado, é uma banca mais interligada com os fundos de investimento internacionais, com o grande capital internacional. Assim, é importante que se compreenda como é que esta relação do capital internacional, as suas formas de organização, como é que nos condiciona e condiciona a forma como a economia se organiza, como pode ser uma ameaça à estabilidade, como cria desigualdades. Acho essencial conhecer um pouco do que se passa em todo o sistema financeiro internacional e sinto que as pessoas estão hoje em dia muito longe de ter uma noção desse sistema e do quão complexo e quão perigoso ele é para as nossas vidas.
A sociedade tem ao seu dispor os meios técnicos e teóricos para evitar uma nova crise? Se sim, quais?
Pode ser uma visão pessimista, mas parece-me que a sociedade não tem. Quer dizer... a sociedade tem aos seu dispor meios técnicos e teóricos para evitar uma nova crise, não tem é a visão política para o fazer.
É fácil compreender que o preço dos ativos financeiros está sobrevalorizado, que há bolhas especulativas e loucura de preços de ativos financeiros em determinados mercados, que isto tudo foi potenciado pela política do Banco Central Europeu, de injeção de dinheiro nos mercados financeiros, e que há um processo de desregulamentação em curso na tal 'banca sombra'. É óbvio que esta é a receita para um desastre. E portanto, não creio que estejam a ser tomadas medidas para ser evitada uma nova crise, embora existam os meio técnicos - enfim, tanto quanto possível - e os meios teóricos para compreender que ela virá. O resto é uma questão de vontade política e de intervir com grandes interesses financeiros, de trazer a finança de novo para debaixo do grande chapéu da democracia e do interesse público. Essa é que é a questão que está em causa e que é a mais importante no fim de contas: é se somos nós os escravos da finança ou se é a finança que deve obedecer a princípios de interesse público.
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